Notórias Certezas
…il n’y a aucun rapport entre une somme d’argent et une oeuvre d’art,
l’oeuvre n’est pas au dessus, ni au dessous: elle est en dehors.
Romain Rolland (Jean-Christophe)
Comparadas às programações dos meados do século XX, quando acentuadamente a presença do intérprete individual frente ao público era aceita como algo sem contestação, mais e mais o quadro tem-se modificado. A simples leitura dos guias de concerto evidencia a supremacia de fotos de regentes, sempre empunhando inseparáveis batutas nas mais curiosas posições. Seriam vários os motivos que levaram à presente situação, a privilegiar espetáculos com orquestra, corais, ópera, dança.
Considerando-se o empresário de eventos musicais eruditos, verifica-se que há o fator comercial a preponderar sobre outros. A música, para essa figura necessária, mas inúmeras vezes sem o menor conhecimento musical e, outras tantas mais, tendenciosa, poderia ser uma mercadoria como qualquer outra a ser colocada no mercado. Para a música erudita ou de concerto houve um duro golpe com a ascensão da pop music, em níveis hoje inimagináveis em décadas anteriores, a levar “hordas” às arenas, não raramente causando distúrbios. Esse é um fato real. O agente de concertos, geralmente astuto, entende que o espetáculo que mais seduz o ouvinte é aquele com maior número de músicos. Fato também real. Ópera e orquestras sinfônicas – essas preferencialmente quando apresentam solista respeitado – têm um público certo, que acorre às salas de concerto no preciso desiderato de ouvir as mesmas obras. Se considerado for o repertório operístico e orquestral, o número de opus é bem inferior ao do repertório solo ou camerístico que habitualmente é apresentado pelos intérpretes em recitais. Esse fato, também expressivo, explica-se pela estatística, pois o número de obras consagradas para instrumento solo e música de câmara supera bem o repertório para grandes conjuntos.
O público, elo final dessa relação intrínseca compositor-intérprete, tem evidenciado, ao longo das últimas décadas, sua preferência pelo evento mais grandioso representado pela orquestra, ópera, coral e ballet. Os espetáculos com essas associações de músicos geralmente têm boas platéias, enquanto recitais e grupos camerísticos constatam a paulatina diminuição de ouvintes. Claro está que nomes consagrados no Exterior, acompanhados de uma boa divulgação pela mídia, chegam a ter expressivas audiências entre nós. Mais renomado é o intérprete, maior afluxo dessa escuta peculiar ele terá. É fato. Ao músico pátrio, essas apresentações ficam geralmente restritas a pequeno número de ouvintes e, o que poderia ser sintoma, de parcela acentuada constituída por integrantes da terceira idade.
Num aspecto outro, as programações, agindo como uma espécie de longo anestésico, privilegiam os repertórios consagrados, que na maioria das vezes é apresentado da maneira mais tradicional, ou seja, a cronológica. Dificilmente inverte-se a ordem das obras ou mescla-se a cronologia, o que propiciaria um arejamento. Inicia-se o programa por algum autor barroco ou clássico, seguido pelos românticos e pelas obras do século XX, quando programadas. Igualmente, preferencia-se a obra de grande chamamento popular como número final. Ou seja, a tradição é prioritariamente mantida e o público vai sendo injetado culturalmente pela trama que o satisfaz. Mais culto ele se torna? Acredito que não, pois esse ouvinte assíduo não age no sentido de tentar modificar a ordem das coisas. Apraz-se com o que ouve, faz lá suas comparações entre orquestras, regentes e solistas e acomoda-se com o que lhe é apresentado.
Outro fator intrigante, que não merece atenção mais acurada por parte do ouvinte, refere-se às notas de programa, escritas de maneira pueril, abordando superficialmente obras que serão apresentadas. Pílulas “culturais” encontráveis no mais rudimentar texto da wiki. Todos se contentam e pereniza-se o óbvio. O público consumidor satisfaz-se por ter assistido ainda uma vez a extraordinária 5º Sinfonia de Beethoven, como exemplo, após tê-la possivelmente ouvido “ao vivo” incontáveis vezes e não espera, obviamente, por mudança de repertório.
O que pareceria certo no Exterior, e de maneira mais preocupante, no Brasil, é que mais acentuadamente empresários interessados na quantidade pareceriam ter encontrado a fórmula a levar melômanos aos concertos. Nessa estratégia, hoje clara, intérpretes ótimos, mas não consagrados através de tantos estratagemas por vezes estranhos, e que se apresentam isoladamente ou em pequenos grupos camerísticos, terão assistência pequena, quando não diminuta. Fora do grande circuito, esses músicos deverão contentar-se, prioritariamente, com programações oficiais benevolentes. E seria justamente nesse quase descaso do grande público, mas na devoção de poucos aficionados, que os intérpretes deveriam singrar mais acentuadamente o caminho dos repertórios inusitados. Essa pequena, mas seleta platéia, lá estará para ouvir o passado ignoto, muitas vezes atraída mais pela antiguidade da obra do que por seu mérito real.
O apoio oficial tem preferência nítida pelo número de ouvintes e espetáculos com grandes conjuntos merecem maior atenção, pois mais concorridos. Ainda assim, em Portugal e no Brasil verificamos desprezo flagrante. Em terras lusitanas o Ministério da Cultura foi extinto, passando a ser Secretaria de Estado da Cultura. Isso representa um duro golpe para todas as artes, pois a Secretaria não tem nem a importância, tampouco o status de um Ministério e, quando o Governo reúne o Conselho de Ministros, inexiste o diálogo com as artes, ficando temas crucias sujeitos à boa vontade do Primeiro Ministro. Em São Paulo, houve um atentado contra as artes. Soube, por um amigo músico, que o excelente pianista Nahim Marun (vide post “Os 51 Exercícios para piano de Johannes Brahms” – Técnica Avançada para Pianistas, 03/09/2011) escreveu no facebook, no último fim de semana, que “A Secretaria Municipal de Cultura cancelou a maioria dos eventos culturais do CCSP neste final de ano, por puro descaso e desinteresse pela cultura nacional – leia-se aqui, cultura que ELES consideram elitista e desnecessária, obviamente. Meu RECITAL SOLO foi cancelado na sexta-feira, ou seja, 3 dias antes de acontecer! Quero deixar público a vocês que o recital estava absolutamente pronto, memorizado e NUNCA (leia-se nunca mesmo!!!) na minha carreira de 30 anos cancelei um recital ou concerto por qualquer motivo. O desrespeito com os artistas está atingindo proporções insustentáveis! Lamento muitíssimo os amigos que compareceram ao Centro Cultural SP neste domingo, dia 25/11, às 18h. Meu público, ao chegar ao local, foi comunicado que o problema foi MEU, ou seja, crucificaram mais uma vez o artista e não a indecência política! Mentem, com a cara mais lavada…”.
Percebe-se que a Cultura musical erudita tem sido desprezada paulatinamente em segmentos essenciais. Poderosos têm hoje outras preocupações. Nada a fazer.
Nowadays space for soloists dwindles as sponsors focuse primarily on orchestras and operas, since grandiose shows capture more public and bring in receipts in ticket sales. Only star soloists – in special foreign ones – have a chance and audiences get more of the same, for they keep hearing the same things again and again. This state of affairs should encourage talented native soloists to act as pathfinders, unveiling to small but selected audiences works of art that, despite their quality, remain unknown because promoters prefer a handful of celebrated masters. Great works, but shouldn’t we move on to other stuff ?
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