Alguns Aspectos da Literatura e da Música no Romantismo Francês
Na França só se pode triunfar
quando todos se achegam à cabeça do triunfante.
Honoré de Balzac (“Illusions Perdues”)
Leitora dos blogs semanais, Maria Cândida Ribas, professora, tradutora e poetisa de mérito, fez-me um convite direto. Seu grupo de leitura estava a ler “Illusions Perdues”, de Honoré de Balzac (1799-1850). Pergunta-me se poderia comparecer ao próximo encontro para tecer considerações sobre a música em França na primeira metade do século XIX. O convite veio durante um treino para as corridas de rua que realizava pelas vias de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. Disse à amiga que iria pensar e brevemente lhe daria uma resposta.
Durante alguns dias fiquei a refletir, e o tema foi ganhando acalanto. Convite aceito, primeiramente recordei a leitura da obra recomendada por meu dileto amigo Antoine Robert no início dos anos 1960, quando de meus estudos pianísticos em Paris. Emprestou-me o livro. Com ele discuti muitas das implicações contidas em “Illusions Perdues” e seu enquadramento no contexto romântico. Vivia-se o florescimento no cinema da Nouvelle Vague em França. Tendências estéticas entravam em choque e, na literatura, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, André Malraux, Georges Bernanos ou mesmo o humanismo visionário, lírico e espiritual de Saint-Exupéry faziam parte de nossas leituras. Antolhava-se-nos que Honoré de Balzac pairava num patamar diferenciado, permeando romantismo, realismo e uma visão social que, aliás, não ficaria despercebida até por Karl Marx.
“Illusions Perdues” é um tríptico publicado entre 1837 e 1843: “Les Deux Poètes”, “Un Grand Homme de Province à Paris” e “Les Souffrances de L’Inventeur”. Faz parte do primeiro, Étude de Moeurs, dos três segmentos de “La Comédie Humaine”, a monumental coleção de obras selecionadas por Balzac, somando-se quase 100 títulos! Études Philosophiques e Études Analytiques completam o gigantesco conjunto literário que não contempla, diga-se, a opera omnia do romancista. À guisa de prefácio de “La Comédie Humaine”, Balzac finaliza: “A imensidão de um plano que engloba tanto a história como a crítica da Sociedade, a análise de seus malefícios e a discussão de seus princípios autoriza-me, creio eu, a dar o título sob o qual é publicada: ‘La Comédie Humaine’. É ele ambicioso? É justo? Obra terminada, o público decidirá”. Seria, contudo, o primeiro conjunto, Estudo dos Costumes, possivelmente o mais significativo da coleção.
Segundo a proposição de Maria Cândida, faria a exposição do comprometimento do escritor francês com a música. A reunião deu-se no último dia 14 de Junho. Tive o grato prazer de expor ao seu competente e atento grupo de estudos, formado por professores e profissionais liberais de várias áreas, aspectos dessa intrínseca relação música e literatura durante o romantismo em França, detendo-me preferencialmente, após exposição inicial, no comprometimento de Honoré de Balzac com o universo sonoro. Seguiu-se profícuo debate em torno do tema e de outros mais.
Vivendo em plena efervescência do movimento romântico na Europa e em França, particularmente, Honoré de Balzac, cuja vida está associada às ligações com a aristocracia, mas também à crítica a tantas distorções da sociedade, teria contato com as artes, mormente a música, e algumas de suas obras permeiam visitas à área. Estava-se no período histórico primordial do romantismo.
A eclosão romântica nas fronteiras dos séculos XVIII e XIX teria início primeiramente na Alemanha e, logo após, em França. O movimento literário e político alemão Sturm und Drang (tempestade e ímpeto) seria precursor do romantismo, que penetraria a França e se alastraria por tantas regiões da Europa. Os alemães J.W.Goethe (1749-1832) e Friecrick Schiller (1759-1805) são exemplos marcantes. A “Ode da Alegria” (Ode an die Freude), de Schiller, seria o poema utilizado por Beethoven (1870-1927) no quarto movimento da monumental “Nona Sinfonia”. Beethoven não descartaria poemas de Goethe, que, por sua vez, foi autor de libretos de ópera.
Basicamente, traduz-se o romantismo pela exacerbação dos sentimentos, da sensibilidade. A “atitude romântica”, não nomeada, pode ser encontrada em séculos anteriores, mas seria no período mencionado que abertamente a eclosão se dá. Tendências românticas já se fazem sentir na música francesa em pleno iluminismo. O filósofo francês Henry Berr (1863-1954) chegaria a escrever que “há um estado de alma romântica… um romantismo eterno”. A obra de arte no romantismo tenderia a levar à emoção, langage du coeur, sendo que música e literatura, pela natureza de seus propósitos, mais tenderiam à manifestação desse “eu” interior que necessita expressar o sentimento abertamente. Alemães entendiam como “riqueza da vida interior” esse eflúvio dos sentimentos.
Se no classicismo a música, quando descritiva, capta o que se passa na natureza, no romantismo tem-se a natureza desse “eu” interior. O olhar é diferenciado e do objeto, como tal observado e assimilado, passa-se ao palpitar emotivo. As palavras tenderiam a seduzir o leitor, os sons a subjugar o ouvinte. Beethoven (1770-1827), Schubert (1797-1828), Schumann (1810-1956), Chopin (1810-1849) e Liszt (1811-1886) são exemplos claros dessa encantação. O poeta e escritor francês Alphonse de Lamartine (1790-1869) bem capta essa tendência voltada à exacerbação da sensibilidade: “O sentimento vago ou apaixonado do instrumento pode, a depender daquele que ouve, ser interpretado como homenagem tímida ou como suspiro ardente, para se tornar confissão; dois olhares que se cruzam no momento de êxtase musical põem por terra a muda inteligência; daí à paixão mútua, revelada ou confessa, não há que um momento de audácia ou de fraqueza”.
Contrariamente à composição instrumental solo, de câmara ou sinfônica professada na Alemanha, a França cultua formas mais “leves”, “superficiais” talvez, mas que serviram a esse amalgamar com a poesia e a literatura. Está-se longe do hermetismo de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) com suas óperas-balés voltadas à magnificência. A ópera menos densa vinda da Itália tem imensa recepção em Paris. Óperas de Giacomo Rossini (1792-1868) e Vincenzo Bellini (1801-1835) seriam apresentadas com amplo sucesso na também cidade luz. O alemão Giacomo Meyerbeer (1791-1864) seria cultuado e uma de suas muitas óperas, “Robert le Diable”, foi executada inúmeras vezes em Paris com estrondosa acolhida. Excertos dela, vertidos para piano solo e publicados em coletâneas para o instrumento, deleitaram salões aristocráticos até a segunda metade do século XIX.
No próximo blog abordarei aspectos da relação mais ou menos intensa de poetas e escritores franceses com a música, focalizando preferencialmente Balzac e Berlioz. Em “La Comédie Humaine” encontram-se inúmeras menções e mesmo, dois títulos precisos concentrados na área musical. Tem-se, na gigantesca coleção, apreciações sobre música de importância para estudiosos do período, por vezes mais pertinentes do que a realidade publicada na imprensa da época. Uma das características essenciais de “La Comédie Humaine”, à qual pertence “Illusions Perdues”, é a “visitação” de personagens a outros livros da coleção, caso específico do romance em causa, de Lucien Chardon, posteriormente Rubempré, e que estará em “Splendeurs et Misères des Courtisanes”. Esse penetrar outros cenários não seria um dos princípios do leitmotif professado por Richard Wagner (1813-1883) e da forma cíclica tão utilizada por César Franck (1822-1890) na música?
My thoughts on the book “Illusions Perdues” (Lost Illusions), by Honoré de Balzac, and the connections between literature and music during the French Romanticism in the first half of the 19th century.
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