Alguns Aspectos da Literatura e da Música no Romantismo em França

Venez, illusions !… au matin de ma vie,
que j’aimais à fixer votre inconstant essor !
Le soir vient, et pourtant c’est une douce envie,
c’est une vanité qui me séduit encor.
Goethe (Faust – Dédicace)
Tradução: Gérard de Nerval (1808-1855)

A Música é poesia incorpórea.
Guerra Junqueiro

Nas entranhas do movimento romântico encontra-se a ilusão. Ela estaria a provocar sensíveis mutações emocionais. Nostalgia, exacerbação dos sentimentos, depressão, euforia passageira, devaneio povoam a imaginação, potencializando o amor, por vezes sem barreiras, de escritores, poetas, pintores e músicos. Se da natureza das coisas passa-se para a natureza interior, o fervilhar romântico possibilitaria doravante esse retorno à natureza das coisas dimensionada pela expressão desse interior humanizado, poder-se-ia acrescentar. Difícil não entender sonoridades na poesia plena de magia ou no texto fluido do contista ou romancista de talento. A frase literária e o verso adquirem a fluidez afetiva. A frase musical, a melodia contagiante, estruturadas na harmonia tão apregoada por Jean-Philippe Rameau (1683-1764) em período histórico distinto, conquistam o ouvinte, que assiste à “descoberta” da latente emoção. Em França, como alhures,  compositores souberam captar desde o nascedouro do movimento romântico a carga expressiva contida nas palavras. A Música para o gênero ópera absorve libretos poéticos de autores de qualidade duvidosa, salvo exceções. Sob outro patamar, a mélodie para canto e piano apreende a seiva que emana do poema. A concentração melódica, resumida em poucas páginas de uma partitura, pode desvelar a essência essencial do conteúdo romântico. Todavia, esperar-se-ia meio século para que tal destinação dual acontecesse.

Honoré de Balzac aborda as múltiplas facetas sociais: da aristocracia aos desafortunados; da vida cultural erudita à superficialidade da recepção pelos detentores da riqueza. Estuda os sentimentos humanos mais contrastantes, entre esses o fausto, a usura, a prostituição, a perfídia e a honradez. Possui a agudeza daquele que presenciou, auscultou o outro, empreendendo sem trégua, doravante, a viagem imaginária. Bem mais de 2.000 personagens penetram suas páginas em “La Comédie Humaine”! Quanto à música, vive Balzac em período de intensa e cosmopolita difusão sonora em Paris. Gustave Bertrand, em livro de interesse (vide item “Resenhas e Comentários” no menu) para a compreensão desse período, escreve: “Em que outro lugar no mundo, e mesmo na Itália, encontramos um teatro que apresenta, regularmente, todo o repertório histórico da ópera italiana, desde ‘Il Matrimonio Segreto’ e ‘Don Giovanni’ até ‘Un Ballo in Maschera’? Em qual lugar no mundo, mesmo na Alemanha, veríamos um público de cinco mil pessoas se apertar, se sufocar em um circo para ouvir as sinfonias dos mestres alemães, e isso mais de trinta vezes durante o inverno?” (1872)

Hector Berlioz (1803-1869), voltado preferencialmente à música sinfônica, mas também à lírica e à coral,  seria uma exceção em uma França direcionada a outros ideais. Gustave Bertrand afirma: “Chegando no momento da revolução romântica, Berlioz deu a si como missão ser um Victor Hugo musical”. Ainda a envolver o autor de “Os Miseráveis”, o musicólogo Robert Pitrou entende  que “Hector Berlioz, Hugo e Delacroix constituem a trindade da arte romântica” (1946) – (vide item “Resenhas e Comentários” no menu). Sob outro contexto, Victor Hugo (1802-1885) ofereceria ao músico libretos que não tiveram sequência por oposição da Ópera e da Ópera Comique de Paris. Digno de retenção o posicionamento do crítico musical e musicógrafo René Dumesnil (1879-1967), que rotula os compositores coetâneos de Berlioz e que não resistiram à história: “Certo, dos compositores aplaudidos por nossos pais não esquecemos ainda os nomes. Para maior segurança os conservamos nas placas de ruas ou praças, ou mesmo nas fachadas dos teatros; mas, salvo raras exceções, nós encontramos em suas obras o vazio e o enfado” (1934) – (vide item “Resenhas e Comentários” no menu). Incompreendido por alguns setores mais conservadores, a obra de Berlioz atravessaria os séculos a partir de uma reformulação na estrutura formal da composição, a influir no gosto parisiense afeito à superficialidade do espetáculo como evento social.

Berlioz se inspiraria em “Fausto”, de Goethe, na tradução em prosa do poeta Gérard de Nerval (1808-1855), para a composição de “Danação de Fausto” para orquestra, solistas e coro. Li a magnífica tradução de Gérard de Nerval em 1959 (Paris, Le Livre Club du Libraire, s.d.). Causou-me à altura forte impressão. Tão decisiva era a influência da língua francesa na Alemanha que Nerval comenta no prefácio da quarta edição, em 1853: “Com efeito, Goethe estudava em Strasbourg quando concebia Fausto e  preocupava-se tanto com a literatura francesa do período que se perguntou em dado momento se não escreveria a obra em francês, como o fizeram vários autores alemães de nascimento”. Franz Liszt (1811-1886), Charles Gounod (1818-1893) e mais outros seriam seduzidos pelo mito de Fausto? Em “Illusions Perdues”, o misterioso Carlos Herrera não teria “afinidades” com Mefistófeles do Dr. Fausto? Lucien de Rubempré, personagem essencial de “Illusions Perdues” e “Splendeurs et Misères des Courtisanes”, não buscará no suicídio, assim como a cortesã Esther, o ato derradeiro de Fausto? Sob outro contexto, Goethe, em “Os Sofrimentos do jovem Werther”, não lhe concede idêntico destino?

Apesar de Hector Berlioz ser o nome mais representativo da composição em França no período em que Balzac viveu, não foi seu escolhido, pois o criador de “Ilusões Perdidas” preferia Giacomo Meyerbeer (1791-1864), compositor em moda. Contudo, dedicaria seu romance “Ferragus” ao compositor da célebre “Sinfonia Fantástica”. Como curiosidade, encoraja Berlioz a viajar à Rússia e empresta-lhe sua pèlerine como proteção para o rigoroso frio do leste.

A colaboração intrínseca de poetas e escritores franceses com seus coetâneos músicos fez-se sentir através de libretos para as óperas, cantatas e outros gêneros. Emile Deschamps (1791-1871), Alfred de Vigny (1797-1863), Alphonse de Lamartine, para quem “a música é a linguagem do infinito, ligação do homem com o mundo espiritual”, reverenciaram a música. Franz Liszt inspirar-se-ia em alguns dos poemas contidos em “Harmonies Poétiques et Réligieuses”, de Lamartine, para a criação de obras expressivas para piano, assim como nas “Nouvelles Méditations Poétiques” para os seus “Préludes” para orquestra. O autor de “Le Génie du Christianisme”, François-René Chateaubriand (1768-1848), escritor notável, tinha pela música, mormente a sacra, uma profunda inclinação. Mme de Staël (1766-1817), romancista e ensaísta, professava que “nada retrata melhor o passado do que a música”; Alfred de Musset (1810-1857) escrevia que “a música o fez crer em Deus”; Théophile Gautier (1811-1872), poeta, romancista e crítico, deixaria quantidade expressiva de textos sobre música. Stendhal (1783-1842), autor do célebre “Le Rouge et le Noir”, entendia-se especialista em música e escreveu biografias de “Haydn”, “Mozart” e “Métastase”. Berlioz considerava-as bem fracas.

Curiosamente, a França não vê, nessa primeira metade do século XIX, obras para piano de um compositor  francês que tenham atravessado os séculos, pois a música para o teatro ou sinfônica, mormente a de compositores estrangeiros, preenchia as atenções. Essa concentração tecladística se daria na Alemanha. A aceitação das criações para piano do germânico Robert Schumann (1810-1856) em terras francesas dar-se-ia, possivelmente, por ter sido o músico, segundo o musicólogo Marcel Beaufils (1899-1985), o mais francês dos alemães.

Significativo lembrar que, nesse meio século em que viveu Honoré de Balzac, compositores e intérpretes, pianistas estrangeiros, foram glorificados. A concentração dar-se-ia em torno de Fréderic Chopin e Franz Liszt. Como divagação, essa ausência de compositores franceses escrevendo para piano não indicaria certa timidez frente a esses dois magistrais intérpretes? A presença forte da ópera italiana de Rossini (1792-1868) e Bellini (1801-1835), ou a do alemão Meyerbeer, assim como o sinfonismo alemão em Paris não teriam desviado intenções francesas destinadas ao instrumento solo? Berlioz e Félicien David (1810-1876) sequer pensam no instrumento. Tem-se a presença de Charles-Valentin Alkan (1813-1888), mas sua obra extremamente virtuosística e admirada por Liszt está longe de ser le langage du coeur externada in extremis por Chopin e Liszt,  frequentadores adulados nos salões parisienses. Essa questão não poderia explicar a presença, já na segunda metade do século XIX, de compositores franceses que escreveram magistralmente para piano, como Camille Saint-Saëns (1835-1921), Gabriel Fauré (1848-1924), Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937)? Excetuando-se a presença de Johannes Brahms (1833-1897), a música para piano alemã escrita para piano nessa segunda metade do século XX praticamente não resistiria ao tempo. Paradoxal.

Honoré de Balzac, tanto em sua vida privada como em poucas obras da enorme produção literária, apresenta ligação tênue com a música. Segundo  Théophile Gautier, Balzac não a reverenciava à altura. Escreveria que “Beethoven é o único homem que me faz ter inveja. Queria ser Beethoven preferencialmente a ser Rossini ou Mozart. Há nele uma pujança divina”. O musicólogo Jean Gaudefroy-Demombynes (1898-1984), em livro referencial, afirma: “Que se ame a música de outras plagas ou que se não ame, não faz diferença alguma: para Balzac, cuja obra aspira a constituir um inventário completo da sociedade, a música é um fato social que se deve ater a esse título, como o negócio, a pintura, o notariado ou a mediocridade” (vide item “Resenhas e Comentários” no menu). Se em “Illusions Perdues” a música, em seu conteúdo sócio-receptivo, é mencionada superficialmente, seria contudo em duas outras obras que  integram “La Comédie Humaine”  que Balzac se “instrui” sobre termos musicais e concentra atividades da área a seus personagens. Frequentador preferencial do espetáculo operístico, teria sido após conversas com George Sand (1804-1876) que Balzac incursionou na narrativa de figuras voltadas à música. Em “Gambara” (1837), o personagem central é fabricante de instrumento, tendo criado o panhamonicon. Balzac explica: “tão grande quanto um piano de cauda, mas tendo uma parte superior a mais capaz de substituir uma orquestra inteira, oferecendo harmonias mais grandiosas do que todas aquelas ouvidas até o presente”. Compositor desequilibrado que, quando ébrio, torna-se criativo, Gambara cria uma trilogia que recebe o nome de “Martyrs”, composta de “Mahomet”, “Jérusalem” e “La lutte des Réligions”. O personagem é igualmente autor do poema. Na “Ouverture”, Gambara apresenta os temas de sua ópera. Repetições temáticas que se apresentam levam Gaudefroy-Demombynes a opinar: “A ideia evoca irresistivelmente a ‘Tetralogia’, exemplo autêntico do leitmotif… Esse romance autorizaria a ver em Balzac o comentarista de Wagner, antes de Wagner!” (1955).  Do mesmo ano, “Massimilla Doni” (1837), num outro contexto, é uma duquesa respeitada. Em torno da personagem a música lírica desliza num ambiente de aficionados. Cultua-se, entre outros, Rossini. Torna-se significativa essa incursão do romancista eclético que, a fim de melhor apreender área não afeita, busca compreender terminologia musical e alguns elementos básicos. Para tanto, receberia Balzac conselhos musicais de um músico bávaro que admirava, Jacques Strunz (1783-1852).

Busquei sumariamente focalizar o período romântico na música e na literatura, tendo Honoré de Balzac como epicentro. Não houve a intenção de classificar o autor de “Illusions Perdues” como realista ou pré-realista. Tanto Balzac como Sthendal já apresentam as características fundamentais que marcarão o movimento na segunda metade do século XIX. As datas de nascimento e morte de escritores, poetas e compositores foram inseridas, para mostrar ao leitor o período essencial vivido por Balzac, a exata primeira metade do século XIX. Sendo apenas uma panorâmica, nomes faltaram. Contudo, a intenção foi evidenciar aspectos da inter-relação que se estabeleceu naquele período, sobretudo em Paris, entre músicos e literatos, tendo  Honoré de Balzac como epicentro, mercê da proposta de minha amiga, a professora e poetisa Maria Cândida Ribas.

A pintura como fundamento do élan romântico ficará para outra oportunidade, a abordar o olhar romântico mesclado à poesia e aos sons.  Contudo, fica registrada a lembrança preliminar de Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780-1867) e Eugène Delacroix (1798-1863), este último o nome mais representativo do período em França.

In this post I resume the subject of the relationship between literature and music during the French Romanticism of the 1st half of the 19th century, with focus on Berlioz and Balzac.