Considerações

Eu não falo evidentemente às crianças que são forçadas a aprender música,
mas àquelas cujos ouvidos são naturalmente atentos
a tudo que a vida tem de musical,
e que sonham com os ruídos da água, os ecos das músicas campestres,
as canções de ninar ou as cirandas.
Eu penso nessa vida interior não formulada
que é propriamente musical e que algumas crianças
reconhecem com espontaneidade em Mozart ou Debussy.
André Souris

É sempre prazeroso reencontrar amigos e conhecidos e trocar cordialidades ou ideias. Faz parte do convívio social. Jéssica frequenta a mesma feira-livre que há cerca de 20 anos me alegra aos sábados, pois a efervescência dessa atividade, cuja origem se perde na história, tem seu lado extraordinário. Casada, tem filhos pequenos. Disse-me que estava maravilhada, pois assistira pelo YouTube a uma menina de pouco mais de 10 anos tocando obras difíceis ao piano. “Como pode, meu amigo?” questionou-me. Sempre tive uma posição cautelosa quanto aos prodígios, mas apenas respondi que iria refletir sobre o tema e que sua pergunta estimulava-me a um post num futuro próximo. Passaram-se algumas semanas e o texto ora é publicado no blog. Como acontece, a maturação de um tema torna-se evidente durante meus treinamentos para as corridas de rua.

Tem-se de distinguir gênio e talento, dada a extrema raridade do primeiro atributo. W.A.Mozart (1756-1791) é a tipificação do gênio absoluto que, na infância, já compunha com maestria. A Música fez desfilar ao longo dos séculos pouquíssimos gênios compondo na precocidade. Na outra ponta, interpretação, há precocidades também geniais que comprovaram, durante a trajetória, que o termo estava apropriado. Entre muitos, poderíamos mencionar Wilhem Kempff (1895-1991), Claudio Arrau (1903-1991),  Georg Cziffra (1921-1994), Daniel Barenboim (1942-  ). O legado musical e a consequente leitura de seus livros evidenciam o absoluto domínio técnico-interpretativo desses pianistas ainda na infância e a presença de memórias prodigiosas. Essas qualidades inusitadas permaneceram, e a história reservou-lhes os lugares que eles fizeram por merecer.

Após a conversa com a amiga busquei na internet alguns dos inúmeros meninos prodígios. Presentemente o YouTube nos inunda com vídeos de precocidades, muitas delas originárias do Extremo Oriente. São crianças preferencialmente pianistas e violinistas, que exibem destreza invejável, proezas por vezes, chegando a causar impacto. Talentosos. Outros, nem tanto; e quantidade deles, sem comentários.

Estava a fazer elucubrações sobre o tema e lembrei-me de um precioso livro de João José Cochofel, “Opiniões com Data”, já mencionado em post bem anterior (12/05/2012). O autor, poeta, ensaísta e crítico musical português, posiciona-se em dois períodos, pois comenta, vinte anos após a redação de críticas selecionadas, suas posições, que nem sempre são concordantes com as de seu passado como articulista musical. Uma em particular chamou-me a atenção, justamente aquela a abordar a existência da denominada criança prodígio. Nessa, Cochofel aborda o retorno a Lisboa (Fevereiro de 1950) do menino prodígio Pierino Gamba, a fim de reger a Orquestra Sinfônica Nacional. ” O ‘caso’ Pierino não sofreu modificação do ano passado para cá, e o que então disse dele continua a aplicar-se-lhe por inteiro. Simplesmente o rapazinho vai crescendo, o sensacionalismo da sua precocidade deixa de ser um motivo de admiração, e acode-nos inevitavelmente esta pergunta: daqui a dois ou três anos, o que restará de uma infância lisonjeada até a idolatria, queimada no cabotinismo, explorada por um comercialismo repugnante? Será necessário que Pierino possua um excepcional estofo de artista para que saia incólume de tudo isso, pelo qual hoje não é responsável, mas que só por milagre deixará de agir na sua mentalidade, deformando-a, numa idade decisiva para a formação tanto física e psíquica como intelectual. Possuirá Pierino esse estofo? Não se tratará de um desses fugazes surtos, de certo modo vulgares nas crianças? Tudo parece indicar que não: o reflectido cuidado que põe nas interpretações, o começo de personalidade que lhes imprime e o labor que está por trás delas, a maneira como prepara a orquestra e que revela um sólido ofício”. Após outras considerações, o crítico conclui: “Só o futuro nos poderá elucidar”.

Em Março de 1965, Cochofel comenta: “E o futuro elucidou. Pierino deve andar agora pelos seus 26 anos. Largou a blusinha de gola e punhos rendados, largou os calções de veludo, largou o diminutivo do nome. Ficou um desconhecido”. Possivelmente por não estar a par da trajetória do maestro o autor tenha se equivocado, pois Piero Gamba (1936- ) desenvolveria uma sólida carreira, atuando até o presente frente a orquestras do maior renome. Não apenas é regente consagrado, mas professor e organizador de importantes atividades ligadas à música. Se Cochofel precipitou-se em sua conclusão, todavia sua apreciação sobre a existência da criança prodígio carrega enorme contributo, mormente ao discorrer sobre problemas que poderão advir do incenso ao talento precoce. “Mas que estragos não será capaz, antes do desabrochar de todas as faculdades, a má orientação, as medalhas que lhe põem no peito, os focos luminosos que acompanham, os livros e filmes biográficos ou pseudobiográficos que lhe consagram, enfim: toda a adulação de uma máquina de propaganda montada com todos os expedientes comerciais do tempo em que vivemos?” Estou a me lembrar da menina regente Giannella De Marco que, aos seis anos de idade, entusiasmou plateias brasileiras. Tinha eu doze anos em 1950 e fui ao Teatro Municipal vê-la reger. Causaria impacto. Ao crescer, outras foram as exigências da crítica e do público. Não resistiu. Tornou-se professora de piano do Conservatório de Roma. Evitava falar de seu passado de glórias na infância (http://www.vivaocharque.com.br/interativo/artigo07). Faleceu em 2010.

A minha reserva quanto à criança prodígio acentuou-se com a profusão desses miúdos na internet. Há realmente talento em tantos deles, por vezes em interpretações frente renomadas orquestras. Duas razões, uma da educação no lar e outra concernente à criação interpretativa, levam-me a questionamentos. Primeiramente, descoberto o talento, podem os pais, movidos pelas mais variadas razões, dedicarem-se a esse filho em particular, levando-o ao limite de um aprendizado? O caso da pianista norte americana Ruth Slenczynska (1925-  ) é exemplo. Apesar da carreira brilhante, lamentaria profunda e contundentemente a implacável fiscalização de seu pai desde os 3 anos de idade, quando começou a aprender piano. O crescimento harmonioso da criança se esvai e pais possessivos, aguardando o alentado sucesso, podem negligenciar o equilíbrio necessário à formação integral do miúdo, logo adolescente. E todo o mal está feito, talvez não intencionalmente. Uma segunda pergunta estaria ligada à interpretação. Por mais talentosa que seja a criança, haverá soberana a intenção do professor, entendendo-se que, para a realização acontecer, o mestre tem de ter qualidade comprovada. Teríamos, pois, o talento precoce à disposição das ideias competentes do professor. É um fato. Seria impossível uma criança na mais tenra idade compreender a essencialidade de uma fuga de J.S.Bach ou um tempo de Sonata de Beethoven, pois essa compreensão dar-se-á através dos anos, de estudos aprofundados e da experiência pianística. Tendo ouvido um sem número de crianças ao longo das décadas, mais me certifiquei dessas assertivas. Excepcional que seja a interpretação, impossível para um músico adulto não perceber determinadas inflexões da criança, pois, por mais que ela tenha o código a ela transmitido pelo mestre, haveria sempre essa presença espontânea, que é característica da idade infanto-juvenil. O prodígio sem o acompanhamento educativo harmonioso corre sério risco de estiolar-se. Quantas dessas crianças não abandonaram a música, já na juventude, por enfado? Interessa considerar que a maioria dos compositores e intérpretes de mérito não foram crianças prodígios, mas talentos embrionários que comprovaram, com o decantar das décadas, qualidades inalienáveis.

Reiteradas vezes inseri pensamento da lendária pianista e professora Marguerite Long: “Nada resiste ao trabalho”. Será através de disciplina, concentração, dedicação e ação amorosa durante toda a vida que o talento se desenvolverá com resultados. Para que essa trajetória seja harmoniosa e equilibrada, necessário será que o caminhar sereno e sem pressões já prepondere na infância, e que a música seja o principal objetivo, não o único, pois a cultura de um músico deve ser abrangente e não unilateral. Acrescente-se a importância da família nesse universo sonoro. Essencial.

With the web jam-packed with young geniuses showcasing their talents in different fields, I can’t help reflecting upon child prodigies and the reasons why so few fulfil early promises in adult life.