É o que Deveríamos Desejar para 2015
Quando as verdades são evidentes e absolutamente contraditórias,
o que tens a fazer é mudar de linguagem.
Antoine de Saint-Exupéry (Citadelle cap. CXXII)
O mestre é o homem que não manda;
aconselha e canaliza, apazigua e abranda;
não é a palavra que incendeia,
é a palavra que faz renascer o canto alegre do pastor depois da tempestade;
não o interessa vencer, nem ficar em boa posição;
tornar alguém melhor – eis todo o seu programa.
Agostinho da Silva
A passagem de ano se deu e todas as previsões apontam para um ano de dificuldades. Impossível acreditar que essa certeza ocorra graças ao acaso, nem tampouco aos últimos 12 anos de governo. Se a descrença acentuou-se para aqueles que formam a legião de 50 milhões de eleitores “oposicionistas”, práticas antigas recrudescidas ultimamente levam-nos ao ceticismo. A crise brasileira é endêmica. Desde a minha infância com ela convivi, ora em áreas específicas, ora no todo. Mudaram os governos, tivemos os anos de exceção com os militares, mas determinadas constantes jamais abandonaram uma índole característica de nossos dirigentes, a atração pelo ato que corrompe. Contudo, como realidade clara, ficou a certeza de que nenhum presidente no período de exceção enriqueceu. Não defenderia o regime que vigorou durante aqueles tempos, em que a liberdade teve sério tributo a pagar.
O tsunami que nos assola teve epicentro surdo e demorou muito tempo até que as empresas públicas mostrassem feridas laceradas. O ato corruptivo generalizado ganhou força à medida que, sorrateiramente, espalhava suas raízes devastadoras sem ser denunciado. Os escândalos dos últimos anos prenunciavam que algo aterrador poderia acontecer. É o fenômeno do recuo do mar, o silêncio momentâneo e o tsunami que nada poupa. O denominado petrolão nada mais é do que o avanço total das águas, a tudo destruir. Mas haverá ainda furacões e tornados que virão quando outras estatais, que não a Petrobrás, forem investigadas.
O ato corruptivo em termos brasileiros não tem limites. No artigo “Os quatro Cavaleiros do Apocalipse” (Folha de São Paulo, 16/12/2014), meu irmão, o respeitado jurista Ives Gandra Martins, aponta – sem precisar a geografia – quatro cavaleiros, o político, o burocrata, o corrupto e o incompetente. “O político, na maior parte das vezes, para alcançar ascensão na carreira, dedica-se exclusivamente à ‘desconstrução’ da imagem dos adversários”. E esclarece “Quem busca o poder, na esmagadora maioria dos casos, pouco está pensando em prestar serviços públicos, mas em mandar, usufruir ou beneficiar-se do governo”. A imagem do “cavaleiro” político se confunde em incontáveis oportunidades com a do corrupto, este só existente mercê da figura sinistra do corruptor. Este, um “quinto cavaleiro”, das trevas, geralmente silencioso e ativo, a ter legião de coadjuvantes formada por outro estranho personagem, o lobista, que infesta livremente os corredores do poder e que conhece as sendas que seduzem políticos e burocratas. E todo o mal está feito.
Essa é parte da triste realidade. Outra, a recente divisão ministerial, a atender unicamente às acomodações dos partidos “amigos”, faz antever impasses futuros. Impossível não se indignar com a indicação de tantos deles, ou de remanejamentos de outros, para ministérios que mostrarão as chagas individuais da ignorância. Exemplifiquemos: quando o grupo “Atletas pelo Brasil”, formado por muitos dos maiores ídolos do esporte brasileiro, fez duras críticas à nomeação do pastor evangélico e deputado George Hilton, de partido aliado ao governo, mas sem nenhuma experiência na área esportiva, justamente na segunda gestão da presidente que será a anfitriã das Olimpíadas de 2016, frise-se, as ponderações eram irrefutáveis. Escreve o grupo dos “Atletas pelo Brasil” em comunicado: “Como diz nossa missão, queremos ‘melhorar o esporte para melhorar o País’. Acreditamos piamente nisto. Somos uma associação de mais de 60 atletas de relevância para o esporte”. Inconformados, assinalam esses esportistas: “Exigimos muito mais respeito e cuidado com tudo que envolve o tema Esporte no Brasil”. Pertencem ao grupo atletas consagrados como Ana Moser, Raí, Ida e William. A presidente consultou figuras relevante da área? Que ela apresente uma, apenas uma credencial, que habilite o cidadão ungido para o fundamental Ministério dos Esportes. Contudo, haverá apoio do partido do ungido nas votações da Câmara. Para a presidente isso importa, infelizmente. O respeitado locutor esportivo do passado, hoje comentarista e jornalista irrepreensível, Flávio Araújo, escreveu em sua coluna www.ribeiraopretoonline.com.br (01/01/2015) a respeito da lamentável nomeação de George Hilton para o Ministério do Esporte: “Nomear para dirigir o do Esporte alguém sem nenhuma ligação com o mesmo é como escarnecer das tramoias na Petrobrás. É premiado para gerir a pasta alguém que não sabe o que é uma bola de futebol, uma rede de vôlei ou um bastão no atletismo. Não dá para digerir. Nomear alguém sem nenhuma vivência na vida esportiva do país, ainda mais sob suspeita e que só não teve seus passos devidamente investigados por essa excrescência que permite aos políticos zombarem vergonhosamente do povo brasileiro com sua impunidade é, quando mais não seja, um passo atrás para o esporte nacional”. No dia 2 de Janeiro, ao receber o cargo de seu antecessor, Aldo Rebelo, o ministro empossado George Hilton disse: “Posso não entender profundamente de esporte, mas entendo de gente” (sic).
A frase de Ives Gandra torna-se cristalina e repito essa triste verdade: “Quem busca o poder, na esmagadora maioria dos casos, pouco está pensando em prestar serviços públicos, mas em mandar, usufruir ou beneficiar-se do governo”. Se assim não fosse, pensar e sentir o Brasil implicaria a nomeação de especialistas nos vários ministérios para o desempenho pleno em um país que perde oportunidades nítidas de progredir. O que se vê é um loteamento sem precedentes na história da República. Pudesse cada ministro, no instante do convite da presidente, friso, pronunciar-se a respeito do que fará no desempenho de suas atribuições e teríamos a certeza do equívoco irreparável quanto às indicações de tantos deles, a prenunciar anos plúmbeos, como exemplificado acima.
A divagação tem sentido. Acredito que a palavra mais adequada, ao inverso da situação atual, seria responsabilidade. Houvesse assimilação integral do termo não estaríamos a passar por grande instabilidade constrangedora. Tivesse responsabilidade para com o país, para com o seu povo na essência essencial do termo, a governante saberia fazer suas escolhas a privilegiar, sine qua nom, o mérito como única via para a governabilidade. Não obstante, a necessidade imperiosa de obter maioria em votações nas duas casas do Congresso Nacional levou a presidente reeleita para os próximos quatro anos a decisões errôneas, o que poderá encaminhar o país ao impasse.
A tragédia que se abateu sobre a França e o mundo democrático – acepção do termo – não tem precedente moderno no país europeu. Todos os esclarecidos se comoveram após o ato insano cometido por fanáticos. Esse tipo de atentado tem recrudescido de maneira alarmante em todo o planeta. Algo tem de ser feito a reunir, consciente e responsavelmente, as maiores autoridades mundiais. Resoluções concretas têm de surgir. A humanidade já não mais suporta evasivas ou reuniões que só estabelecem intenções.
A referência advém do fato de que, ao saber dessa loucura que vitimou cartunistas e jornalistas do Charlie Hebdo, ter pensado imediatamente em meu amigo e ex-colega da USP, Dorinho Bastos, cartunista exemplar. Enviara ele um cartão de Natal em que o Papai Noel apresentava um repertório de amuletos e sinais contra malefícios que poderão ocorrer em 2015. Referia-se, creio eu, à condução de nosso país. Todavia, o infausto acontecimento parisiense evidencia que nem ramos de arruda, tampouco figas, ferraduras com sete furos, pés de coelho ou trevos de quatro folhas estão adiantando numa visão mais global. A charge do excelente Dorinho, que ilustra também este post, ficaria como nossa homenagem àqueles que tombaram na sede do Charlie Hebdo.
This week’s post reflects upon the word “responsibility” related to the present political situation in Brazil, where ministers are appointed according to political party interests and not the public good. Also mentioned is the unfortunate gunmen attack on the French magazine Charlie Hebdo. The illustration – by the Brazilian cartoonist Dorinho Bastos – is a tribute to the ones that lost their lives in the shooting.
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