Quando Relações Marcam a Existência
Jouis toujours du présent avec discernement,
ainsi le passé te sera un beau souvenir
et l’avenir ne sera pas un épouvantail.
Franz Schubert
Essa nova travessia, como todas as outras para a Europa, está sob a égide da Música. Não sei se terei um dia uma viagem para o Exterior unicamente de recreação. Diria, contudo, que em nenhumas das dezenas de deslocamentos para o Velho Continente meus olhos deixaram de perceber o cotidiano das ruas, a imobilidade vivificante dos museus, a paz de templos por vezes milenares, as diversificadas paisagens, os cantos de pássaros silvestres e, num patamar amoroso, as amizades, muitas delas já tendo ultrapassado o cinquentenário da afeição.
Brevemente escreverei sobre as teses que me trouxeram, neste final de Janeiro, à Universidade de Paris. Será a quarta vez, nestes últimos vinte anos, que adentrarei os velhos espaços da instituição, as duas primeiras para conferências e uma outra igualmente a integrar júri que examinava tese de doutorado. Quando há originalidade nos trabalhos acadêmicos, princípio essencial para uma meritória tese, já temos uma salvaguarda. Presentemente há muitos dados relevantes, mas prefiro um mínimo recuo de tempo para poder acomodá-los em meu pensar e transmi-ti-los resumidamente ao prezado leitor.
Estar entre amigos em Paris é privilégio. Já não são poucas as vezes em que mencionei os Roberts, família que comecei a amar nos meus sonhos de vida, quando os estudos pianísticos e musicais descortinavam um futuro incerto, mas com tênue luz no horizonte, a mostrar que poderia valer a pena continuar o caminho. Segui-o sem jamais me arrepender, e dadivoso foi o percurso que ainda não findou, a me proporcionar o vislumbre do multidirecionamento. E os Roberts, já decantados em post bem anterior (vide La Querye-Férias Inesquecíveis, 01/02/08), nunca deixaram de estar presentes, apesar de um oceano a nos separar. Estar em Paris, entre os Billys, é recordar projetando. Nicolle descreve programas violinísticos ainda não desvelados; Emmanuel, as peças egípcias, gregas, etruscas, que manuseia com perícia, revelando ao amigo a feitura da criação. Traços de fragmento egípcio ou as tanagras da Grécia antiga lhes são familiares. Colecionador na essência. Hospedo-me ou nos Billys ou nos Roberts, amigos fraternos entre si, e que sempre me acolheram com carinho.
Quando escrevi o blog sobre a Rue de Lévis, mencionei o excelente músico, compositor, arranjador e editor François Servenière. Amizade gerada pelo epistolar prolongou-se e nossos longos e-mails, a abordar interpretação e criação musicais, um dia poderão resultar em um opúsculo. Assim imaginamos. Polemista e pensador, Servenière comenta meus e-mails e suas observações abrem outras portas para novas divagações a respeito da arte. Foi uma emoção grande tê-lo conhecido pessoalmente. Perspectivas se abrem nesse amplo sentido de troca de ideias. Não é esse um dos princípios do maravilhamento ? Poder discutir livremente temas intrínsecos sobre a criação artística e o meio que nos cerca, por vezes asfixiante, sem quaisquer amarras ditadas pela Academia, o que torna o pensamento mais solto e conduzido pela fluidez das ideias. Mutuamente sentimos que ainda há muito a ser desaguado em nossos e-mails. Resultará.
Faz-se noite precoce nesta gélida Paris, mas a reunião que acaba de findar com o clã Robert trouxe-me alegria, surda nostalgia e a certeza de que laços verdadeiros de amizade são imorredouros. Amanhã viajo para a Bélgica de comboio. Essa Europa invernal não chega a esfriar minha emoção. Estarei novamente em Gent com velhos amigos. Tony Herbert me abrigará como sempre o fez. Sua esposa Tânia e seus filhos são encantadores. Com Johan Kennivé, o mago engenheiro de som, teremos três dias de intenso trabalho na masterização dos dois CDs Lopes-Graça gravados em Maio último. Verdadeiras obras-primas desse grande mestre estão agora fixadas. Missão a visar ao repertório desconhecido ou pouco frequentado. Não seria essa uma razão fulcral para que minha vida musical tenha um sentido pleno ? Continuarei…
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