A Intensidade a Tornar-se Pulsação
Quand la foi s’éteint c’est Dieu qui meurt
et qui se montre désormais inutile.
Antoine de Saint-Exupéry
Márcia é amiga muito querida. Escreveu-me que em uma palestra encontrou professora da USP por quem nutro profunda amizade, mas com quem não tenho contato há muito tempo. Nossa cidade descomunalmente difícil. Márcia comenta sobre a colega uspiana: “Ficou absolutamente surpresa, aliás, quando contei sobre sua chegada na corrida de São Silvestre. Depois de alguns minutos, contudo, refletiu e disse que você era capaz de fazer qualquer coisa a que se propusesse…”. Confesso ter achado graça no e-mail da amiga. Mas, como ocorre habitualmente, logo após fiquei a pensar sobre o assunto. O que nos leva a enfrentar desafios, vencê-los ou não, mas nunca desistir por desânimo ou receio de ver uma obra complexa não chegar a termo? Meu saudoso pai tinha algumas normas de conduta. Conceitos sobre disciplina, perseverança, entusiasmo, concentração foram, ao longo de nossas formações, insistentemente repetidos. Creio que parcela desses ensinamentos ficou gravada. O homem tendendo à síntese, devido às décadas acumuladas, encontra no amálgama das captações o seu norte, o traço que identifica o seu caminhar pela vida em direção harmoniosa ao seu término, ou recomeço, representado pela morte. As palavras da colega permaneceram gravadas à espera de um motivo para eclodirem em texto semanal. Meses após encontrei Laerte, que não via há umas boas duas décadas. Casualmente nos reconhecemos quando fui às compras na feira-livre do Campo Belo. Estava o ex-colega de escola de passagem, a visitar filhos e netos. Marcamos de imediato um café nas cercanias e, junto às recordações que se fazem necessárias nessas oportunidades, disse-me ele acessar meu blog com certa regularidade, graças a um companheiro de trabalho.
Tem acompanhado de longe a trajetória do amigo. A certa altura, perguntou-me: “há alguma norma ou explicação para o fervor?” Entenderia Laerte que o longo caminho tenha sido resultado do fervor. Não apenas considerei perspicaz a questão como, no que lhe disse naqueles breves momentos, ficaria plantada a semente da reflexão. Os amigos possibilitaram a germinação do tema para o presente post.
Vieram-me ensinamentos contidos em Citadelle, de Saint-Exupéry, sobre o fervor, uma das palavras-chave na construção de seu pensar. Não obstante a existência de conceituações diversas para o termo, referimo-nos ao fervor da convicção nobre, conditio sine qua non para se alcançar algo que almejamos. Sem ele, toda a realização apresentará uma falha que seja, a determinar que faltou a chama a ratificar a identidade de um feito, por pequeno que possa parecer. É o fervor que faz emergir a condição para que objetivo seja alcançado, que o torna real, harmonioso. Através dele, o trajeto, mesmo difícil, torna-se meta amorosa.
Fervor inequívoco, a ser entendido como espiritual, artístico, profissional, tem pujança a não corromper a palavra. Para os que vivem a intensidade da fé, fervor é sinônimo inalienável, convicção profunda a não permitir subterfúgios. Fervor não pode ser confundido com ganância, existente em todos os segmentos da atividade humana. Nessa categoria, denominada por Sogyal Rinpoche como aquela de “fantasmas famintos”, encontra-se o desejo do poder, o amealhar fortuna pela fortuna e todos os vícios decorrentes da compulsão pelo dinheiro, aparência do crescimento interior. Fervor não é ambição, mas flama que impulsiona a criação, o espírito. Nos longos voos noturnos, Saint-Exupéry era movido pelo fervor, a estender princípios de fraternidade, solidariedade e justiça à humanidade toda. Voz nas alturas, mas pregação tantas vezes não ouvida em outro deserto – não aquele por tantas vezes sobrevoado pelo autor -, o da esterilidade do sentir, pois o homem continua a perpetrar as mesmas distorções de sempre. Felizmente, a mensagem de Saint-Exupéry é atemporal e remete-nos a conceitos que podem ser encontrados através da história, sob égide outra, nos denominados livros sagrados. Na acepção, entendidos por poucos.
Fervor independe do talento. Se este existe, evidenciará a vontade férrea que frutifica e permanece. Todavia, fervor não é sinônimo de talento e a ausência deste deve expor resultado menor, mas não desprovido de empenho. Saint-Exupéry considera que “o grande escultor nasce do húmus dos maus escultores. Servem-lhe de degrau e são eles que o elevam”. E na concepção de Império que domina Citadelle: “…se você salva somente os grandes escultores, ficará privado dos grandes escultores”. Mas, há salvaguarda: “ O fervor da dança exige que todos dancem, mesmo aqueles que dançam mal. A não ser assim, deixa de haver fervor e passa a haver apenas academia petrificada e espetáculo sem significação”. Continua Saint-Exupéry: “Não invente um império onde tudo seja perfeito. O bom gosto é virtude de guardião de museu. Se você despreza o mal gosto, não terá nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardins. O trabalho da terra, que não é propriamente assético, causar-lhe-á repugnância. Dele você ficará privado, mercê do seu vazio desejo de perfeição. Invente um império onde simplesmente tudo seja fervoroso”.
Saint-Exupéry explica-nos a impermanência do fervor. Impossível manter a chama fervorosa noite e dia: “Aqueles que desfalecem e tencionam fazer crer que estiveram a agir sem interrupção, mentem. Mente o sentinela das muralhas que dia e noite proclama o seu amor pela cidade. Contudo, ele prefere a sopa”. Esse fervor que persiste é cantado, mas pode ser trocado ou interrompido pelo cotidiano, sempre negado pelos que professam a presença dessa vontade férrea. Poetas, amantes, viajantes e até santos não seriam avessos a essas interrupções. “Mente o santo que confessa dia e noite contemplar Deus. Às vezes, Ele o abandona à semelhança do mar. E ei-lo mais seco do que uma praia de seixos”. As obras de artista em qualquer das áreas não estariam sujeitas, num outro contexto, à ineroxabilidade de as entendermos realizadas com maior ou menor fervor? Não necessariamente, mas todos os que permaneceram pela qualidade nem sempre atingiram em seus trabalhos o patamar da obra-prima. Falta de inspiração, de fervor? A impermanência na perfeição também atinge os grandes criadores.
Sob outro aspecto, o fervor que permanece, intermediado por tantas outras circunstâncias, lembra o que pensava o compositor russo Alexandre Scriabine. Sentado em um café frente a lago suíço, escreveria, ao ver uma carruagem passar que o grande Eu existia no ato de compor, enquanto o pequeno eu estava atuante a contemplar a carruagem e a tomar chá. Grande Eu do fervor, da criação, condição essencial para que quaisquer metas sejam atingidas amorosamente. Se o fervor, por tantas razões naturais, como adversidades, tragédias, desinteresses outros, fenece, o princípio gerador que leva à realização transfigura-se, a se tornar perceptível a ausência da flama. É ainda Saint-Exupéry que escreve: “Digo que minha obra acabou quando o meu fervor desaparece”. Eu acrescentaria, a independer da faixa etária, pois inúmeras obras que a história preservou foram realizadas no ocaso da existência de seus criadores. Quando a chama intrínseca se apaga, em circunstâncias tantas vezes misteriosas, o homem deixa tombar seu estandarte.
Citadelle contém sabedoria. É a síntese de um pensador que entenderia o fervor, a responsabilidade, o amor, a compreensão do homem com seus defeitos e qualidades, numa ampla acepção. Não há panfletarismo, tão em evidência nos dias de hoje. O fervor ou fé, em contexto próximo e amalgamado, seria a salvaguarda do ser humano sincero, espiritual, a buscar a verdadeira integração fraterna da humanidade. Ainda há tempo para esperanças.
This post is a reflection on the meaning of the word “fervour” as Saint-Exupéry understood it in his book Citadelle (The Wisdom of the Sands): an inner flame essential in the process of man’s full growth.
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