“Captar o Passado, Apreender o Presente, Pressentir o Futuro”
Para mim, a criação musical não exige somente talento,
mas também, e antes de tudo, caráter, personalidade,
a certeza de que temos um caminho a seguir,
mesmo que modesto,
e que nada conseguirá nos tirar do caminho.
Serge Nigg
Quer-me parecer que um compositor deve ser,
antes de mais, um homem de cultura
que saiba traçar grandes linhas de força sobre o tempo.
Eurico Carrapatoso
Serge Nigg é compositor francês de grande mérito. Após estudos com Olivier Messiaen, conheceu René Leibowitz, que o introduziu na técnica do dodecafonismo serial logo após a Segunda Grande Guerra. Em 1946 escreve obra primordial, Variações para Piano e 10 Instrumentos, na qual teria pela primeira vez em França utilizado a técnica dodecafônica. A partir de 1950 se distancia da técnica serial, que seria, entretanto, tendência entre os jovens compositores. A partir dos anos 60, a utilização do dodecafonismo em Nigg estaria conjugado com a busca da beleza sonora, da estrutura impecável e da não concessão. Autor de composições reverenciadas e abordando vários gêneros, interpretado por músicos de primeira grandeza, foi professor respeitado no Conservatório Nacional. Prêmios e condecorações, assim como funções essenciais em instituições relevantes da cultura e das artes em França, marcaram a existência de Serge Nigg.
Em depoimentos que se prolongaram durante mais de dez anos (1998-2008), até os estertores da existência, Serge Nigg respondeu a inúmeras perguntas formuladas por Gérard Denizeau (Serge Nigg, compositeur – capter le passé, apprénder le présent, pressentir le futur. Entretiens avec Gérard Denizeau. Paris, Université Paris-Sorbonne, Observatoire Musical Français, Série “Temoignages”, nº 3, 2010). A fazer parte da Collection Observatoire Musical Français, dirigido pela ilustre professora Danièle Pistone, o testemunho de Serge Nigg tem real valor, pois, através de um profícuo diálogo, o compositor revela qualidades inerentes do pensador e temáticas perpassam os depoimentos envolvendo aspectos musicais, humanísticos e da arte como um todo.
Aderiu com fervor à escritura serial dodecafônica. Exemplefiquemos para os leitores não músicos: foi a partir dos anos 20 que o atonalismo – liberdade frente à tradição tonal – se expandiu e avançou pelos países ocidentais. Um novo léxico musical ganhava força. Num breve resumo: existem doze sons na escala temperada ocidental. Tendo o piano como exemplo fácil de entendimento, encontramos sete notas brancas e cinco pretas. Schöenberg e seus discípulos partiram para o emprego de uma série de doze sons sem que houvesse a repetição de qualquer um deles na organização proposta. Dispostos pois sequencialmente, formavam o alicerce de uma obra em sua essência. Nigg, na sua juventude, entusiasma-se com essa soma de mais cinco notas suplementares às sete da escala tonal. Como um dos exemplos dessa cartilha que obedecera, a recusa da repetição exata, como praticaram compositores barrocos e clássicos. Considera: “ignorava na época que a ‘repetição’ carregava a ornamentação”, princípio tão praticado nos períodos citados. Observa: “Schöenberg no fim da vida, compreenderia o caráter desumano de seu método”. Teria consciência mais tarde dos excessos produzidos pelo fanatismo a que tinha chegado, fazendo a crítica tardia a essa exacerbação que se apoderou de toda uma geração naqueles anos pós guerra, a entender como infortunado o músico que não aderisse às novas tendências.
Contrário a concessões e desconfiado de sucessos imediatos, Serge Nigg entende que há tênue fronteira, por vezes, entre obra prima e outra, medíocre. Ter ouvido obras de compositores que tiveram aceitação em suas épocas e muito bem escritas e, sob outro contexto, criações consagradas, mas desprovidas de originalidade, leva-o a pensar na diferença fundamental entre a arquitetura e a música. Naquela, a solidez é premissa, mesmo que esteticamente o edifício se apresente como um fracasso. Na música “grandes sucessos musicais poderão não satisfazer aos teóricos, da mesma maneira que uma disposição harmônica agradável aos olhos pode soar apenas aceitável. Em contrapartida, partituras impecáveis do ponto de vista escritural e das técnicas de composição podem muito bem atingir um miserável resultado sonoro”.
Por meio de metáfora, compara o ex-aluno que não consegue libertar-se do aprendizado à criança que, ao começar a ensaiar os primeiros passos, titubeia. Contudo, ao tornar-se maior, andará normalmente, ao contrário do eterno aluno. Defende a liberdade de expressão, mas observa: “o artista sabe, melhor do que ninguém, a que ponto o livre arbítrio é conquista perigosa; para apreciar a liberdade plenamente, deve ele ganhar uma certa serenidade, condição de sua realização como criador, na plena acepção do termo”. Conscientemente questiona o criador: “O que é o verdadeiro artista criador, a não ser aquele que conjuga o controle do instinto, a evidência do estilo, a recusa de soluções fáceis e, sobretudo, a originalidade do emprego de meios – mais que os meios em si – com uma afetividade profunda ? Mas sem a técnica, e se apenas subsiste a afetividade, a obra não existe”.
É cáustico ao abordar modismos. Entende perigosa a posição de tantos compositores e intérpretes que se preocupam com o que está vigente, numa alusão não apenas a procedimentos como à possibilidade material. Afirma: “Nenhum compositor poderá afirmar que sua música sobreviverá; mas, um método seguro para escapar da posteridade é seguir os ukases da moda. Ela passará seguramente, a música nesses termos também, enquanto, em outro contexto, a música pensada fora dos modismos conserva uma chance de se increver na história”. Torna-se um axioma para Nigg frase atribuída a Arnold Schöenberg e de “admirável consistência moral”, que poderia ser aplicada a todos os artistas criadores: “há meios degradantes de emocionar”. Serge Nigg combateria durante décadas aquilo que ele considerava a febril busca da reputação, a necessidade feérica de tantos, através da mídia, de agradar sob qualquer pretexto, contrapondo-se à reflexão: “apreciam-se melhor os raros oásis do gosto e da beleza que pagariam todo o resto”. Em outro contexto, comenta que novas gerações adoram julgar obras a partir da dificuldade que ela possa apresentar. Os depoimentos colhidos anos antes da morte encontram Nigg num espírito de síntese, a considerar a criação pelo essencial, independente da acolhida pública hostil ou favorável. Detém-se sobre a única questão que merece resposta: a obra traz alguma coisa para a música, para sua história, para a sua estética” ?
Sabemos que a música eletro-acústica é bem ventilada pela mídia. Apesar disso, merece por parte do público guarida bem discreta, se comparada à grande acolhida do repertório instrumental. Seria possível pressupor que o contato humano direto, geralmente inexistente, esteja a apontar as causas, mesmo que Festivais tenham público aficionado. Nigg observa “De minha parte, fui sempre totalmente alérgico à música eletro-acústica. Por temperamento, eu não a suporto: esse material é algo que me é perfeitamente estranho. Para mim, os sons eletro-acústicos são sons mortos, enquanto que nada me parece mais belo que o som do violoncelo, de um oboé ou de um violino. Por quê ? Pelo fato de serem sons fabricados pelo homem, produzidos por sua ação, e que ele pode modificar à vontade. Eis o que é um som vivo ! Sempre fui partidário da música instrumental pura, por gosto e temperamento. Acrescento que acredito extremamente grave que alguns possam imaginar que a música do futuro seja música de engenheiros com jalecos brancos, manipulando botões. A ideia da máquina intrusa e da ciência puramente especulativa na música, expressão a mais profunda do gênio humano, é uma noção que me aterroriza”.
Serge Nigg vê com cautela a proliferação de compositores, a acreditar que muitos jovens, ao sairem dos bancos escolares, já se consideram criadores. Para ele, todo grande compositor é um grande técnico, conhecedor profundo do métier. Saberá esquecer receitas adquiridas no aprendizado e terá sua linguagem, após consciente assimilação. O grande é, simplesmente. Considera que, se no passado conhecia músicos de todas as áreas, atualmente não existem senão “… compositores ! Diria que todos foram subitamente tocados pelas graças das musas” ! Cita Schöenberg, que afirmaria que, dos mais de mil alunos que teve durante cinquenta anos de ensino, dez teriam feito carreira. Destes, segundo Nigg, permaneceram Webern, Berg, Eisler, Zillig, Robert Gerhard e Skalkottas. Se considerarmos que apenas os dois primeiros podem figurar no firmamento dos ‘grandes compositores’, tem-se algo para reflexões”. E dessa quantidade abusiva de compositores hoje, conclui: “Quando um Festival especializado anuncia, como exemplo, ’80 criações mundiais’, tem-se frio na espinha”.
Serge Nigg tece instigante observação nessa ampla visão que a idade proporcionaria: “É necessário compreender que o compositor, ao atingir o crepúsculo, é um homem que consagrou quase todas as forças para construir um mundo abstrato, um universo sonoro que corresponde fielmente àquilo que ele pretendeu. Asseverou-se de estabelecer leis e respeitá-las, jamais cessando de observar que os frutos de seu trabalho o levaram a múltiplas interrogações. Combateu todas as tentações da fantasia que podem permitir derivações, mas sempre a ter em conta a impalpável palavra nomeada inspiração… e que nem sempre está disponível ! Seu caminho é de uma lógica inevitável, mas a que preço, a não ser o da solidão” ?
Após tecer admiração pelos intérpretes profissionais – “escuta segura, instinto musical, senso dos andamentos, infalibilidade rítmica, etc.”- Nigg comenta determinado tipo de compositor “É muito desagradável verificar homens desprovidos da mais elementar bagagem musical imporem a grandes executantes diretivas que eles não dominam sob qualquer hipótese”. Pormenoriza-se nesse caminho complexo, no qual experiências até bufas são aceitas, considerando-as como falsificação. Agrada aos snobs inconsequentes e à crítica incompetente”. É severo e convicto quando julga “Não sou contra certa forma de provocação, não me desagrada essa mexida nos hábitos do público habitual, mas não admitirei jamais que o gesto sagrado da criação artística seja ridicularizado, mormente quando a grosseira mistificação tem como única função dissimular a vacuidade do saltimbanco de plantão”.
A respeito da obra aberta é categórico. Sem condená-la, pois não se mostra ditatorial, acredita que obra esboçada, a ser completada pelo intérprete, não pode receber o status de obra, entendendo-se a sua compreensão desde o Renascimento. Desenvolve raciocínio lógico ao observar: “Que seria de um romance a ser completado pelo leitor, da estátua na qual tenhamos a liberdade de suprimir ou acrescentar um membro ? A grandeza de uma obra reside na aposta, que faz supor o acabamento”.
Sobre a tão decantada desacralização, Nigg diz que a palavra o irrita. “Desacralizar o quê ? A Arte, o artista ? A obra ou seu autor ? Na verdade, trata-se, de certa maneira, de tentativa de certos funcionários da ‘Cultura’ justificarem suas existências, suas atividades… eventualmente seus salários” ! Mostra-se implacável ao dizer que “acreditar que basta um pequeno toque de varinha mágica para esvaziar milênios de tradição, isso se chama utopia”.
A uma pergunta provocativa de Gérard Denizeau, responde a questionar “O que é na realidade progresso em arte ? Outra coisa concernente ao passado, bem entendido; mas podemos falar de um progresso em forma de qualidade ? Podemos fazer algo melhor do que o canto gregoriano, do que a Catedral de Chartres ou da Missa em si, ou mesmo Don Giovanni… ? Que haja obrigação de renovar-se o material, os meios técnicos; porém, os princípios de elaboração de uma obra, a história nos ensinou”. Seu pensamento se estende à necessidade de redefinição inclusive da finalidade da arte e, nesse raciocínio, seu vocabulário e sua sintaxe. Nesse permanente fluxo, que pressupõe movimento e evolução, Nigg questiona se é possível fazer-se melhor, sobretudo se forem pensados períodos históricos difíceis.
As posições precisas, onde não há espaço para o tergiversar, tiveram exemplo claro na sua postura quando participou de júris: “Não é fácil quando se é compositor, mas o essencial é não se referir ao seu próprio gosto, à sua própria estética. Haveria nesses casos um intolerável abuso de poder; pois, no desenrolar de sua carreira, o artista já terá de suportar a ditadura do gosto, do dinheiro, do comércio, da política, etc. Melhor não o intimidar já nos primeiros passos”.
Os depoimentos de Serge Nigg bem evidenciam o artista em sua avaliação autocrítica nos anos finais da existência. Compositor e pensador mostram-se amalgamados e a concessão ficaria rigorosamente soterrada. Ao dizer, no curso do longo depoimento de uma década, que “a abnegação é necessária, como a paciência, a perseverança, a coragem a toda prova, uma certa capacidade de suportar o isolamento físico e a solidão moral”, já não demonstraria qualidades inalienáveis que o tornaram um dos grandes músicos franceses do século XX ? Pouco a pouco, Serge Nigg compositor ressurge. É bom sinal.
Comentários