“História de orquestras de baile do interior de São Paulo”
Violinos, violas e violoncelos foram abolidos
e os instrumentos de sopro foram aumentados,
compondo seções que dialogavam entre si.
Estabeleceu-se um naipe de três ou quatro trompetistas sentados na última fileira,
e outro à sua frente, de dois ou três trombonistas,
permitindo-se certa autonomia entre ambos.
De outra parte o número de saxofones saltou para três,
possibilitando a emissão de três notas diferentes,
o que, teoricamente, é o mínimo necessário para formar um acorde.
Zuza Homem de Mello
A massificação da cultura musical de entretenimento tem aceleradamente descaracterizado princípios vigentes até décadas atrás, relegando o conteúdo da música – no presente, multidirecionado -, tantas vezes, a um pormenor, pois lampejos do que possa assim ser entendido configuram-se apenas como aparência. A mitificação de ídolos efêmeros, que mais parecem fantoches incandescidos, saudados e imitados por dezenas e dezenas de milhares de jovens com gestuais braçais bem próximos ao que se viu perpetrado pela juventude hitlerista, seria a evidência do culto sem revisão, fanatizado e bestificado. Decibéis altíssimos encobrem a pobreza musical absoluta, camuflada pela parafernália luminosa, estonteante e hipnótica. “Ídolos”, que vociferam acreditando cantar, percorrem a cena como desvairados, semi- desnudos e fartamente tatuados, “músicos” em gestuais desconexos estimulam a malta que, quão mais excitada, mais incentiva a escalada dos decibéis manipulada por técnicos. Essa juventude, que está a ser moldada nessa aberração musical, sequer sabe que o Brasil viveu um período extraordinário em que a música de entretenimento era realmente música, professada por profissionais instrumentistas que, durante décadas, formaram conjuntos que se apresentavam no interior do Estado de São Paulo alegrando gerações, as big bands paulistas.
Um fato evidencia que o contexto a envolver passado e presente, acima mencionado, pode ser constatado durante as 24 horas do dia em várias emissoras FM. A música que se ouve nessas rádios, no que tange à grande divulgação, privilegia a música norte-americana. A minha geração ouvia canções consagradas pelas vozes de Frank Sinatra (1915-1998), Bing Crosby (1903-1977), Sarah Vaughan (1924-1990), Louis Armstrong (1901-1971), Ella Fittsgerald (1917-1996), Nat King Cole (1919-1965), assim como as extraordinárias big bands dos Estados Unidos. As rádios que divulgam o repertório de alto consumo privilegiam hoje, majoritariamente, a música advinda dos grupos norte-americanos e alguns europeus e seus líderes, que apresentam aquilo que as multidões ouvirão nas arenas espalhadas pelo Brasil, apenas, obviamente, sem a parafernália das luzes, o que acentua ainda mais a pobreza dessas manifestações “musicais” envolvendo letras de baixa qualidade. E só de pensar que uma juventude não pensante permanece dias, semanas ou meses a espera desses conjuntos!!! Se as big bands paulistas sofreram influência das norte-americanas, os grupos roqueiros brasileiros, nas várias configurações, tentam apreender o que de mais estupefaciente emana desses grupos acima do Rio Grande, resultando espetáculos quase sempre caricatos.
“Big Bands paulistas – História de orquestras de baile do interior de São Paulo” é livro referencial (São Paulo, Edições Sesc, 2017). Seus autores, José Ildefonso Martins (pesquisador, professor e advogado) e José Pedro Soares Martins (jornalista e escritor) realizaram um trabalho sério no intuito de resgatar, no interior do Estado de São Paulo, um período musical que estava basicamente mergulhado no ostracismo.
Li com grande interesse, pois habituei-me na mocidade, onde imperavam os bailes para jovens e adultos, apesar de minha formação voltada à música clássica, erudita ou de concerto, a admirar a destreza e o empenho de orquestras dirigidas por Sílvio Mazzuca (1919-2003), Georges Henry (1919-2003) e Erlon Chaves (1933-1974), como exemplos.
“Big Bands paulistas” não tem o ranço acadêmico. O texto flui com a maior naturalidade, não dando a perceber a pesquisa profunda em torno do tema. Tem-se o prazer da leitura à medida que as big bands do interior vão desfilando, nas penas dos autores, caracterizações peculiares como elegância dos trajes, respeito aos ambientes, escolha do repertório, confraternização, liderança do maestro e o puro prazer do público que frequentava salões e clubes. Na apresentação do livro, no auditório do SESC-Vila Mariana, os autores explanaram o projeto que levou à edição e passaram vídeos da época das big bands paulistas. Apesar de antigas filmagens, percebe-se o profissionalismo dos músicos e a vontade da apresentação condigna.
Será lógico entender que, para as gerações de antanho, o livro “Big Bands paulistas” apenas ratifica e sedimenta conceitos que delas tinham. Basicamente perduraram durante trinta anos, de 1940 a 1970, sendo que pouquíssimas ainda persistem nesse apego à tradição e voltadas para público que não as conheceu nas origens, mas que sofreu influência transmitida por ascendentes. Os autores salientam uma das causas dessa desativação progressiva das big bands: “O advento dos instrumentos eletrônicos é apontado como um dos elementos responsáveis pelo declínio das orquestras do interior de São Paulo, já que o modelo de música baseado em um número reduzido de músicos mostrou ser economicamente imbatível. Não era possível, para as orquestras de grande contingente e logística complicada, competir com aqueles grupos mínimos de jovens que espelhavam o espírito da época”. E a acrescentar, a existência tardia dos DJs, alguns deles “ídolos” de uma juventude com valores bem diferenciados.
Saliente-se que as big bands paulistas não são autógenas e surgiram sob a aura estabelecida pelos conjuntos que grassaram nos Estados Unidos, mormente em torno dos anos 1930. Para os menos jovens, ficaria a lembrança dessas fantásticas big bands norte-americanas dirigidas por músicos de primeira categoria, hábeis em um ou mais instrumentos, como piano, saxofone, trompete e trombone, preferencialmente. Citemos as big bands de Glenn Miller (1904-1944), Harry James (1916-1983), Tommy Dorsey (1905-1956), Count Basie (1904-1984), Duke Ellington (1899-1974), Dizzy Gillespie (1917-1993), Benny Goodman (1909-1986), Les Elgart (1917-1995) e outros igualmente relevantes. Dois músicos, saudosos amigos, atuando em áreas distintas, eram fascinados pelas big bands americanas. Dick Farney (1921-1987), cantor e pianista, intérprete dos grandes sucessos da música norte-americana, e Gilberto Mendes (1922-2016), um dos mais importantes compositores de nossa história. Mendes, em várias composições e em segmentos de seus livros, testemunha sua incontida admiração.
José Ildefonso Martins e José Pedro Soares Martins historiam de maneira clara e didática a aparição das big bands no interior do Estado de São Paulo a partir dos anos 1940, num período em que a ideologia voltada ao nacional era cultivada e a “matriz” do gênero estava absolutamente sedimentada nos Estados Unidos. Guardando-se as devidas proporções qualitativas, graças à formação dos músicos nos dois países, as big bands de São Paulo mantiveram – algumas ainda continuam a atividade – nível bem satisfatório. Os autores de “Big Bands paulistas” salientam a formação condigna dos integrantes das nossas big bands mercê “…da importância que o movimento de canto orfeônico assumiu em território paulista. Muitos dos componentes de orquestras de São Paulo no período tiveram seu primeiro contato com a música por meio do canto orfeônico nas escolas”. Aliada a essa formação condigna, a influência benfazeja dos conjuntos norte- americanos estendia-se também a aspectos como o elegante trajar, o gestual, quando naipes “solistas” tocavam determinado segmento de uma melodia e os músicos se levantavam e direcionavam seus instrumentos para a direita, para a esquerda ou para cima, e a presença de um crooner que encantava o público com suas canções de caráter preferencialmente romântico. Contudo, as big bands do Estado de São Paulo mantinham em seu repertório as músicas mais divulgadas norte-americanas, assim como sucessos latino-americanos – boleros, de preferência – e brasileiros, em particular.
Os autores de “Big-Bands paulistas” apresentam as “entranhas” desses conjuntos. Contam suas origens, constituição e particularidades de cada cidade que as abrigava. Não descartam, inclusive, o meio de transporte, pois geralmente cada big band possuía micro-ônibus ou peruas para apresentações fora de seu município. Algumas chegavam a apresentar-se cerca de uma centena de vezes em um ano e aqueles veículos de transporte eram saudados ao chegar em determinada cidade. Destacam a amizade e confraternização existente entre os membros do conjunto, o que permitia um entrosamento mais homogêneo entre os músicos. Pormenorizam a fixação de tantos deles durante muito tempo em um grupo, assim como a passagem de outros para big bands de cidades paulistas que cultuavam o gênero. Desfilam pelo livro, pormenorizadamente, as big bands de Catanduva, Espírito Santo do Pinhal, Franca, Guararapes, Jaboticabal, Jaú, Rio Claro, São José do Rio Preto, Tupã e outras mais.
“Big Bands paulistas” tem como posfácio “As orquestras de baile e sua época”, assinado pelo professor Sérgio Estephan. Dá relevo à Era do Rádio no período estudado e evidencia a importância do Rio de Janeiro nesse mister e do Cassino da Urca, que em determinado momento chegou a contar com três orquestras.
Considere-se que as big bands destinavam sua atividade musical preferencialmente para o baile, que permanecia como um dos grandes eventos sociais das cidades mencionadas. Todas as transformações de uma “música”, hoje massificada e destinada a público de dezenas de milhares de frequentadores, obscureceram um passado de encantamento. Como afirmam os autores: “Resgatar a época de ouro das big bands paulistas constitui o objetivo principal deste livro”. Parte de nossa história musical de entretenimento é vivificada e causa a mais profunda admiração. Entendo “Big Bands paulistas” como obra indispensável e que merece a maior acolhida. Recomendo-o vivamente.
Recovering a musical era that has been forgotten, the book “Bing Bands paulistas” tells us detailed stories of dance orchestras that — influenced by American big bands — flourished between 1940 and 1970 in the state of São Paulo, particularly in inland towns. In their golden age, bands with skillful musicians toured the State with carefully chosen repertoire and grueling performances in ballrooms, shows and on TV, only to decline in popularity as times and tastes changed. Written by José Ildefonso Martins and José Pedro Soares Martins after a serious research, the book is a must-read for any music lover.
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