Navegando Posts publicados em março, 2018

Quando a história sofre interpretação “atualizada”

Na estrada por que vou
Não fujo do meu norte.
Edmundo Bettencourt

No blog anterior fiz um balanço de minha relação com a obra para piano de Claude Debussy. Recebi número considerável de mensagens sobre o levantamento realizado. As décadas foram testemunhas confiáveis.

Li na imprensa estrangeira uns poucos artigos lembrando o dia do centenário da morte de Debussy, 25 de Março. Abordavam preferencialmente a vida do compositor e menos suas criações. É compreensível. A força da mídia está sempre propensa a revelar as entranhas das vidas de mediáticos que, divulgados ad nauseam, propiciam pautas diárias nas colunas de entretenimento de jornais, revistas e substancialmente, sob outra égide, nas redes sociais.

Por motivos óbvios percorri, ao longo das décadas, não apenas as composições, como igualmente a ampla literatura sobre Debussy e sua imensa atividade epistolar. Quanto às biografias, as de Léon Vallas, Edward Lockspeiser, Marcel Dietschy e, sobretudo, aquela que entendo a mais preciosa, “Claude Debussy”, de François Lesure, mencionada no blog anterior, possibilitam apreender o perfil da trajetória do compositor.

Tenho sempre certa cautela ao ler textos sobre autores em datas comemorativas. Muitas vezes, articulistas não especializados e sem o debruçamento necessário sobre tema proposto, mas impelidos pelo imediatismo, escrevem suas apreciações a partir de biografias internéticas e outras mais encontradas em enciclopédias ou nas histórias de determinadas áreas. Retiram o que lhes convém e passam ao leitor a “homenagem atualizada”. As matérias que li sobre a vida de Debussy atêm-se aos costumes, amores, superficialidades, dificuldades financeiras e um certo mundanismo. Essa hedionda “atualização” tem em conta, na mente dos articulistas, a visão de Debussy homem como se vivesse hoje, orientando-se o escriba pelos valores atuais, transplantando o período preciso vivido por Debussy para o presente. Qual a razão de transmitirem ao leitor os envolvimentos amorosos, o cotidiano bem próximo ao da maioria dos homens e tantos outros episódios da vida de Debussy sob visão não aprofundada? Importa para a empresa à qual está ligado o articulista tornar palatável e até excitante o que deve ser publicado. O mais grave é que articulistas realizam essas “atualizações” sem rubor. Opinam e o leitor que tire suas conclusões. O leigo absorve o que lê e todo o equívoco sedimenta-se. A mídia camufla a essência, doravante transfigurada, e vende a imagem que deve ser consumida. O compositor e pensador François Servenière, em mensagem recente, observa: “Os jornalistas não especializados na área musical são incapazes de fazer a crítica musicológica, restando-lhes a crítica social ou de costumes, em suma, aquela que ele vivencia”. Se atentarmos a uma outra área, o cinema, a vida de Jesus Cristo é “vivida” de acordo com as circunstâncias e os costumes do momento e o livre arbítrio de diretores. Jesus Cristo já foi retratado em situações constrangedoras, por vezes infamantes (sic). A mídia, como sempre o faz, a depender dos interesses, incensa a versão que causará impacto e a malta comparece para constatar a nova versão.

Não são poucos os articulistas que, ao penetrar na apreciação da obra de um autor, navegam em mares desconhecidos e só escrevem o óbvio, pois sem o embasamento para apreciações ao menos palatáveis, redigindo seus textos a partir de excertos espalhados pelas mais diversas fontes, hoje acessíveis na internet. Na precisa área musical consideremos no passado os artigos ou críticas sob as penas de compositores, musicólogos, professores de música com aptidão para a escrita literária. Podia-se confiar nas avaliações, pois era certo que essas tinham origem sólida, tantas vezes de profunda originalidade. Tenho reiterado inúmeras vezes em meus blogs que, em termos brasileiros, o soi disant crítico tem no máximo um verniz musical. No campo da análise, mostram-se perdidos, pois, desconhecendo as teorias do passado, fazem a leitura de obras analíticas das últimas décadas, que sequer entendem, “ex-catedra”. Aliás, a grande maioria dos músicos também não decifra as análises hodiernas. Estive em Congressos no Brasil e no Exterior e acentuam-se as análises de composições a partir da era tecnológica, com a mostragem de gráficos e mais gráficos. Comentava com um expositor em Londres sobre sua análise plena de gráficos. Verifiquei que intérpretes presentes nada entendiam. Ao final afirmei-lhe que, para mim, aquela apresentação afigurava-se-me como um exame cardiológico, sem coração. Durante concerto camerístico que se seguiu, observei que os poucos participantes que haviam exposto quantidade de gráficos não estavam presentes. Será que realmente gostam de Música? Tenho minhas dúvidas. Sobre Debussy há livros obedecendo esse caminho pleno de gráficos, com explicações anexas ininteligíveis até para músicos experientes. Aprisionam nesse grafismo o que há de fundamental na obra de Debussy, pois negligenciam a essência da busca do som, do timbre e essa qualidade das proporções sonoras que leva ao desvelamento e faz entender o estilo do compositor. O notável François Lesure tinha a maior reserva  com essas muitas tendências a partir da tecnologia, assim me confessou. Acolhia-as quando especialistas as apresentavam, mercê de sua generosidade proverbial. François Servenière observa em sua mensagem que “as análises atuais, feitas pelas máquinas, entendo-as como enfadonhas. Stravinsky tinha razão ao falar do díptico compositor / intérprete como únicas entidades. Mas, temos de considerar o tríptico representado pelo público”.

Perguntaria, qual a razão explícita de não se ter em conta o corpus composicional único de Debussy, propiciador de uma nova perspectiva sonora baseada na dinâmica, na agógica e na acentuação? De maneira palatável ela pode ser transmitida ao leitor. Essa é a razão precípua da perpetuação de um autor de mérito.

A revolução, empreendida naturalmente por Debussy, essencialmente está ligada a uma outra consciência sonora. Não seria na forma, majoritariamente utilizada através de moldes vigentes, que iríamos encontrar essa revolução, tampouco na harmonia. A música de Debussy nos envolve através de uma inefável qualidade escritural a serviço do resultado sonoro, que é possível apreender desde suas criações do final do século XIX. Seu estilo é único, inconfundível, tantas vezes apreendendo sons, timbres, escalas e moods de outros povos. Suas melodias (canto e piano) contêm o mais apurado requinte, a ópera Pélléas et Mélisande, marco divisório que possibilitaria aos pósteros, doravante, novas abordagens. A totalidade da obra para piano, sem apresentar determinados arrojos virtuosísticos encontrados em Maurice Ravel, seu contemporâneo, abre um campo ilimitado nessa busca dos timbres e das sonoridades inusitadas. Diria que, para o pianista, processos técnico-pianísticos, como legato, controle das intensidades, notas que merecem toques especiais, pedalização acuradíssima em tantas gradações, seriam alguns dos atributos necessários.

Apenas mais uma observação. Porventura a página inicial do Google, que rende tributo nas efemérides a figuras bem menores, por vezes diminutas, lembrou-se de Claude Debussy no dia 25 de Março? Ou ainda, como olvidos habituais, de tantas figuras basilares da história da humanidade? Não haveria alguém que pudesse lembrar à imensa empresa datas realmente importantes? Esquecer figuras proeminentes é o resultado de uma sensível queda da cultura erudita dos mentores de organizações que deveriam buscar educar essencialmente através de exemplos do passado. Nada a fazer, pois mentalidades estão enraizadas.

In this post I reflect on some articles I read on Debussy in foreign publications in the week we celebrated his death centennial, noticing that such articles contain a series of commonplaces — things easily found on the internet — viewed from a present-day perspective. I believe music journalists without music knowledge are incapable of musical criticism, confining their articles to accounts of social conduct  and trivia.

 

 

25 de Março de 2018 – Centenário

Eu trabalho como uma usina:
assim mesmo avanço, apesar dos terríveis e exaustivos passos atrás!
(carta a Jacques Durand – 1907)

Estou nesse estado de espírito que me leva a pensar ser um coral no fundo do mar,
um vaso sobre a chaminé – preferencialmente a um pensador -,
espécie de máquina frágil, que só caminha se quiser e contra a qual a vontade do homem é nula…
Comandamos alguém que não vos obedece e esse alguém, é você mesmo!
(carta a André Caplet – 1909)

Que beleza há na música “apenas ela”, aquela que não tem parti-pris,
uma busca para espantar os assim chamados ‘diletantes’…
Em qualquer das artes, seria porventura encontrar o total da emoção que a música contém?
Essa pujança “do papel da harmonia”, que compreendemos,
pois estamos ainda na “marcha harmônica” e raros são aqueles a quem basta apenas a beleza do som
(carta a Bernardo Molinari – 1915)

Esteja certo de que meus dedos param às vezes diante de certas passagens. Sinto necessidade de retomar a respiração como após uma ascensão… na verdade, esta música paira sobre os cimos da execução!
(carta a Jacques Durand sobre a finalização dos 12 Etudes para piano – 1915)

Neste espaço não tratarei de dados biográficos, tampouco da preciosa produção do grande compositor francês Claude Debussy. Farto material desses compartimentos é encontrado através da internet. Recomendo o site oficial do Centre de Documentation Claude Debussy em Paris (www.debussy.fr/ ). Igualmente há temas diversos sobre Debussy distribuídos nestes 11 anos de Blogs ininterruptos.

Atendendo solicitações de vários internautas e, ao mesmo tempo, pedindo as devidas escusas ao leitor por personalizar-me neste post, reuni dados concernentes à minha relação com a obra de Debussy para piano, interpretando-a na totalidade, gravando segmentos e, concomitantemente, aprofundando-me em seu universo musical, tendo chegado ao longo das décadas a determinadas conclusões aceitas na comunidade internacional. Confesso sentir um “santo orgulho”, palavras de D. Henrique Golland Trindade, arcebispo de Botucatu, quando, no longínquo 1958, perguntei-lhe sobre vaidade, distinguindo o prelado a vaidade vã e um outro sentimento, voltado ao auto aperfeiçoamento. Não poucas vezes posicionei-me contra a mídia, em nítida decadência cultural, mormente em nosso país à deriva, e ao holofote, “aparência” da verdade. A primeira, não a procuro e tampouco sou importunado, o segundo pode obliterar ideias atraídas pela intensidade luminosa. Apenas apresentarei a ligação, que se mantém fiel até o presente, com a criação de um dos mais importantes compositores da História da Música. Faço-o por vários motivos, pois não enumerei nesses últimos anos os passos percorridos nesse caminho específico a não ser nas menções protocolares dos enfadonhos memoriais estatísticos acadêmicos. É, pois, o blog da semana um relato prazeroso e testemunhal de uma admiração sempre crescente pela qualidade de uma obra que pertence à humanidade.

O notável compositor mexicano Mario Lavista (1943- ) disse-me em 1977 que o compositor elege os seus preferidos, alguns em determinado período, outros durante toda a existência. Debussy era um de seus eleitos. Faço minhas as palavras de Mario Lavista ao escrever que, entre meus escolhidos, Claude Debussy tem estado nos meus aprofundamentos desde a juventude.

Conservo uma gravação que realizei ao vivo aos 30 de Setembro de 1955 para a Rádio Roquete Pinto, no Rio de Janeiro, a interpretar, entre outras peças, Reflets dans l’eau, de Debussy. O registro, que já dura 57 anos e meio – tinha eu 17 anos -, tem falhas devido ao tempo inexorável. Curiosamente, ao ouvi-la ultimamente percebo o embrião de minha admiração, que persiste, pelo compositor. Entendo-a tardiamente como um registro amoroso. A gravação só existe devido ao fato de que meu pai, memorialista nato, ter guardado basicamente todas as manifestações de seus filhos que considerava relevantes, rolos de gravações e fotos.

Reflets dans l’eau de Debussy. Gravação realizada ao vivo aos 30 de Setembro de 1955 na Rádio Roquete Pinto do Rio de Janeiro

Ao final digo, com voz juvenil, local e data.

Já comentei, em posts bem anteriores, que o bolsista jovem, insisto, jovem, ao estagiar em país do Exterior, fatalmente apreende sua essência cultural. Difícil não fazê-lo nesse fundamental período de transformações. Logicamente, entre os grandes compositores da tradição europeia, os franceses sempre estiveram a povoar meus anseios musicais, mercê primeiramente da inclinação inconteste de meu pai, voltado por vocação aos grandes escritores de França. Além disso, devido igualmente aos anos que passei em Paris como bolsista do governo francês, a estudar com grandes mestres, herdeiros diretos de uma tradição inigualável. Marguerite Long, Jacques Février e Jean Doyen sorveram a essência da interpretação dos compositores, principalmente aqueles que produziram a partir da passagem dos séculos XIX-XX. Apresentei e gravei a integral de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) para teclado, obras de Debussy, executando igualmente em público a integral no Brasil e em Portugal, interpretei a quase integral de Maurice Ravel (1875-1937), excetuando-se as Valses Nobles et Sentimentales e pequenas outras peças, e toquei muitas obras de Gabriel Fauré (1845-1924), gravando inclusive CD unicamente com suas extraordinárias criações e dedicando-lhe recital em 1974 (MASP), graças ao cinquentenário de sua morte. Todas essas gravações para o selo belga De Rode Pomp. Quanto à integral de Debussy para piano, deu-se no MASP em 1980 e as quatro récitas abrigaram público superior à lotação do auditório. Logo após, em recital promovido pela Sociedade Cultura Artística, minha mulher Regina Normanha Martins e eu apresentamos a integral original para piano a quatro mãos e dois pianos.

Se a interpretação ao piano, destinação final da produção específica de Debussy, foi-me e continua a ser fundamental, busquei sempre, além da produção, os porquês da criação. Essa postura levar-me-ia a escrever “O Som Pianístico de Claude Debussy” (São Paulo, Novas Metas, 1982) e a tese de Livre Docência junto à Universidade de São Paulo (“O idiomático técnico-pianístico na obra de Claude Debussy”, 1992). Presente no júri, o mais importante especialista na obra do compositor na segunda metade do século XX, o notável François Lesure (1922-2001), autor do catálogo do compositor, de uma dezena de livros referenciais sobre Debussy e Diretor do Departamento de Música da Biblioteca Nacional em Paris durante 18 anos.

Ao conhecer a ilustre musicóloga e gregorianista portuguesa Júlia d’Almendra (1903-1992), autora de livro referencial (“Les Modes Grégorians dans l’oeuvre de Debussy”, Paris, G.Enault, 1948), abriu-me a especialista um campo de aprofundamento que se estenderia a Paris. Júlia d’Almendra prefaciaria meu livro publicado em 1982. Foi ela que me apresentou, através de missiva, a François Lesure. Em sua morada, à Rua d’Alegria, 25, abrigava-me quando de minhas tournées em Portugal (1981-1991).

Foi a partir de 1982 que, a convite de François Lesure, iniciei minha colaboração para os Cahiers Debussy, publicação do Centre de Documentation Claude Debussy, sediado em Paris. Foram seis colaborações de 1983 ao presente. Todavia, a cada aprofundamento novo relacionado a determinada obra, como estilo comparativo da obra de Debussy com outros compositores e hipóteses levantadas, François Lesure se interessava, convidando-me para seminário individual na École Pratique des Hautes Études. Curiosamente, uma única composição, a encantadora La Boîte à Joujoux (1913), foi objeto de duas conferências em anos diferentes. As várias visitas à Bibliohèque Nationale, quando tive o privilégio, durante duas semanas, de manusear, devidamente instruído, todos os manuscritos do corpus para piano de Debussy, assim como edições de época, muitas anotadas pelo compositor, propiciaram-me fundamentos essenciais que buscava. Disse-me François Lesure posteriormente que, logo após essas consultas, toda o obra de Debussy foi colocada à disposição dos estudiosos que frequentam o Departamento de Música da Bibliothèque Nationale, mas apenas através da internet, não sendo mais possível o acesso aos manuscritos originais. Realmente foi uma quinzena inesquecível. Recordo-me que, como se tratava de preciosidades, pois manuscritos cuidadosamente conservados, a porta da pequena sala em que ficava a estudar permanecia trancada por funcionário da instituição.

Clique para ouvir Étude pour les huit doigts de Claude Debussy. Gravado em Mullem, Bélgica para o selo De Rode Pomp, 2005

Clique para ouvir Étude pour les notes répetées de Claude Debussy. Gravado em Mullem, Bélgica para o selo De Rode Pomp, 2005

O catálogo das obras completas de Debussy posicionava La Boîte à Joujoux como original para orquestra, sendo versão a partitura para piano. Em uma dos seminários argumentei, com provas irrefutáveis, que a criação era original para piano, insistindo que doravante dever-se-ia entender La Boîte… como a criação para piano monoliticamente mais extensa de Debussy. Ao final da exposição, que contava com a presença do notável pianista e intérprete de Debussy, Noel Lee, dos musicólogos Myriam Chiménes e Denis Herlin, o generoso François Lesure observaria: “teremos de alterar o catálogo”. Em outro seminário evidenciei que La Boîte à Joujoux recebeu influência, consciente ou não, dos Quadros de uma Exposição, de Moussorgsky (1839-1981). Apresentei inúmeros exemplos difíceis de serem contestados. Considere-se que, durante cerca de um século, centraram a atenção sobre possíveis influências que Debussy teria recebido da obra de Moussorgsky – um de seus eleitos – em obras fulcrais, que foram exaustivamente comparadas: a óperas Boris Goudonov e o ciclo de canções Quarto de Crianças e a ópera Pélleas et Mélisande e Children’s Corner de Debussy, respectivamente. Era, pois, inédita a aproximação aludida. Em sua biografia crítica “Claude Debussy” (Paris, Klincksiek, 1994; Fayard, 2003), Lesure, ao abordar La Boîte à Joujoux, menciona a essência dessa pesquisa. O resultado das argumentações apresentadas foi publicado em artigos científicos nos Cahiers Debussy. No início dos anos 2000 gravaria para o selo De Rode Pomp, da Bélgica, as duas composições maiúsculas e, em 2005, os 12 Études para piano.

À integral de Debussy para piano seguiram-se as integrais de Moussorgsky e do compositor português Francisco de Lacerda (1869-1934), assim como anteriormente as de Jean-Philippe Rameau (1683-1764). O leitor poderá perguntar o porquê desses autores. Rameau e Moussorgsky estiveram entre os compositores mais admirados por Debussy e Francisco de Lacerda privou da amizade do músico francês. Curiosamente, há um momento em que Debussy “pede emprestado”a Lacerda tema de sua Danse sacrée – Danse du Voile (1904) para a primeira peça de sua criação Danse Sacrée et Danse Profane (1904) Lacerda sofreria nítida influência do então consagrado Debussy ao criar a sensível coletânea Trente-six Histoires pour amuser les enfants d’un artiste (1902-1922). Para o selo De Rode Pomp gravei essas miniaturas, assim como outras criações de Lacerda, entre as quais a Danse Sacrée – Danse du du Voile, mas também adicionei as Danses Sacrée et Profane, na versão para piano do original para harpa e orquestra de cordas realizada pelo editor de Debussy, Jacques Durand, e aprovada pelo criador. François Lesure deu-me a honra de escrever as notas do CD, assim como as dos CDs com a integral de Rameau para teclado interpretada ao piano.

O relacionamento com François Lesure foi edificante. Um sábio. Sou-lhe infinitamente grato. Visitava-o sempre que ia a Paris, convidou-me várias vezes para jantar em seu apartamento e igualmente para a sua casa de campo em Montargis, onde François e sua esposa Annik mostraram-se sensíveis anfitriões. Lesure esteve três vezes no Brasil, a fim de apresentar conferências sobre Debussy. Em uma delas, no Rio de Janeiro, o saudoso pianista Heitor Alimonda (1922-2002) e eu tocamos obras a quatro mãos de Debussy no Salão Leopoldo Miguez, da Escola Nacional de Música da UFRJ. Durante todo esse longo relacionamento com François Lesure aprendi a admirar duas extraordinárias colaboradoras do Centro Debussy, Myriam Chimènes e Alexandra Laedererich. As pesquisas de Chimènez sobre o mecenato e as sociedades que abrigavam músicos e concertos nos século XIX, assim como seu maiúsculo livro sobre Francis Poulenc são referenciais, sem contar suas contribuições relativas a Debussy. Laederich tem igualmente participação ativa no excelente livro “Regards sur Debussy” (vide blog 03/05/2014).

Em 2013 comemorou-se o centenário de La Boîte à Joujoux. Fui convidado pelo Museu Claude Debussy, sediado na casa em que nasceu o compositor em Saint-Germain-en-Laye, cidade bem próxima de Paris, para festejar a efeméride interpretando essa obra e os Quadros de uma Exposição, de Moussorgsky.

Neste 2018 apresentarei dois recitais com obras do grande mestre francês em algumas cidades brasileiras e portuguesas. Tenho sistematicamente frisado que o tema de uma pesquisa acalentada deveria acompanhar o estudioso durante toda a sua vida produtiva. A experiência, o acúmulo de informações propiciam a abertura maior para o conhecimento. Impossível decifrar os códigos misteriosos de cada compositor. Todavia, o aprofundamento leva à descoberta de inúmeras vias.

Distante há uma década da Academia, sempre me insurgi contra o fato de as pesquisas que levaram às muitas dissertações de mestrado e teses de doutorado serem abandonadas imediatamente após as defesas, pois etapas da “missão” acadêmica tinham sido transpostas. Em blogs bem anteriores mencionei diálogo com pós-graduandos que, sem rubor, comentaram com naturalidade o abandono dos temas de mestrado e doutorado. Estes, escolhidos, não poderiam ser descartados, mas sim abastecidos. Não são excludentes. Muito pelo contrário, permitem, através de tantos meios comunicantes, interagir com outras outras pesquisas nesse infindável aprofundamento. Durante a existência deveriam ser vários os temas de pesquisa. Abandonar trabalho feito e comprometer-se com outro, relegando definitivamente possível exaustiva pesquisa, é um desserviço à cultura e um desrespeito a si próprio. Não seria esse descarte, a comprovar o não comprometimento, uma das razões de jazerem nos almoxarifados das universidades incontáveis dissertações e teses?

Claude Debussy sempre foi um de meus eleitos. Regressar à sua preciosa criação é motivo de entusiasmo. Assim como outros integrantes de meu universo de afetos, Debussy paira em compartimento essencial. Ouçamos sua obra distribuída em tantos gêneros musicais. Temos nesse corpus as bases seguras que nortearam a música no século XX, mormente nos caminhos voltados ao som, à busca incessante do timbre, ao rigor quanto às sinalizações, pois Debussy foi o primeiro a tudo marcar na partitura.

O sétimo da coletânea de Études Cosmiques do compositor e pensador francês François Servenière, Sinergia, homenageia Claude Debussy a partir de Clair de Lune, uma de suas mais conhecidas composições.

Clique para ouvir “Sinergia”, in memoriam de Claude Debussy, composição de François Servenière, com José Eduardo Martins ao piano, gravação de 2015, selo Esolem, França.

Nesse mundo pasteurizado voltado ao espetáculo, a música de Debussy, sobretudo aquela para piano solo, sofre perigo, pois fragilizada graças ao rigor das intenções do compositor. A leva de jovens pianistas que pulula pelo planeta, adepta dos concursos internacionais e da alta performance, leia-se virtuosidade, tem descaracterizado autores. Muitos jovens estão a tocar Debussy pensando na virtuosidade encontrável nas incríveis obras de Franz Liszt (1811-1886) para piano, propiciadoras de tantas acrobacias. Sob outra égide, uma das características essenciais de Debussy é a de-dinamização, a tendência nítida à baixa intensidade. Estudos empreendidos em meados do século XX evidenciaram que o corpus da criação de Debussy estava mergulhado 80% entre p e pp, portanto, nas baixas intensidades. Em meu livro de 1982 observei que essa cifra se acentuava na obra para piano, mormente quando a titulação é sugestiva e não abstrata. Virtuoses, preferencialmente da nova geração, não apenas desvirtuam Debussy nesse frenesi voltado ao velocíssimo, como aumentam nitidamente o “som” debussysta. Como bem afirmou o insigne pianista e professor francês Jacques Février (1900-1979): “há 1000 maneiras de interpretar Debussy, uma só é equivocada, trair seu estilo”.

__________________________ Foto tirada no final da década de 1970.

In this post I give details of my affinity with Claude Debussy’s works for piano since the start of my career. I have performed his complete works and recorded selected pieces. At the same time, I studied in depth his musical language, writing a book on his works and also a dissertation for my doctorate degree at Universidade de São Paulo, reaching conclusions that have been accepted by the international community in the field and published in the Cahiers Debussy. Thus the post of this week is my personal testimony of a career bound up since the very beginning with the music of one of the most highly regarded composers of all times.

 

 

Questionamentos que levam à reflexão

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo,
não mudará a vida de ninguém -
mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Eugénio de Andrade (1923-2005)

Recebi mensagens, telefonemas e conversei com leitores em minha cidade bairro Brooklin-Campo Belo. Quase todos querendo saber mais sobre o processo desde o início do projeto a ter como desiderato a gravação em alto nível.

Afirmei anteriormente minha idiossincrasia em pertencer a uma lista de intérpretes de gravadora de ampla divulgação. Convidado por renomada empresa internacional, recusei. Respeitando os pianistas integrantes das listas, que lá não estariam sem méritos, possuidores do talento para preparar repertório indicado para resolução em brevíssimo tempo, entendo que a raiz do problema está nessa pressa em ter a gravação colocada o mais rapidamente no mercado, nivelada a qualquer outro produto encontrável num supermercado. Fato concreto.

Retorno às gravações do passado. Tinham acesso às gravações poucos grandes intérpretes, majoritariamente gravando repertório que lhes era conhecido desde sempre. Apesar dos recursos técnicos rudimentares, se comparados aos da atualidade, as mensagens tinham a aura da definição de um estilo de interpretação, único, indivisível. Podia-se apreender o âmago do artista na interpretação de uma obra, geralmente a pertencer ao repertório tradicional por ele praticado amplamente. Serviram e servem de modelo até o presente. Considere-se o custo elevadíssimo dessas gravações que eram colocadas no mercado por poucas empresas especializadas.

A proliferação de intérpretes, no caso pianistas, acentuou-se nessas últimas décadas. Só do Extremo Oriente chegam ao Ocidente legiões de pianistas que participam dos concursos internacionais de piano. A imensa maioria, pianistas de extrema habilidade, mas poucos com ideias próprias. Verificamos uma quase pasteurização nessas interpretações límpidas e até acrobáticas, diga-se, mas carentes de personalidade em tantas delas. Vencedores de concursos, haverá alguns que serão convidados para as tais listas, somando-se a outros, oriundos principalmente dos muitos países europeus. Todos estarão preparados para, no momento em que forem chamados, atender às necessidades da empresa e rapidamente estudar as obras propostas, o que ratifica, sob o aspecto fulcral do ensino técnico-pianístico, um avanço. Esses integrantes desincumbem-se bem da tarefa, mas a essência essencial da interpretação fica ao largo, tantos são os exemplos. Verdadeiros “tijolos” de CDs com  dezenas de intérpretes,  a abranger todos os gêneros praticados por um compositor, cuja integral o leigo aprecia ter em sua estante. Verificando-se com acuidade a diferença dos intérpretes e suas reais afinidades com aquele repertório, os vários locais onde foram feitas as gravações, a diversidade dos instrumentos e dos técnicos, chega-se à integral, mas faltará a unidade. As grandes empresas não têm como propósito esse ideal formado pelo trinômio interpretação-qualidade-unidade e sim a grande divulgação. Grande parte dos managers não entende música, mas são ágeis empreendedores.

Ao visitar um bom amigo belga, presente a todos meus recitais em Gent, mas leigo, mostrou-me ele sua coleção de “tijolos”, brique, em francês, como me disse a sorrir. Integrais de J.S.Bach, Mozart, Beethoven e tantos outros preenchiam as estantes. Durante o agradável jantar, em determinado momento perguntei-lhe sobre sua escuta, se era diária, periódica… Meu amigo, com pleno ar de satisfação, observou que ouvira ainda muito pouco do todo, mas que seu prazer maior era saber-se “senhor” de toda aquela rica produção. Retornei a pé até a Neue Brugai Straat, onde estava hospedado, numa noite gélida, a pensar na imensa cadeia de interesses das empresas: lista de intérpretes, necessidade de  visualizar o “tijolo” no mercado e, como finalidade, o lucro.

Longe estamos das integrais que eram realizadas por um só intérprete. Se elas ocorrem mais recentemente, são minoritárias. Exemplificando sucintamente o passado longínquo ou menos distante, menciono as Sonatas de Beethoven, por Arthur Schnabel (1882-1951); Debussy, Ravel e Mozart, por Walther Gieseking (1895-1956), Schubert, por Friedrich Wührer (1900-1975), os 27 Concertos de Mozart, incluindo as cadências compostas pelo pianista Géza Anda (1921-1976), e tantas outras integrais, muitas delas particularizando segmentos essenciais de um compositor. Nestas últimas décadas, obras completas foram gravadas unitariamente. Contudo, tornam-se mais raras, preferindo as grandes empresas compartimentá-las, o que representa uma abertura de mercado para quantidade de intérpretes. A minha geração conheceu bem essas integrais que se tornaram referência, pois interpretadas por pianistas extraordinários. Tínhamos um modelo que não era para ser imitado, mas servia como base sólida para preservar a boa tradição. Penso eu que as novas gerações, ao ouvir esses “tijolos” interpretados por diversos pianistas, podem ficar à deriva. Um jovem talentoso perguntou-me recentemente sobre determinado compositor que havia sido privilegiado com a integral compartimentada: “quais dos pianistas são os melhores?”.

Sob outro aspecto, o da apresentação ao vivo, era comum um grande intérprete ficar um bom tempo em uma cidade, a fim de apresentar a integral de um segmento da criação de um autor. Há décadas as agendas das sociedades de concerto – preenchidas com anos de antecedência nos grandes centros -, optam pela diversidade de intérpretes nas temporadas de música. A necessidade imperiosa, ditada pelo mercado, forçando a pluralidade, está a impedir a prática, tão usual no passado, das integrais ao vivo por apenas um intérprete. E só de pensar que a integral das Sonatas de Beethoven, nas várias vezes que foi interpretada pelo pianista Fritz Jank (1910-1970), teve afluxo pleno no Theatro Municipal de São Paulo, assim como mereceu grande recepção Friedrich Gulda (1930-2000), o extraordinário pianista austríaco que também interpretou as 32 Sonatas em nossas terras. No início do século XX, tivemos Vianna da Mota (1868-1948), notável pianista português, executando esse conjunto monolítico de Beethoven em tournée pela América do Sul, assim como os dois livros do Cravo Bem Temperado de J.S.Bach. Nas várias passagens pelo Brasil, apresentou parte de seu imenso repertório. Acrescente-se que foi notável compositor. Atualmente, devido ao calendário intenso, os intérpretes mais ventilados normalmente repetem repertório, majoritariamente privilegiando obras que integram a ponta do iceberg.

Estávamos em 1977. Ao recital que apresentei no Sesi São Paulo, com obras de Alexandre Scriabine (1872-1915), compareceu o saudoso pianista Roberto Szidon (1941-2011). Após a apresentação, fomos direto à TV Cultura para gravar programa ao vivo conduzido pelo Maestro Walter Lourenção, focalizando o compositor russo Alexandre Scriabine. Szidon gravara para a Deutch Gramophone as dez Sonatas para piano do compositor russo e eu, meses antes, apresentara no MASP  a integral dos Estudos. Revezamo-nos ao piano executando várias criações scriabianas. Findo o programa, dei-lhe carona até a morada de seus tios nas cercanias da Universidade Mackensie. Conversamos ainda longamente. Fazia-se madrugada. Disse-me Szidon que bem cedo viajaria para o Rio de Janeiro, a fim de gravar um  LP com obras de Radamés Gnatalli. Fiquei estupefato, pois a partir das dez horas da manhã a gravação começaria. Perguntei-lhe se conhecia bem essas composições. Respondeu-me que as aprendera  naqueles dias. Szidon lia uma partitura como jamais vi. Era instantânea a sua leitura à primeira vista. De regresso, fiquei a pensar a respeito da captação da mensagem em sua integralidade. Certamente a gravação deve ter saído a contento, mas o espírito da obra lá estaria? Impossível apreendê-lo açodadamente. Roberto Szidon, imenso pianista que nos deixou precocemente. Mencionei, em post bem anterior, que a notável pianista Guiomar Novaes (1894-1979) confessou-me em 1956-7, após ter tocado para ela um Improviso de Schubert e segmentos do Carnaval de Viena, de Schumann, que as obras sofreriam um longo amadurecimento durante minha existência e, que, só recentemente (àquela época) entendera realmente a mensagem do Carnaval op. 9 deste último, criação que ela tocava desde a adolescência!!!

Acredito que um retorno às prerrogativas do passado são impossíveis. Haverá, nessa avalanche a buscar a exumação de “todo” repertório, um final não promissor. Açodamento não é exemplo de seriedade de propósitos. Espalhados pelo mundo ocidental, pesquisadores têm realizado trabalhos meritórios, redescobrindo, editando e propiciando a intérpretes conscientes realizarem o ato final da descoberta, a execução e gravação. Esses intérpretes pertenceriam a uma outra categoria, cônscia da qualidade da pesquisa. A grande gravadora não estaria preocupada com a qualidade das partituras, muitas por elas preparadas precipitadamente. Só de pensar que a edição crítica das obras de Hector Berlioz já dura decênios, assim como a de Claude Debussy!!! Exemplo a ser seguido? Está-se a viver num mundo pasteurizado. A qualidade virou um pormenor. O imediatismo é a antítese do aprofundamento. Nada a fazer.

This post, the last on my recording experiences in Europe, addresses the contrast between works by independent music artists (independence offers more freedom of choice) and those by major label artists, who hardly have time to study the works they are going to record, what may result in music that is flat and emotionless.