Recepção acima da média

Muita coisa na vida não sabemos se parece
ou se é na realidade.
Agostinho da Silva

O post anterior teve forte guarida. Chamou-me a atenção a possibilidade que se abriu para a colocação de outras manifestações a envolver a música de maneira mais ou menos acentuada. Ficaria evidente, por parte das gerações anteriores, o desalento frente ao que ouvimos como música de entretenimento. Algumas tendências atuais possibilitam, por vezes, se considerada for parcela significativa dos mais jovens, chegar-se ao estado de anestesia ou mesmo de transe.

A empresária Maria Izabel Ramos e o arquiteto Marcos Leite rememoram o passado, a primeira a considerar com emoção eventos não esquecidos: “Que saudades eu tenho da aurora da minha vida, quando podíamos apreciar e viver tão lindos momentos, embalados por orquestras divinas e harmoniosas. Maravilhas!!! Ficaram indelevelmente registrados em nossa memória”. Marcos relembra, ao registrar locais definidos: “Desde meus tempos de faculdade sempre procurei bares e restaurantes em que a música predominante fosse jazz, com a óbvia concessão e mistura com bossa-nova. Um desses lugares que primava pela qualidade era A Baiúca, inicialmente na Praça Roosevelt e, depois, na Faria Lima, onde o seu saudoso amigo Farnésio Dutra, ou Dick Farney, como se tornou conhecido, se apresentava com uma simpatia e uma elegância que cativavam a todos. A última vez que o vi foi numa manhã ensolarada atravessando a avenida São Luiz, num terno de linho branco, sem gravata e com sapatos bicolores, chique na exata medida de sua displicência. Viria a falecer alguns meses depois. E acho que big band remanescente, que me lembre em passado mais ou menos remoto em casa noturna, foi a do Gallery, que enchia a pista de dança quando assumia ao vivo no lugar das gravações eletrônicas, e trazia nomes como Hector Costita e Bolão. Para encerrar e sem querer me alongar muito, restava a Opus 2004, na Consolação, com várias formações convidadas pelo Tito Martino, normalmente reduzidas no tamanho  pela limitação da casa, mas sempre primorosas”.

Esses posicionamentos saudosistas ratificam que essas manifestações musicais eram abrigadas pela classe média ou acima. As apresentações, mencionadas no excelente livro de José Ildefonso Martins e José Pedro Soares Martins, “Big Bands paulistas”, davam-se preferencialmente em salões de clubes ou associações das cidades estudadas.

O professor titular de História da Ciência da FFLCH-USP, Gildo Magalhães, sugere a expansão do tema ao abordar a educação musical na formação básica e outras manifestações musicais alienígenas como o rap e o funk, que tiveram guarida no Brasil, adaptando-se ao meio em solo tropical. Presentemente esses gêneros já vazaram para a sociedade como um todo. No seu longo e inteligente comentário, o professor afirma:

“Ao ler com bastante proveito sua resenha sobre o livro ‘Big Bands paulistas’, não pude deixar de pensar no declínio da música, decadência que acomete nossa civilização contemporânea. O fenômeno é internacional, mas em nosso país atinge extremos assustadores. Esse agravamento tem origem em nosso conhecido descaso público com a educação – aliás, você lembra do papel formativo que tinha a matéria do Canto Orfeônico em nosso antigo Ginásio, ainda uma herança de Villa-Lobos e sua cruzada em prol dos corais e grandes espetáculos musicais ao ar livre. Havia críticas também contra esse modelo, de forte cunho nacionalista, mas o fato é que a juventude saía da escola com alguma ideia de leitura musical e do entrelaçamento da melodia com o ritmo. E, sabemos, nas cidades do interior as bandas e coretos agregavam amadores de música e eram um atrativo de lazer para o público, a que se agregavam de vez em quando as aparições das big bands, em que músicas então populares ganhavam arranjos atraentes com instrumentos de orquestra.

O que hoje substitui essas atrações ganha contornos perversos na periferia das cidades, eufemismo que designa as regiões mais pobres e carentes de serviços públicos. Ao contrário das periferias de países desenvolvidos, que concentram famílias de maior poder aquisitivo e trocam os centros barulhentos por uma aproximação do modelo de ‘casas de campo’, nossas periferias de países atrasados são as casas de tijolos sem revestimento, esgotos lançados nos córregos sem tratamento e as populações mal assistidas de serviços de saúde, escola e transporte, centros de atividades ilegais.

Foi este o terreno em que grassou a música contemporânea, epitomizada pelo ‘baile funk’. Musicalmente privilegiando o ritmo de forma paupérrima e repetitiva, a que se acresce a imitação (mais uma vez) de modelos estrangeiros, como o minimalíssimo rap, eis que o fenômeno se difunde para outras camadas sociais. Num ambiente urbano que desobedece as lei do silêncio, somos atormentados pelos ‘pancadões’, que por vezes varam a noite com sons percussivos monótonos, muitos decibéis acima do que os ouvidos conseguem suportar, entremeados por versos totalmente banais e até obscenos.

Não é difícil encontrar em escolas superiores de maior tradição, como a Universidade de São Paulo, quem seja adepto e praticante do funk e do rap. Em minha função de educador, fico pasmo ao verificar que jovens universitários, que venceram os rigores de vestibulares disputados, nada conhecem da música que representa a grande tradição cultural ocidental e, na verdade, têm preconceitos contra a mesma por simples ignorância. Uma ideologia populista totalmente equivocada justifica esse comportamento porque seria uma ‘aproximação’ com o povo. Felizmente existe alguma reação contra isso e iniciativas como a Orquestra Heliópolis, fundada na favela de mesmo nome em São Paulo, demonstram a façanha que é levar às camadas mais desassistidas a informação musical de maior qualidade, e a resposta dessas comunidades é o desejo de aprender instrumentos da música orquestral e tocar em conjunto, para explorar a rica sinergia melódica e rítmica dessa tradição. É também conhecida a contribuição que traz esse crescimento intelectual ao aprendizado e prática da ciência, pois não é por acaso que muitos cientistas são músicos amadores.

O desafio é conseguir essa formação num ambiente de hostilidade e pouca formação escolar. Quem vencerá: o baile funk ou a orquestra? É este um lado de outra contenda maior: quem vencerá, o analfabetismo funcional ou a educação plena?”.

Concordo plenamente com o professor Gildo Magalhães. Quando abordei, no blog anterior, a visita constante desses grupos vindos de países acima do Equador e que visitam o Brasil assiduamente, comentei que a parafernália luminosa em constante mutação eclipsa a mediocridade da música apresentada e dos pseudo cantores, que vociferam em alto volume enquanto atravessam o palco montado em arenas. Os ingressos são bem caros e os que adoram esses espetáculos acampam durante dias ou semanas, a fim de obter lugares próximos aos “ídolos”. Majoritariamente pertencem à classe média ou acima. É difícil aferir o que lhes vai à cabeça.

Corroborando o fato, que evidencia uma outra etapa na direção de uma outra escuta, manifestações tendo a música, ou a absoluta ausência dela em termos qualitativos, vingaram. O professor Gildo aborda rap e funk, dois  gêneros que penetraram nossas fronteiras geográficas.

Conversando sobre o presente Ecos com meu ex-aluno da década de 1980 na USP, doutor em música pela mesma universidade e hoje consciente pianista e professor, Helder Araújo, dele recebo informe que poderá interessar ao leitor:

Rap é um modo de dizer, de falar, de contar, de ‘bater’ no ouvido a estória, o conto, a ideia. ‘To rap’ seria algo como ‘raptar o ouvinte com a retórica das ruas’. No século XX, década de 60, já era o modo usual dos comícios políticos da Jamaica, logo vira uma forma de protesto, de ativismo político, transplantado para Nova Iorque. Os rappers falavam da violência, da opressão, de amores dolorosos, de ser vítima do sistema excludente, de reagir, de fazer acontecer a revolução. No período subsequente ao ‘maio de 68’ foi ‘música do gueto’, canto de guerra, protesto, música engajada, da ‘justiça social’, dos ‘direitos civis’ dos negros norte-americanos. Gangues tinham seus menestréis e cantaram raptos, rapinas, contaram as guerras das facções, entoaram os feitos da ‘guerrilha urbana’. O rap, política, cultural e sociologicamente considerado, foi parte da ‘crítica de tudo o que existe’ (expressão ligada à famosa Escola de Frankfurt, verdadeira moda dentro das universidades mais chiques e caras dos EUA). O rap foi logo domesticado pela cultura (ou contracultura) industrial de massa, ganhando um contorno mais ‘consciente’, aburguesado, comercial. Rap é ‘um dos cinco pilares do HIP-HOP’, movimento em boa parte promovido por Quincy Jones. Virou ‘rhime and poetry’ (rima e poesia) e se espalhou pelo mundo. No Brasil, o rap foi comido pelo funk ostentação”. Rappers e funqueiros tornaram-se amplamente conhecidos no meio propício e, com eles, os DJs. A mídia tem dado cobertura acentuada a determinados grupos.

O funk oriundo dos Estados Unidos desenvolveu-se por volta de 1950. Tem-se a miscigenação de vários gêneros musicais ritmados e propícios à dança, como o jazz e o soul, entre outros, e praticados inicialmente por afro-norte-americanos. A figura de James Brown (1933-2006) fixar-se-ia como o nome maior. Por volta dos anos 1980, a característica dançante do gênero ganharia força no Brasil e o funk, amplamente baseado numa rítmica repetitiva, atrairia multidões, principalmente nas periferias das grandes cidades. Igualmente ampliou seu leque de recepção, hoje a atingir outras camadas sociais. O denominado funk carioca exploraria em suas letras os problemas das comunidades carentes, assim como o cotidiano, a política, a violência e as drogas.

Festejos tipicamente brasileiros que levam ao gestual da dança, mas de forma livre e por vezes desconexa, podem ser verificados em períodos como Carnaval , Micareta e outras datas, tendo o Rio de Janeiro, Salvador e Recife, principalmente, como cidades que se caracterizam pela diferenciação das abordagens. Multidões acompanham esses conjuntos montados em trios elétricos ou os aplaudem em arenas especiais. Numa outra direção, a música sertaneja, inicialmente autêntica e simples e a ter como intérpretes genuínas figuras do campo ou do imenso interior do país, que ao som do violão e da viola cantavam textos a louvar o amor, a natureza e as coisas simples da roça, massificou-se com o passar das décadas e presentemente dezenas de duos percorrem o Brasil, descaracterizando totalmente o sentido original do gênero, mas aplaudidos por milhões de seguidores. Para multidões de adeptos interessa apenas o espetáculo.

Considere-se que muitas pequenas cidades espalhadas pelo país cultuam ainda em seus folguedos dançantes a música de raiz, praticada por músicos que, à maneira dos artesãos de antanho, receberam a prática instrumental e a cantoria dos ascendentes, e perpetuam com dedicação o gestual purista da dança típica.

Para as gerações que conheceram o som das big bands e orquestras de entretenimento norte-americanas, constituídas por músicos realmente profissionais de formação sólida, mormente os integrantes dos naipes das cordas, pois muitos instrumentistas dos naipes dos metais e das madeiras tiveram o aprendizado a partir do convívio e da prática constante com ascendentes de talento, entende-se a confessa admiração pelas big bands paulistas, constituídas por músicos sem a mesma formação, mas dedicados às apresentações condignas. Se “Big Bands paulistas”, insisto, livro referencial, menciona bons instrumentistas solistas  dos nossos conjuntos, sugeriria ao leitor a incursão no YouTube para a audição de alguns excepcionais intérpretes dos naipes dos metais e das madeiras dos Estados Unidos: Bobby Hackett, Harry James e Dizzi Gillespie (trompete), Tommy Dorsey (trombone e trompete), Louis Armstrong (trompete e saxofone), Glenn Miller (clarineta), e tantos outros músicos, entre eles inúmeros pianistas excepcionais, principalmente no campo do jazz. Se a existência de magistrais big bands norte-americanas influenciou positivamente a qualidade de nossos conjuntos, a fama, nas últimas décadas, de tantos grupos musicais do hemisfério norte, sem formação sólida e apelando para elementos extramusicais, com a parafernália de luzes e o excesso de decibéis, afetaria ainda mais negativamente as manifestações de hoje em nosso país, como o rap e o funk.

“La civilización del espectáculo”, tão apregoada por Mario Vargas Llosa, é realidade plena, a comprovar a decadência das Culturas, principalmente a Cultura denominada erudita. De minha parte, sinto saudades das big bands, da música dançante praticada no ritmo, diga-se, e não de maneira desconexa e arbitrária, da qualidade interpretativa apresentada, do respeito que havia para com as manifestações musicais de um passado que remonta aos meados do século XX. No que tange à música, o que mais me faz pensar é a progressiva desvirtualização de seus elementos essenciais como melodia, harmonia e estrutura, que faziam parte fulcral dos gêneros existentes voltados ao entretenimento. Presentemente o empobrecimento audível da estrutura musical como um todo, a quase inexistência de modulações e da valorização melódica são a evidência de que algo bem estranho ainda está por vir. Veremos.

The post addressing the book “Big Bands paulistas” received much feedback. I transcribe today excerpts from messages received from readers. Some remind with nostalgia the ballrooms, bars and nightclubs of the past with good music and dancing, while others comment on the downward slide of some genres of today’s popular music.