Reminiscências da infância
Por uma noite, em criança,
tive uma estrela que brilhou pela minha vida inteira.
Willy Corrêa de Oliveira
(Extraído da passagem “Apocalipse no fundo do quintal”)
Willy Corrêa de Oliveira é uma figura de convicções firmes em todas as áreas em que se pronuncia. Compositor de muitos méritos que viaja numa escrita multifacetada, extremamente cuidadosa e sensível. Um dos nomes essenciais da vanguarda no Brasil. Seu pensamento, rigorosamente pessoal, tem sempre profundo interesse. Diria que suas escolhas literárias, musicais e artísticas ratificam seu pensar.
Convivi com Willy durante décadas na Universidade. Éramos colegas. Acredito ter sido Willy o professor mais emblemático da Música na Universidade de São Paulo, pois parte considerável de seus alunos o veneravam e, não raro, seguiam-no pelos caminhos maltratados do entorno do Departamento. Mesmo aqueles que o criticavam jamais o faziam sob o aspecto da essência do que lhes era transmitido, mas sim por suas posturas de impacto e inusitadas frente à classe. Após nossas respectivas aposentadorias em 2008, através da compulsória, não mais o vi. Curiosamente, apesar da ausência de uma aproximação maior com Willy, tivemos dois recentes encontros em que pudemos nos entender bem amistosamente, como jamais ocorrera no campus universitário. É fato. Estamos exatamente nos 80 anos de idade e nessa faixa – é de se crer – distanciamo-nos de qualquer tentativa de simulacro. Fomos ao piano em seu estúdio e nos revezamos na mostragem que ele fez de exemplos de criações recentes e de outras, bem mais antigas, que toquei e que deverão fazer parte de meu próximo CD a ser gravado na Bélgica, na milenar Capela Saint-Hilarius em Müllem. A certa altura Willy me perguntou se tinha medo da morte. Minha resposta negativa deixou-o surpreso, pois asseverou o contrário.
Reações inesperadas de Willy Corrêa de Oliveira são proverbiais e ficaram registradas na memória. Em 1989 fomos ao Rio para a gravação de meu último LP no Brasil para o selo FUNARTE, dele a constar unicamente obras de sua autoria que estudei com entusiasmo. Gravei extenso repertório que seria lançado no ano seguinte. O desvario do recém empossado Presidente Collor de Mello, num desastroso início de mandato, inviabilizou a edição do material gravado, assim como os projetos que estavam em andamento na Instituição. O material desapareceu, exceção à coletânea “Recife, Infância, Espelhos…”, que Willy conservaria em fita cassete e mais tarde em CD particular. Adoro essas 16 peças, que estarão definitivamente gravadas, agora nas melhores condições planetárias possíveis na planura da região flamenga da Bélgica. Estou a me lembrar de que, durante os dias no Rio de Janeiro, fomos jantar com amigos e um convidado. Este era simplesmente esverdeado. A conversa encaminhou-se para a coloração inusitada do indivíduo, que mencionou ter recebido forte e irreversível radiação. Sentado ao seu lado, Willy estava intrigado e não falava. A certa altura – já o tema das conversas era outro – perguntou ao cidadão: “Você esteve em Chernobil?”, a se referir à catástrofe nuclear ocorrida em 1986 na então República Socialista Soviética da Ucrânia. O amargurado homem negou, mas observou que sofrera radiação no Brasil (creio ter mencionado a propagada contaminação por radioatividade ocorrida em Goiânia em 1987). Willy desajeitadamente levantou-se, sem querer provocar reações, e foi-se para outro assento.
Alegrou-me a dedicatória de dois Estudos para piano de Willy: “Hanns Eisler in memoriam: für das volk der DDR” (In memoriam Hanns Eisler: para o povo da DDR), composto em 1989, e “Estudo – retrato de José Eduardo Martins”, finalizado no dia de meu aniversário em 1990. O primeiro, tema com cinco variações, é verdadeira obra-prima, e o segundo a exigir do intérprete o controle absoluto da distância intervalar, mercê da presença de semicolcheias obsessivas em presto. Belo Estudo magistralmente escrito. Apresentei-os publicamente. “Hanns Eisler – para o povo da DDR” (Deutsche Demokratische Republik) em Potsdam e Berlim em fins de Maio e começos de Junho de 1989, na antiga Alemanha Oriental, meses antes da queda do muro. Ao receber o programa em Potsdam das mãos de um administrador – deputado igualmente -, observei que faltava a razão do título, ou seja, o “povo da DDR” enfatizado por Willy. Apenas respondeu-me que havia dois regimes distintos vigentes, mas que o povo da Alemanha era um só, motivo da supressão da sigla. Ao regressar entreguei o programa a Willy Corrêa de Oliveira e a Gilberto Mendes (1922-2016), pois deste também apresentara “Um Estudo? Webern e Eisler caminham nos mares do Sul”. A reação de Willy foi imediata, questionando-me sobre a ausência da sigla DDR. Após minha explicação, recusou-se a receber o programa. Se naquele momento causou-me forte estranheza, compreenderia mais tarde que a reação condizia com um dos atributos ou virtudes de Willy, a coerência.
Dos nossos dois encontros, que se prolongaram em clima extremamente cordial, recebi “Passagens” (São Paulo, Luzes no Asfalto, 2008), livro de Willy editado num formato pequeno, espécie de pasta a abrigar folhas soltas seguindo ordenação alfabética dos títulos, mas a dar liberdade ao leitor de poder fazer sua escolha, organizando-as ao seu gosto. Temos mais uma revisita de Willy à sua infância na cidade que o viu nascer, Recife. Curtas narrativas extraídas do seu de profundis, recuperando momentos, por vezes instantes, que permaneceram inalienáveis num compartimento secreto. E as pequenas passagens, inconfessas durante imensas décadas, fadadas estariam ao ostracismo não fosse a memória que a reteve. Experiências individuais, escondidas durante toda uma existência, afloram com tonalidades narrativas sedutoras. Passagens que contêm introspecção única, não transferível. A quem contaria essas observações lúdicas? Talvez uma ou outra narrativa pudesse ser conhecida. Todavia, a ideia do “livro”, dedicado ao neto Lucas Dessalien, possibilitou lidar com as reminiscências e ligar elos de uma infância feliz. As brevíssimas crônicas passam ao leitor a autenticidade. Willy as escreveu aos 70 anos, num estilo tão ao gosto da percepção dos pequeninos, a estabelecer a aura da magia. Senti esse poder imanente na coletânea para piano mencionada: “Recife, Infância, Espelhos…” de 1989.
A contracapa do livro sintetiza a origem da ideia que levaria à decantação das lembranças: “Neste livro tudo o que é contado ocorreu antes dos 10 anos de idade. Não obstante, não se trata de autobiografia porque o cotidiano nã0 foi cotado. Preferimos indigitar tão só as passagens que observadas desde certo termo da vida do passageiro, aparecessem como passos essenciais (fundamentos): aquelas que se engramaram no ser indiviso, e não só na memória”.
Compartimentados, a maioria dos mais de trinta textos tem títulos sugestivos. Tantos tratam desses lúdicos devaneios rememorados, idílios de uma só via, sonhos de miúdo a ter coleguinhas ou filhas de vizinho como referência. Estando na mesma faixa etária de Willy, também tive minhas musinhas. E como frequentavam minha mente… Willy dedica a elas várias passagens, nomeando-as ou simplesmente mencionando etereamente as pequenas figuras femininas. Seria na passagem “Memórias de Casas Novas” que Willy amplia o leque desses deliciosos idílios da infância e um desenho em espiral na folha do texto contém o nome de algumas dessas meninas. Uma frase em um desses recortes diz tanto: “Encontrei-a numa tarde e brincamos a tarde inteira, e amei-a (sem que ela soubesse) por semanas a fio”.
Uma das virtudes de Willy, tão característica na literatura russa, mormente Dostoiewsky, é a observação. Seja ao tratar do mobiliário e dos espaços onde viveu a infância, descritos nos pormenores, ou quando se fascina pela luz mutante a incidir numa sala ou terraço, o que faz com que o menino acompanhe essas transformações, à la manière de Monet e a Catedral de Rouen, o olhar do garoto recifense está sempre atento e as imagens ficariam indelevelmente gravadas na memória.
Paradoxalmente, Willy, professor que influenciou gerações, graças também à abrangência de seus conhecimentos multidirecionados, comenta em “Bandeira do Reino do Desespero”: “Fiquei no Internato do Colégio Americano Batista do Recife por um semestre (ou dois) na divisão das crianças mais tenras. Afirmavam que aprenderia mais e melhor e que a disciplina iria me fazer bem. Não foi verdade. Não aprendi nada, melhor: menos ainda. Em escola nenhuma: então e nunca”.
Em “Bestiário Besta”, Willy desfila animais domésticos, nomeando cães e pombos, discorre sobre uma patativa que comprou na feira e descobriu-se mais tarde que estava tuberculosa. No sudeste denominamos facão (o tórax seca e os ossos ficam salientes), moléstia que leva fatalmente à morte. Ficaria “furibundo com o comerciante de pássaros da feira que me havia enganado”. Teve galinha de estimação, poupada da morte certa que viria pelas mãos da Creusa, “…galinha que tinha o peito estofado (como câmara de ar inflada), mas não de vaidades… Não muito tempo após amanheceu morta. Chorei”. Estou a rememorar minha infância e o vasto quintal onde coabitavam araras, papagaios, pássaros vários, peixes em dois tanques bem grandes, galinheiro e devidas incubadoras e mais jabutis e cães. Uma festa!
A morte a conviver no cotidiano é lembrada por Willy nas “Três Mortes prematuras” e outras mais. Causam impacto na mente da criança, daí rememorá-las com certa ênfase. O imenso pianista Wilhelm Kempff não traduziria o efeito da morte de sua avó em sua imaginação de menino em “Cette Note Grave – Les années de la jeunesse”, em uma das mais pungentes páginas do gênero?
A antagonizar essa temática, histórias plenas de jocosidade levaram-me a gargalhar: “Mijo Mortal” e “Noite de Circo”. O garotinho entraria pela primeira vez num cômodo de despejo de sua morada e urinaria em uma parede. Fê-lo muitas vezes. Certo dia “… ouvi distintamente, Sila falando para Zulmira: ‘Cheiro horrível de xixi lá no quarto de despejos. Vou pôr fogo pra quebrar o cheiro; agora: dizem que seca o xixi da pessoa que fez e que a pessoa finda morrendo de xixi secado’. Perdi – naquela hora – a paz. Vivi dos pés à cabeça a estrutura fundamental de todas as angústias”. O intento realizado por Sila levou a criança ao desespero, contemporizado pelos adultos: “Vi-me cercado de familiares que me juravam que o meu xixi não ia secar não. Que eu não morreria, não”.
“Noite de circo” é hilariante. Willy escreve: “Fomos à loja comprar um fato novo com o fito de irmos ao circo no sábado. Sempre preferi circos a roupas, mas desta feita a conjunção roupa e circo valia alegria cheia. De boa vontade dispus-me a experimentar (frente ao espelho, e aos olhos e mãos das mulheres acertando as minudências das vestes sobre o corpo), pacientemente, até a eleição final para gáudio de todos nós. Um conjunto marrom com detalhes (pala, vira das mangas e bolsos) em bege xadrez diagonal com cores combinantes. Faziam vista até para quem gosta mais de circo e brinquedos de que de roupas”. Vem a noite esperada e o maravilhamento do circo, banda a tocar, a amazona em ousadas trocas de cavalos, palhaços, chineses habilíssimos nos trapézios e… “A seguir vieram os macacos. Multidão de macacos. Nunca vistos: tantos. As luzes rodeando-os para focá-los, e distingui – Céus! – todos (às dezenas): todos vestidos como eu: todas as roupas dos macacos eram iguaizinhas à minha. Idênticas, infalivelmente da mesmíssima confecção. Senti-me macaco (igualmente) na vida”. Prossegue o autor: “Alguém pode imaginar o que é uma criança ganhar uma roupa nova para estreá-la no sábado, dia inesquecível de um circo monumental, o sorriso franco luzido (chispando dos olhos, ventas, poros), e sentar-se na arquibancada para descobrir – em mágoa – que se assemelhava a macacos, e que toda a gente já sabia, estariam de olhos nele, arregalados, risotando do menino vestido na plateia, fora do picadeiro?” Willy finaliza que “nunca conseguiram que eu tornasse a usar a trágica indumentária”.
É de se salientar a recorrência da cantiga infantil Você gosta de mim? Ela surge nomeada, com o tema simples apresentado ou harmonizada no correr do livro. Faz-me lembrar da frase do poeta português José Gomes Ferreira: “Música minha antiga companheira desde os ouvidos de criança”.
“Passagens” encanta. Willy perpassa o cotidiano do menino que ele foi nesse incessante acúmulo que pode ser tão mais marcante se vivido numa plenitude. As várias mudanças de morada acentuam a diversidade geográfica que possibilita o aguçamento do miúdo observador. Sob outra égide, Willy também encanta pelo seu personalíssimo estilo literário. Se insere por vezes belas palavras arcaicas, trabalha o vernáculo a dar elasticidade a determinados termos (neologismos?), a ratificar que a pena do escriba é a mesma que desliza pelo papel pautado.
My comments on the book “Passagens”, written by Willy Corrêa de Oliveira, former professor of composition at Universidade de São Paulo and one of the essential names among Brazilian contemporary composers. The book is a collection of reminiscences of a happy childhood spent in Recife. Reflexive sometimes, hilarious others — making me convulse with laughter — but always delightful, his memories are written in a very personal prose style, as unique as his musical writing. An enthralling book one savours with pleasure.
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