Um imenso pianista e professor
A música “clássica” – como sói dizer-se –
será talvez de todas as práticas musicais,
aquela onde é mais comum este “esquecimento em vida” com umas poucas excepções.
Talvez porque o número de decisores é muito pequeno e o isolamento social é patente.
António Pinho Vargas
O desaparecimento, no dia 21 de Fevereiro, de José Carlos Sequeira Costa comoveu todos aqueles que apreciam a interpretação no mais alto nível. Certamente o mais completo pianista português da segunda metade do século XX e um dos nomes referenciais do piano nesse período em termos mundiais. Nascido em Luanda, Angola, desde cedo mostrou dons excepcionais. Estudou em Portugal com o pianista, compositor e professor Vianna da Motta (vide blogs: “Vianna da Motta – 1868-1948″ e “Seria Vianna da Motta lembrado à altura de seu mérito?”, 07/07/2018 e 14/07/2018, respectivamente), continuando posteriormente com Edwin Fisher, Marguerite Long e Jacques Février. Em 1951 recebeu o Grande Prêmio da Cidade de Paris no Concurso Internacional Marguerite Long-Jacques Thibaud. Criou e presidiu o Concurso Internacional Vianna da Motta. Sequeira Costa foi presença constante nos júris dos mais respeitados concursos internacionais de piano: Tchaikowsky em Moscou (seis vezes), Chopin em Varsóvia, assim como dos Concursos Leeds, Marguerite Long, Rubinstein, Montréal e Sviatoslav Richter. Como professor formou gerações e esteve ligado à Universidade de Kansas a partir do final da década de 1970. Orientou inúmeras master classes ao longo da carreira. Sequeira Costa apresentou-se em muitas das principais salas do planeta. A discografia do pianista é imensa e em seu repertório vastíssimo, mormente voltado ao período romântico, figuravam a integral das Sonatas de Beethoven e as integrais para piano e orquestra de Rachmaninov, Schumann e Chopin.
Em entrevista à Agência Lusa (RTP), o mais dileto aluno de Sequeira Costa, o pianista Artur Pizarro, afirmaria logo após o infausto acontecimento: “Ao nível da música clássica em Portugal, foi um dos mais importantes pianistas de qualquer século, uma das grandes figuras do século XX e ainda do XXI, quer como pianista, quer como organizador de eventos de música clássica, de festivais – foi diretor artístico de vários -, do concurso Vianna da Motta e como pedagogo”, afirma Artur Pizarro. Considera ainda: “Tudo aquilo que ele me explicava nas aulas, tudo o que fazíamos de trabalho juntos eu depois tive o privilégio de vê-lo fazer na prática, seguindo-o em múltiplos concertos em qualquer canto do mundo, e via-o fazer em palco aquilo que minuciosamente trabalhávamos nas aulas”. O notável musicólogo português Mário Vieira de Carvalho assim se pronunciou em 2010: “Chamar-lhe ‘um dos mais respeitados pianistas portugueses’ é, no mínimo, uma monumental gaffe. Pianistas notáveis há-os, sem dúvida, em Portugal, mas grande parte deles deve-o, em larga medida, a Sequeira Costa, que não é só um primus inter pares”.
Minha memória reporta-se aos anos de 1959-1962, período em que estive muito próximo a Sequeira Costa, mercê inicialmente de uma missiva de apresentação de nosso ilustre compositor Camargo Guarnieri (1907-1993). Tinha aulas regulares em Paris com os lendários Marguerite Long (1874-1966) e Jean Doyen (1907-1982), período em que Sequeira Costa fixara parcialmente sua residência na cidade. Como estudei nos seis primeiros meses de 1959 com Jacques Février (1900-1979), que fora também professor de Sequeira bem anteriormente, o mestre francês não cansava de elogiar as qualidades excepcionais de seu antigo aluno. Retive duas afirmações do mestre Février. Disse-me que Sequeira Costa possuía a técnica pianística mais perfeita que conhecera e que jamais alguém poderia tocar “Gaspard de la Nuit”, a extraordinária obra de Maurice Ravel, como ele. Recentemente, em Janeiro último, conversava com meu amigo e ex-colega da USP, o compositor Willy Corrêa de Oliveira, sobre pianistas. Ao mencionar Sequeira Costa como um dos grandes, Willy afirmou desconhecê-lo. Tirei para o amigo cópias de vários CDs que conservo com plena admiração. No dia seguinte Willy me liga a dizer que jamais ouvira “Gaspard de la Nuit” como a interpretada por Sequeira Costa, a corroborar a opinião de Jaques Février. Encantaram-no igualmente as interpretações dos Concertos para piano e dos Estudos de Chopin, assim como as transcrições para piano magistralmente realizadas por Rachmaninov.
Em 1959 estreitamos relacionamento e no mês de Julho do mesmo ano seguimos em seu Simca Chambord de Paris para Lisboa, pernoitando em Bordeaux, Valladolid e finalmente Lisboa. Éramos cinco no carro: Sequeira Costa a dirigir, a excelente pianista e professora Tânia Achot-Haroutounian, que se tornaria sua segunda esposa, a irmã Natacha e Madame Achot, mãe das duas. Tânia obtivera anteriormente o terceiro prêmio no Concurso Chopin em Varsóvia e se tornaria posteriormente professora da Escola Superior de Música de Lisboa. Chegados a capital portuguesa, fiquei hospedado em casa do pai de sua primeira esposa, o ilustre Dr. João Couto, Diretor do Museu das Janelas Verdes, preparando-me para recital na Academia de Amadores de Lisboa a convite do insigne compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994).
Em Paris estudava com os dois mestres mencionados, mas já àquela altura tinha uma curiosidade com um gênero fundamental para o pianista, o “Estudo” para piano. Sendo Sequeira Costa um dos grandes intérpretes do planeta dos Estudos de Chopin, com ele trabalhei pormenorizadamente os dois cadernos do compositor polonês e alguns Estudos de Scriabine, àquela altura compositor ainda pouco divulgado no Ocidente. Tardiamente, a partir de 2000, gravaria na Bélgica cinco CDs dedicados ao Estudo para piano, inclusive as integrais dos compostos por Scriabine e Debussy. Conselhos de Sequeira quanto à interpretação desse gênero específico jamais foram esquecidos. As aulas com Sequeira Costa não interferiam na preparação que realizava das obras do repertório tradicional propostas por Jean Doyen e Marguerite Long. Diria que foram um grande enriquecimento. Igualmente estudei com Sequeira a Sonata op. 35 em si bemol menor e a Fantasia op 49 de Chopin, assim como as Sonatas op. 31 nº3 e a op. 81ª, “Les Adieux”, de Beethoven.
A didática do imenso pianista tinha a aura da abrangência. Alguns aspectos da interpretação eram-lhe fulcrais, o que o impedia de pensar em qualquer concessão. Gostava de assinalar todas as intenções na partitura. Cuidava com rigor estrito do estilo do compositor depositado em cada obra, sem contudo desvincular-se da emoção. A frase musical adquiria sob sua tutela plasticidade e flexibilidade ímpares. Dinâmica, articulação, agógica eram-lhe vitais. Antolha-se-me que elementos essenciais para a compreensão da mensagem contida numa partitura, como legato e substituições (dos dedos numa mesma nota), adquiriam para ele importância capital. Incorporei seus ensinamentos sobre a utilização dos pedais e de seus inúmeros matizes. Quantas não eram as passagens que realizava em fortíssimo e com pedal una corda (pedal esquerdo abafador), a fim de conseguir timbres diferenciados!!! A composição para piano subtraía muito do orquestral em sua concepção. Estava sempre a pensar em algum instrumento ou conjunto deles. Assim procedia nas Sonatas de Beethoven. Assisti a marcantes recitais em que interpretou várias delas. Nesse tão rico período admirava com fervor duas escolas pianísticas tão distintas, a do excelso Jean Doyen e a do bem mais jovem Sequeira Costa.
Durante o período em Paris, Sequeira Costa veio ao Brasil para recitais e apresentações com orquestra. Ficou hospedado em casa de meus pais em São Paulo. Em 1961 viajou para o Irã, onde permaneceria certo tempo, pois Tânia Achot é iraniana. Gostaria que eu fosse a Teerã, a fim de concluir preparativos para o Concurso Tchaikowsky em Moscou no ano de 1962. Poucas semanas antes de minha viagem, a oposição ao Xá Mohammad Reza Pahlavi inquietou-o e sugeriu-me não me deslocar naquele momento. Regressei ao Brasil e preparei-me em São Paulo para o Concurso e a gravação da primeira etapa está hoje em CD lançado em 1998. Na capital da União Soviética, após o concurso, realizei para a Rádio Central de Moscou gravação de música brasileira.
A partir de 1963 nossos contatos epistolares foram minguando. São muitas as razões que apontam para distanciamento entre as pessoas. Fixou-se nos Estados Unidos e por duas vezes em anos diferentes, casualmente, encontrei-o à porta da Fundação Gulbenkian em Lisboa. Cumprimentos apenas protocolares.
Fatores individuais insondáveis seriam a causa de o pianista Sequeira Costa não ter tido a divulgação que outros poucos luminares do piano granjearam e continuam a merecer. Foi um luminar na acepção. A mídia globalizada sabe como manter personagens sob o foco dos holofotes, direcionando as luzes de acordo com tantos interesses estranhos. As gravações do notável pianista português, que estão entre as mais cuidadas da história da interpretação pianística, permanecerão para gáudio dos ouvintes desta e de outras gerações.
Sequeira Costa foi para mim mais do que um orientador, mas um farol a indicar o caminho da não concessão. Conselhos basilares permaneceram por toda a vida. Entender a música sob essa dimensão é uma dádiva. Inalienável.
Reminiscences of my relationship with the Angolan-born Portuguese pianist Sequeira Costa, who passed away last February 21st. A prodigious talent, he was one of the greatest pianists of the 20th and early 21st centuries, especially renowned for his interpretation of the romantic repertoire. I was lucky to take informal lessons from him when we were both living in Paris back in the fifties and with him I’ve learned to choose the path of no concession. An outstanding pianist and teacher, Sequeira Costa has not received from the media the recognition a performer with his accomplishments would deserve, but his recordings are jewels that will remain for the delight of listeners of present and future generations.
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