“Muros: Partir e Construir”
O único sucesso da razão humana
foi a descoberta do princípio da dialética.
Andreï Tarkovski
(Journal, 1970-1986)
Assistimos, no Consulado Geral de Portugal em São Paulo (02 de Novembro), à mostra de oito curtas realizadas por criadores portugueses contemporâneos, na tradicional programação “Cine Lusco Fusco – tardes de cinema”, sessões realizadas periodicamente aos sábados.
Inicialmente, a mostra “Muros: Partir e Construir – Contributos artísticos de Portugal para uma reflexão global” (2010, 14′) leva à elucubração e revela aspecto nem sempre lembrado em sua essência essencial, a diáspora, que permanece atavicamente no de profundis de cada cidadão. Crises econômicas, políticas, religiosas e sociais serão sempre responsáveis para dispersão dos povos. Meu saudoso pai, nascido na região de Braga, para cá veio em 1928 e jamais retornou ao Minho, mas sempre a devotar amor ao torrão natal. Quantos milhares de portugueses, italianos, espanhóis, japoneses, sírios e libaneses não fizeram o mesmo, desembarcando em nossas terras e aqui constituindo suas famílias?
Apesar da unicidade da mostra, as abordagens foram bem diferenciadas, sendo que dois curtas metragens representariam, talvez, a antítese dessa diáspora.
Em “Casas para o povo” (2010, 14’), realização de Catarina Alves Costa, a fixação seria a aspiração válida de moradores pobres por moradias dignas. Uma pesquisa nos arquivos, que se estendem de Agosto de 1974 a Outubro de 1976, levou a realizadora e antropóloga a edificar um curta, a privilegiar Lisboa e Porto, em que cidadãos menos favorecidos reivindicavam moradias decentes. Como assevera Catarina Alves Costa: “É a história do SAAL, Serviço de Apoio Ambulatório Local (1974-1976), um movimento lançado após a revolução por um grupo de arquitetos que respondia à luta de rua dos moradores sem recursos que, no Verão de 1974, gritavam ‘Casas Sim! Barracas Não’ ”. Leitura outra de uma categoria de “diáspora” no próprio território português.
De instigante interesse o curta “ON EXILE, elsewhere within here” (2017, versão curta de 2019, 15’), filme de José Carlos Teixeira. Depoimentos pungentes de refugiados muçulmanos do Norte da África e do Oriente Médio, asilados nos USA, narram dramas e tragédias. Desraizados, entendem o presente, sonham retornar, apesar de terem assistido à destruição de suas comunidades e à morte de parentes e amigos. Acostumamo-nos às mídias internacionais, que rarissimamente ouvem esse emigrante internamente dolorido. Dos muitos entrevistados, apenas uma mulher já madura atesta acostumar-se à realidade, mas também sonha regressar. As vozes individuais dão por vezes espaço ao silêncio para que as ideias sofridas vertam, o que provoca ainda mais a sensação da tragédia vivida por esses desafortunados personagens.
“Teresa” (2017, 4’,37”), realização de Tânia Dinis, apresenta-se no idioma Changana, um dos existentes na África austral e uma das línguas de Moçambique, ex-colônia portuguesa. Bem fragmentado, “Teresa” apresenta-se como memória individual onde estão em causa partida e regresso.
Particularmente causou-me forte impressão “Penúmbria” (2016, 9’), realização de Eduardo Brito. Impressa no programa, a descrição: “Penúmbria foi fundada há duzentos anos num extremo de difícil acesso. De solos áridos, mares revoltados e clima violento, ficou a dever o seu nome à sombra e à nebulosidade quase permanentes. Até que um dia, os seus habitantes decidiram entregá-la ao tempo. Esta é a história de um lugar inabitável”. Penúmbria, cidade imaginária e abandonada por seus habitantes é a diáspora sem o sonho do retorno. Cenas de ruas desertas, prédios não destruídos, mas sem vida, sensivelmente focalizados, sempre tendo o mar revolto em fúria constante a instigar a expulsão dos habitantes, poderiam suscitar até, num voo imaginário, o vazio ou desespero a que chegou a pequena população “de um lugar inabitável”. Uma centelha de esperança permaneceria na cidade, pois uma moradora e seu cão, assim como um homem nas cenas finais, permaneceram.
Poder-se-ia entender “Água Mole” (2017, 9’15”), realização de Alexandra Ramires (Xá) e Laura Gonçalves, como apenas uma animação (vários colaboraram) a beirar o amadorismo. Contudo, a mensagem desse curta leva-nos a refletir sobre essas pequenas aldeias portuguesas com pouquíssimos habitantes enraizados, envelhecidos, que ao final permanecem, simbolicamente, numa casa que flutua. A música, com forte apelo ao ideário campesino, corrobora a sensação de nostalgia, assim como a do isolamento como destino.
“Arquivo e Domicílio” (2014, 5’14”), realização de José Maçãs de Carvalho, é rigorosamente minimalista no sentido amplo. Desconcertante, no caso. Estou a me lembrar de criações minimalistas para piano do ilustre compositor santista Gilberto Mendes (1922-2016). Interpretei-as em muitos recitais. Todavia, disse-lhe que flutuações dinâmicas nas inúmeras repetições dariam anima às partituras. Aquiesceu. Durante os 5’14” do curta, escrivão carimba página por página de um maço de papel. O rosto do escrivão fica oculto, mas o gesto repetitivo do carimbar papel após papel, com o ruído sem alteração, poderia até fazer supor a desesperança total. Não deixei de pensar no magistral “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, como antítese do que assisti através do curta.
“Femmes” (2012, 2’50”), realização de Tânia Dinis, apresenta quatro mulheres completamente nuas, bonitas aliás, que sentam, caminham, gesticulam em um jardim. Lembrei-me do pintor Maurice Denis (1870-1943), do grupo nabi, e suas belas mulheres em tantas telas imortalizadas. A música de Jorge Quintela possivelmente estaria mais adequada para outra encenação menos idílica.
“Ordem e Progresso (Pixote)” (2017, 3’), realização de Daniel Moreira e Rita Castro Neves, faz pensar. Reza o texto: “O vídeo é um plano fixo que, enquadrando três edifícios de cinzenta arquitetura, vai sendo invadido pelo movimento, sub-reptício e a meia haste, de uma desproporcionada bandeira do Brasil (a da justamente chamada Praça da Bandeira, no centro de São Paulo). A simbólica bandeira de Ordem e Progresso magnetiza como um sinal dos tempos Temer-osos, escondendo-se e ressurgindo atrás de um outro prédio desocupado. Aqui, insígnias da tradicional pixação paulista juntam-se a uma homenagem à personagem do filme icônico brasileiro Pixote (Hector Babenco, 1980)”. Paradoxalmente, a bandeira e sua frase positivista contrapõem-se à realidade paulistana, centro degradado, inúmeros prédios pixados e ocupados desordenadamente, sem contar as muitas dezenas de moradores de rua no entorno. O aparecimento da bandeira a tremular por trás do prédio desocupado, sua permanência e retorno ao estado oculto podem ter incontáveis versões neste país que continua à deriva, mormente desde o início deste século. A incerteza em futuro promissor não seria a causa da contramão do fluxo migratório, pois quantos já não deixaram nossas terras numa viagem sem retorno, nessa interpretação outra da diáspora? Na manhã desta quinta-feira, 7 de Novembro, ouvi a notícia de que o principal dos quatro símbolos nacionais, congregador da nação brasileira e içado na Praça da Bandeira, está rasgado. Faz pensar.
In this post I write brief comments on a series of eight short films — made by independent Portuguese filmmakers — shown last Saturday at the cultural event entitled Cine Lusco Fusco at the Consulate General of Portugal in São Paulo. Though not all the films focus on the same topic, the underlying theme of most of them is the diaspora of communities from their original homeland. The programme featured the following films: Casas para o povo, by Catarina Alves Costa; On exile, elsewhere within here, by José Carlos Teixeira; Teresa, by Tânia Dinis; Penúmbria, by Eduardo Brito; Água Mole, by Alexandre Ramires (Xá) and Laura Gonçalves; Arquivo e Domicílio, by José Maçãs de Carvalho; Femmes, by Tânia Dinis; Ordem e Progresso (Pixote), by Daniel Moreira and Rita Castro Neves.
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