Alguns exemplos a partir de questionamento

Não é vencer tampouco capitular com o inimigo:
é o inimigo que deve capitular.
Esse inimigo é a preguiça e a apatia de nossos atores,
que têm de ser estimulados para sentir e para pensar.
Se eu consigo essa vitória,
se tiver de capitular ainda,
quando tenho ao meu lado um aliado poderoso como você,
não mais me aventurarei em nenhuma batalha.
(Carta de Richard Wagner a Franz Liszt. s.d.)

Meu caro amigo,
Sua ópera “Lohengrin” é uma obra sublime, de ponta a ponta:
verti lágrimas em muitos segmentos -
Toda a ópera é uma só e indivisível maravilha,
e não saberia pormenorizar tal passagem
tal combinação, tal efeito.
(Carta de Liszt a Wagner.  Weimar, 2 de Setembro de 1850)

O blog precedente despertou interesse, pois resenhei o livro “Claude Debussy”, de Philippe Cassard, respeitado pianista francês. Em sua trajetória como intérprete, Debussy é seu compositor referencial. Na publicação, Cassard menciona várias cartas do compositor, que não passaram despercebidas da leitora Mercedes. Escreve-me se a correspondência de um autor pode revelar por completo “personalidade, índole, processos composicionais, ideologia, projetos, egoísmos…”. A depender da atividade intensa e profícua de quem é missivista nato, todos esses elementos podem estabelecer preciosos contributos à elaboração de uma biografia futura. Servem as cartas igualmente para explicar humores e idiossincrasias que, confrontados com o todo, corroboram acertos avaliativos. Sem esse acervo representado pela correspondência, lacunas poderão ser intransponíveis.

Infelizmente, o avanço tecnológico e a escrita, prioritariamente reservada a computadores ou outras engenhocas, faz com que valiosas contribuições de luminares do pensar se percam nas profundezas dos arquivos e jamais sejam buscadas, quando não desaparecem tantas vezes sem explicações. As cartas escritas a mão, quando trocadas entre pares, geralmente eram guardadas com cuidado. Perdeu-se essa prática, hélas.

Duas categorias básicas podem ser avaliadas. Uma primeira a revelar, por parte de quem escreve, a certeza de que a carta será preservada pelo destinatário, geralmente à altura de um diálogo competente. O que escreve sabe que o receptor arquivará o que recebeu, pois voltado ao diálogo ou debate. Num segundo compartimento há a missiva circunstancial, a tratar preferencialmente do cotidiano. Neste caso, tem-se familiares ou amigos que não pertencem à área do remetente e temas prosaicos são tratados sem interesse maior.

Escolhi alguns exemplos entre os compositores que legaram farto material representado pelas cartas. A prática, tantas vezes diária como verdadeira missão, tem endereço preciso, a depender do receptor. Sob outro aspecto, a provocação voltada ao pensar estimulava intercâmbio constante.

Respondendo a Mercedes, mencionaria alguns livros com manancial epistolar de expressão redigido por compositores que permanecem.

Nenhuma reunião de cartas de um autor é definitiva. Esporadicamente são encontradas, em coleções particulares ou mesmo ao acaso, missivas e bilhetes redigidos e assinados que enriquecem a coleção.

As cartas de Ludwig van Beethoven (1770-1827) se estendem de 15 de Setembro de 1787 à possivelmente derradeira, datada de 23 de Março de 1827, três dias antes da morte, na qual o compositor trata de seu testamento. Basicamente, parte substancial do personagem pode ser extraída dessa fonte primordial, pois seu dia a dia, anseios, afetos, reverência a “benfeitores”, composições, relacionamento com editores, problemas relativos à saúde estão configurados nesse conjunto epistolar. É de se salientar o cuidado com a revisão de suas obras, que ele considerava “um cansaço bem menos reconfortante do que o trabalho de composição”. Nesse item, é relevante a precisão de Beethoven que, aos 27 de Janeiro, dois meses antes da morte, escreve: “…estou acamado, a sofrer de hidropisia, daí meu silêncio”, mas teve forças para realizar a revisão precisa da Nona Sinfonia e do último Quarteto. (“Les Lettres de Beethoven” – L’intégrale de la correspondance”, traduction française. France, Actes Sud, 2010, 1.737 pgs).

Da minha saudosa amiga, a extraordinária especialista portuguesa em Canto Gregoriano Júlia d’Almendra (1904-1992), recebi no início dos anos 1980 os dois volumes da essencial correspondência entre luminares do século XIX, Franz Liszt (1811-1886) e Richard Wagner (1813-1883), que mantiveram longa amizade, testemunhada inclusive pela imensa atividade epistolar (“Correspondance de Wagner e Liszt”. Leipzig, Breitkopf & Hartel, traduction française par L.Schmitt, 1900, 2 volumes). Edições posteriores, acrescidas, surgiram em França em 1975 e 2008.

Dois dos mais influentes compositores do século XIX dialogam de 1841 a 1861. Perpassam nessa vasta literatura desde assuntos do cotidiano, “sou interrompido a cada instante pela invasão de trabalhadores – presentemente um serralheiro saxão – tudo isso me perturba muito ao escrever essas linhas”, escreve Wagner (08/05/1858) – às viagens e concertos; aprofundamentos musicais; necessidades financeiras de Wagner, mas também a montagem de suas óperas; a atenção permanente e generosa de Liszt para com o amigo; desavenças logo contornadas e respeito mútuo. Em tantas cartas vê-se Wagner a plantear seus projetos, solicitando intercessão contínua de Liszt junto às entidades musicais, inclusive sob o aspecto financeiro. Liszt primou pela compreensão do talento e pela benevolência, testemunhada por depoimentos das mais diversas personalidades do período. Wagner, em sua busca da “arte total”, a abranger música, teatro, dança, artes plásticas, teve a admiração plena de Liszt, que exalta essa incessante inovação proposta por Wagner. Em uma das cartas, Wagner escreve: “Onde pode o artista encontrar suas criações senão na vida, e essa vida não teria seu valor somente quando impulsiona a criação de formas novas que respondem a ela? Regressar ao passado, seria esse o caminho criativo do artista? O que seria da fonte de toda a arte se o novo não jorrasse com uma força irresistível ou não se absorvesse inteiramente nas novas criações?” (8/9/1850). Wagner já premoniza caminhos que a música trilharia a seguir, entre esses o direcionamento após a exaustão do tonalismo. Saliente-se, contudo, a influência musical de Liszt na obra do autor de Tristão e Isolda. Aos 18 de Outubro do mesmo ano, Liszt, revelando a admiração pela obra de Wagner, tece interessante comentário sobre artigo que escrevera sobre sua ópera preferida, Lohengrin, enviando-lhe a única cópia ao músico alemão, solicitando-lhe que a devolva após leitura e a demonstrar a não guarida da criação em Paris: “…malgrado as dificuldades que encontrarei para ver publicado na imprensa parisiense artigo extenso, e também pelo fato de ser elogio a uma ópera alemã escrita por compositor alemão, em cujo sucesso ninguém tem interesse direto, longe disso, não me desespero entretanto, pois tentarei algum dia em qualquer revista, fato esse que motiva meu interesse em receber o artigo de volta”. Da parte de Wagner não há menções tão efusivas pelas composições e as atividades de Liszt como compositor, pianista e regente, apesar da grande admiração pelo músico húngaro. Sente-se nas missivas de Wagner um forte egocentrismo. O músico alemão, considerando banais determinadas razões oficiais que prendem Liszt às atividades musicais, dele recebe mensagem esclarecendo esse desacerto do amigo e se posiciona: “Encerremos esse assunto! Seremos sempre o que somos, amigos inseparáveis, dois amigos raramente encontráveis” (9/10/1858).

Nas 615 páginas de correspondências, observa-se contudo, apesar da constante “súplica”, o viés reflexivo de Wagner, a exarar posições sobre a música de seu tempo. Destaco contundente consideração sobre música e drama, extraída de carta a A.M. de Zigezar inserida no 1º volume: “É um grande erro acreditar que o público que acorre ao teatro seja constituído por músicos, tendo de entender as intenções do drama musical: fomos levados a assim pensar de maneira inteiramente falsa, pelo fato de que na ópera supõe-se a música como fim, contrariamente ao drama, avaliado como meio de valorizar a música. Tem-se o inverso, pois a música deve somente contribuir decididamente a possibilitar a cada instante o drama claro e luminoso. Todavia, a audição de uma boa ópera (quero dizer, uma ópera razoável), não deve se ater, de certo modo, à música, mas somente a senti-la voluntariamente, enquanto que o interesse mais arguto deve ser dado à ação, que nos absorve inteiramente” (Zurich, 9/9/1850). Curiosamente, a posteridade entenderia o amálgama, graças à extraordinária escrita musical de Wagner. Quanto a Liszt, vemo-lo sempre a buscar entender as necessidades do amigo, evidenciando grande empenho em produzir suas obras. Inclusive, sendo um dos luminares da composição e da interpretação no século XIX,  escreve relativamente pouco sobre si mesmo, contrariamente ao amigo. Wagner é mais profícuo como missivista nesse “intercâmbio” epistolar com Liszt, não apenas no número de escritos como na extensão. Liszt é preferencialmente mais econômico e objetivo na maioria das missivas. Frise-se, a ópera faz parte substancial da valiosa correspondência entre os dois notáveis músicos.

Em 1870, anos após o ciclo epistolar que se estende de 1841 a 1861, Wagner se casa em segundas núpcias com Cosima (1837-1930), filha de Liszt, que anteriormente fora casada com o pianista e professor Hans von Bulöw.

O espaço a que me proponho impede-me, infelizmente, de me alongar sobre esse precioso conjunto epistolar, que traduz dados relevantes de um dos períodos mais fecundos da história da música.

Atendendo a leitora Mercedes, brevemente tratarei sucintamente da valiosa correspondência de Moussorgsky e de Debussy, essa destinada a um número extenso de destinatários, mormente no caso do compositor francês. (tradução: J.E.M.)

In today’s post I discuss the importance of prominent people’s epistolary legacy to understand the society of a given epoch and the personality of the writers, helping to fill in gaps in their biographies.  As examples, a glimpse at Beethoven’s private letters and at the epistolary exchange between Liszt and Wagner from 1841 to 1861. Will new digital technologies be able to preserve memories that outlive us?