Qualidade repertorial a contradizer silêncio da mídia

Será necessário que o intérprete moderno
tome para si a responsabilidade de completar
a leitura de um manuscrito imaginando
mil pormenores que escapam à notação.
André Souris
(“Conditions de la Musique”)

Que repertório qualitativo pouco frequentado fica a depender de tantos fatores voltados à divulgação é fato. Estou a me lembrar que nos anos 1970 dei palestras em Goiânia sob o patrocínio da MUZIKA, escola de interpretação e dança, a abordar o tema do repertório não visitado pelos intérpretes, mesmo a merecer, pela qualidade, ampla divulgação. Décadas se passaram e poderia repetir as palestras sem nada alterar, mas com uma agravante, a decadência cultural atingiu a divulgação das apresentações de música erudita, mesmo que, em menor escala, programada com autores consagrados. Se isso está a ocorrer, mais sensivelmente o repertório pouco conhecido está fadado a ações voluntárias esparsas. A mídia brasileira dá ínfimo espaço à música erudita. Para as obras de extraordinário valor, mas ainda pouquíssimo divulgadas, a situação é quase caótica.

Considerando-se autores consagrados e presentes nos programas durante séculos, qual a razão para que, das 32 Sonatas para piano de Beethoven, apenas uma dezena seja insistentemente visitada? Seriam muitas outras inferiores? Repetidamente interpretadas, essas tantas Sonatas adquirem uma aura diante do público, possibilitam a insistente reescuta, motivam a comparação que os leigos fazem da execução de um intérprete frente a outro. Tornaram-se a Mona Lisa de Da Vinci ou o Semeador de Van Gogh. Fato semelhante se daria com as obras sinfônicas, óperas, música de câmara de inúmeros autores. Com uma pinça a história da interpretação retira da opera omnia de um autor determinadas composições. Eleitas, perduram per saecula saeculorum.

Tendo apresentado décadas atrás as integrais de Jean-Philippe Rameau (ao piano), Claude Debussy, Modest Moussorgsky e Francisco de Lacerda, verifica-se ao longo do tempo que apenas determinadas obras são “pinçadas” e continuarão isoladamente a ser ungidas pelos intérpretes. Independentemente desse pinçamento histórico, concorrem também a repetição repertorial empreendida por professores de instrumento de todo o mundo, que insistem na repetição, assim como concursos nacionais ou Internacionais de instrumento. Fato concreto nesse mister é a seleção que se faz de obras para os concursos. Bem prioritariamente as mesmas criações. De tal compositor podem tais e tais obras, em detrimento de outras persistentemente ignoradas. Qualidade maior das eleitas? Raras vezes. Das cinquenta e tais peças de Rameau para cravo, apenas 10% são visitadas esporadicamente por poucos intérpretes pianistas. E há quantidade excelsa na integral para teclado de Rameau. Considerando-se criações de Debussy, Clair de Lune, Arabesques, La Cathédrale Engloutie e Feux d’artifice como exemplos, caíram no gosto do público. Superior às dezenas de criações para piano do compositor? Certamente a preferência nasceu por circunstâncias do acaso, de títulos poéticos e até misteriosos, ou de outras mais conotações. Se os extraordinários Quadros de uma Exposição de Moussorgsky granjeiam repercussão permanente, as tantas outras pequenas criações para piano, que juntas seriam outros Quadros, permanecem sem a visitação de que seriam merecedoras.

As palavras acima ratificam o pouco interesse pela divulgação de Francisco de Lacerda, mormente a se ter em conta o desconhecimento pleno que se tem em nosso país das suas criações e a pouca frequência na programação em Portugal. Contudo, no pequeno auditório do Ateneu Paulistano da Sociedade Brasileira de Eubiose, a recepção às obras de Francisco de Lacerda, mormente as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, foi intensa. Ao multum in mínimo lacerdiano, aqueles que compareceram ao recital reagiram fortemente às mensagens do compositor açoriano no ano do sesquicentenário de seu nascimento.

Diferentemente do que foi feito em várias cidades portuguesas em 2011, em que as apresentações tinham a apoiá-las o power point preparado pelo ilustre professor da Universidade de Coimbra, o musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso, na impossibilidade da utilização de uma tela ao lado do piano na acolhedora sala paulistana, verbalizamos as epígrafes e as frases programáticas inseridas por Lacerda em muitas das histórias. Com um microfone, Marta Salles Corrêa de Oliveira, esposa do compositor Willy Corrêa de Oliveira, lia pausadamente os títulos e eu fazia o mesmo com as epígrafes ou frases contidas em certas histórias. Experiência que deu certo e que mereceu muito boa acolhida.

Na segunda parte, Zara – epitáfio para uma criança, do homenageado, e In memoriam Francisco de Lacerda, de Willy Corrêa de Oliveira, amalgamaram-se, pois a também miniatura de Willy fazia alusão a tantas lembranças… Dois dias antes do recital toquei, como ensaio, as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste de Francisco de Lacerda para Willy em minha casa. Ao findar, o ilustre compositor e pensador apenas disse: “essa obra é um milagre”!

O programa completou-se com a Danse du voile-Danse Sacrée de Lacerda e as célebres Danses Sacrée e Profane de Debussy, na transcrição para piano solo do editor do compositor francês, Jacques Durand.

Fiquei mais uma vez convencido de que, se houvesse guarida da mídia para eventos dessa natureza, em que obras excelsas são apresentadas, o repertório sacralizado e repetido sem limites teria uma injeção de novas partituras de autores que, pelos mais variados motivos, não conseguiram vencer uma barreira sem o menor sentido de existir, mas a permanecer quase intransponível. O desconhecimento de repertório qualitativo não frequentado limita o conhecimento, empobrece as mentes, pois tesouros jamais ouvidos jazem enclausurados nos arquivos das bibliotecas, consultados por especialistas que tantas vezes, após trabalhos acadêmicos, abandonam pesquisa realizada. Fato comprovado e hodiernamente repetido não apenas em nossas plagas.

Apesar da decadência cultural sensível, tem-se de olhar para o desconhecido. Autores qualitativos, mas desconhecidos, atendem à expectativa do público de concerto? Se pensarmos nos Concertos para piano e orquestra, possivelmente não chegam a três dezenas aqueles mais ventilados, sendo que desses uns poucos são ungidos em todas as temporadas espalhadas pelo mundo, fazendo parte de todos os repertórios dos virtuoses que percorrem as grandes salas de concerto do planeta. Como exemplos, dos 27 Concertos para piano de Mozart, poucos são os ungidos; dos cinco de Beethoven, prioritariamente apenas três são exaustivamente interpretados.

Apesar dos problemas seletivos do Youtube, que aceita joio e trigo indiscriminadamente, louve-se o fato de que Concertos antes desconhecidos do grande público ao menos podem ser ouvidos. Se chegarão às salas de concerto, só o tempo dirá.

Nos anos 1970 decidi enveredar por repertórios qualitativos pouco frequentados, do barroco à contemporaneidade. Visitando periodicamente obras consagradas, foi na opção escolhida que encontrei o meu norte. Mídia e Sociedade de Concertos têm suas regras, o que leva o intérprete a aceitá-las. Permaneço nessa partícula repertorial se considerado for o imenso universo composicional basicamente ignorado. É o que sei fazer. Semear fez-me bem. Sementes germinarão? Talvez…

Over time, a few classical pieces have been picked out by interpreters and concert societies, while others have been kept in limbo despite their quality. The public that goes to classical concerts keep hearing the same repertoire again and again, while excellent works remain hidden in museums and libraries. Since the seventies I’ve opted for the seldom played repertoire, trying to bring to light unknown treasures. Last Saturday at Ateneu Paulistano concert hall I performed pieces by composers Francisco de Lacerda, whose works are little known in Brazil, Claude Debussy and Willy Correa de Oliveira, with good reception from the audience. I believe it is rather healthy – for the growth of both performers and public –  to promote new works instead of offering the same alternatives year in, year out. I consider myself a sower scattering seeds. Maybe they will germinate.