A Flandres Rejuvenescida
Toda a realidade existente
coincide com o momento aqui-agora.
Boudewijn Buckinx
Em Julho de 1995, Paul Klinck e eu gravávamos, nos estúdios da VRT (Rádio e Televisão Flamenga) da Bélgica, em Bruxelas, para o selo PKP, a integral para violino e piano do compositor romântico brasileiro Henrique Oswald (1852-1931). Conheci Klinck no aeroporto da capital belga e de lá seguimos para Gent. No mesmo dia já estudávamos o repertório e lembro-me de que, cinco minutos após, Paul Klinck, de costas para mim, participou intensamente durante cerca de três horas das necessárias repetições. A uma pergunta minha a respeito, respondeu: não há necessidade de nos olharmos, pois nos entendemos musicalmente. No dia seguinte, um sábado quente e ensolarado, Paul se casava e fui às festividades. À noite, novo ensaio até altas horas e, na segunda-feira, em dois dias, registrávamos entusiasmados o CD.
Coordenado por Álvaro Guimarães e patrocinado pelo grupo Novecanto, dirigido por Katrijn Friant, deu-se aos 18 de Novembro daquele ano, no Musiekconservatorium de Gent, um concerto unicamente dedicado a Henrique Oswald: Sonata para violino e piano, Sonata op.44 para cello e piano, o Quarteto op. 26 para trio e piano, o ciclo de canções Ofélia para canto e piano e a Missa de Réquiem para coro a cappella dirigido por Friant. Naquela noite era lançado o CD gravado em Julho. Era a primeira vez, pos mortem, que acontecia no exterior um concerto dessa envergadura dedicado ao grande compositor. Fui o pianista de toda a camerística.
À noite, fiquei horas a pensar nas circunstâncias do concerto e no fato de que tudo se evaporava, pois partiria no dia seguinte de volta ao Brasil e, possivelmente, a magia gantoise ficaria tão somente na lembrança. No exato momento em que estava a colocar a minha mala no táxi para o caminho até a estação ferroviária de St. Peters, para de lá me dirigir ao aeroporto de Bruxelas, um carro estacionou paralelamente ao veículo e um senhor de tamanho avantajado cumprimentou-me e lembrou a noite anterior. Agradeci, mas disse-lhe que estava a partir, pois tenho por hábito chegar muitíssimo cedo aos aeroportos. André Posman, sem cerimônias, retirou a minha mala do táxi e levou-me à sua organização, De Rode Pomp, que promove concertos, gravações e exposições de pinturas. Após, conduziu-me diretamente ao aeroporto de Bruxelas. Iniciava-se um longo relacionamento que me levou, nesses treze anos, aproximadamente vinte vezes à Bélgica para gravações e concertos.
Há cerca de dez anos fico sempre hospedado em casa dos amigos Tony e Tânia, cuja bela morada, em frente a um dos muitos canais da cidade, fica a não mais de 100 metros de De Rode Pomp, com direito a um piano de armário para estudos necessários. A amizade fez Tony pintar a parte inferior da casa de verde e amarelo, como se observa na foto. Os dois outros andares tiveram como escolha o ocre, com detalhes amarelos. A família aumentou e são mais dois Ts, Trixie e Tycho, lindas crianças. Fico no último andar, a ver nos momentos de descontração, as grandes gaivotas brancas de bico amarelo que, em vôos rasantes, gritam e planam com elegância. Já presenciei desta janela, durante as muitas estadias, grandes nevascas, ventos uivantes e dias ensolarados da primavera. Os sons dos sinos das igrejas de St. Jacobs e St. Macharius, ou mesmo da Catedral de Saint-Bavon, podem ser ouvidos, dependendo das correntes de vento. Na bela Catedral está exposta uma das obras primas da pintura universal: O Cordeiro Místico, dos irmãos Van Eyck (1432). Em todas as estadas em Gent, sinto-me atraído e revisito o políptico, nele encontrando sempre um pormenor inédito aos meus olhares anteriores. Tem-se ainda, neste centro da cidade, construções medievais imponentes, como a austera Igreja de Saint-Nicholas e o Beffroi, um majestoso campanário. É um deslumbramento para os olhos.
De volta a Gent pois, capital da província da Flandres Oriental, uma das maiores cidades da Bélgica, terei recital, gravações e convívio. Nesta cidade de aproximadamente 240.000 habitantes, De Rode Pomp é uma das Sociedades de Concerto, entre muitas.A programação anual abriga mais de uma centena de recitais e concertos. Basicamente os principais conjuntos de câmara da Bélgica Flamenga lá se apresentam. Entre os intérpretes belgas, poderíamos citar alguns realmente extraordinários e desconhecidos no Brasil. Em todas as temporadas o gantois pode ouvir, na excelência, pianistas como Bernard Lemmens, André de Groote, Claude Coppens, Luc Devos, Jean-Claude van den Eyden, Peter Ritzen. Artistas russos tem-se algumas dezenas, de alto mérito. Com a maior convicção poderia afirmar que no Brasil não temos nenhuma sociedade de concertos que possa apresentar, quantitativa e qualitativamente, essa programação expressiva (visite De Rode Pomp Concertagenda e CD’s pagina). Os grandes ciclos do repertório tradicional para instrumento solo ou dedicado à música de câmara já foram lá interpretados, alguns deles várias vezes. Destaque à intensa atividade de divulgação do repertório alternativo de todas as épocas, assim como da música hodierna. Frise-se, De Rode Pomp é uma sociedade entre outras tantas, que vive da renda das atividades musicais, dos assinantes e da subvenção do Estado Flamengo, em uma cidade com um quarto de milhão de habitantes. Na realidade, todo esse intenso fluxo de apresentações faz parte da respiração desse país diminuto em dimensão territorial, comparando-se ao Brasil. O convívio com os músicos flamengos já me levou a gravar para De Rode Pomp – entre outros CDs já registrados – dez dos excelentes compositores belgas contemporâneos ( New Belgian Etudes – Gents Muzikaal Archief vol. 24). De tendências várias, há neles, certamente, uma intensa pulsação, mercê, com acréscimo de uma enraizada tradição composicional.
Sob outro aspecto, há na Rode Pomp uma sala de convívio que, de quinta à sábado, transforma-se num restaurante para o ouvinte que previamente agenda o jantar, magnificamente preparado pelo maître Philippe. Após o recital de ontem à noite e do lançamento de meu novo CD Schumann-Scriabine, André Posman comoveu-nos ao organizar um jantar dedicado aos 44 anos de casamento que Regina e eu comemorávamos.
Abriga ainda De Rode Pomp, em sua Galeria no mesmo endereço, La Perseveranza, exposições temporárias de artistas como Boris Chapovalov, Oxanna Giliuk (Rússia), Ives Dendal, Hugo Deleener (Bélgica), Jan De Wachter (Holanda) e outros mais que empregam técnicas diferenciadas e exibem tendências as mais variadas. Poder-se-ia dizer, enfim, que toda essa programação está sob a égide de uma profunda simplicidade em todos os aspectos, pois não há o menor clima de sofisticação em De Rode Pomp. Tenho inclusive, as chaves da organização, o que me faz entrar até mesmo na madrugada, a fim de estudar na sala de concertos.
Este permanente contato com a cultura flamenga é motivo para reflexão. Contudo, mais e mais sinto as derivas acentuadas que se processam no Brasil em todas as áreas. Certa vez, Roberto Campos, embaixador, senador e sobretudo um brilhante pensador, disse uma frase paradigmática a designar nossa mentalidade propensa ao ufanismo vão: tudo vai mal onde tudo vai bem.
Gent : My first visit to Gent, in Belgium, was in November 1995, for a concert entirely dedicated to the Brazilian composer Henrique Oswald. On the next day, an unexpected meeting with André Posman, the manager of De Rode Pomp, one of the many musical associations of this small but bustling cultural center of Flanders, was the beginning of a long association which, since then, resulted in nearly twenty visits to Belgium for recordings, concerts and also to meet the many friends I have made in all these years. This permanent contact with the Flemish culture led me to unavoidable reflections upon the differences between the two countries, Belgium and Brazil. I can only feel sorry for my country and its long history of unmet expectations