Navegando Posts publicados em abril, 2007

J.E.M. em 1954, desenho de Iracy

    Reencontro com o passado

On met toute sa vie pour construire sa maison
Dunoyer de Segonzac

The Child is father of the Man
William Wordsworth

Em 1998, ao ser lançado o CD 60, relativo à minha chegada ao compartimento sexagenário, escrevia no encarte: As gravações presentes pertencem a fluxos diversos. Outras anteriores, da década de 50, meu pai as guardara, mas o tempo se encarregou de destruí-las. As de 1962, ao vivo, na sala do Conservatório Tchaikowsky, bem registradas pela Rádio Central de Moscou, revelam muitos conteúdos idiomáticos, absolutamente individuais e inalienáveis que, modificados ao longo da trajetória, fazem parte da própria respiração. Apesar do distanciamento de 36 anos das gravações de 1962, antolhava-se-me transparente que o resultado pianístico ficara por conta dos estudos realizados durante alguns anos em França sob a orientação de Marguerite Long, Jacques Février e Jean Doyen. Feliz pela recuperação dessa parte da memória, frustrava-me a perda dos traços que, de meu passado mais remoto, pudessem explicar as origens pianísticas antes da viagem à Europa, no longínquo 1958.
Durante muitos anos fiquei a pensar em como me desenvolvera em São Paulo sob a tutela segura de um dos maiores professores de piano que o Brasil conheceu, José Kliass, quase esquecido hoje, mercê de tantas razões que vão da aversão aos holofotes por parte do grande mestre russo ao total desinteresse da mídia em resgatar aquele cujo resgate não venha precedido de interesses vários. O professor nascido em Odessa, às margens do Mar Negro, orientou Yara Bernette, Estelinha Epstein, Bernardo Segall, Anna Stella Schic, Belkiss Carneiro de Mendonça, Glacy Antunes de Oliveira, Isabel Mourão no início de seus estudos, Ney Salgado e meu irmão, João Carlos Martins, que lhe rende tributo em todas as suas apresentações, outrora como grande intérprete de J.S.Bach, hoje como regente que se consolida a cada dia. Esse currículo torna Kliass basicamente único pela qualidade e quantidade de pianistas formados, comparável, certamente, ao extraordinário Luigi Chiafarelli das primeiras décadas do século XX. José Kliass, que estudara com Martin Krause, o mesmo professor de Cláudio Arrau, tinha uma visão humanística ampla. Das mãos dele recebi livros que me foram faróis para o caminho que se iniciava. O mestre questionava sempre o resultado das leituras, e isso me foi fundamental. Contudo, faltavam-me os registros sonoros das audições do professor de que participei, assim como de outras apresentações daquele período.
Qual não foi o meu espanto ao receber das mãos de minha mulher, a pianista Regina Normanha Martins, um rolo de fita contendo gravações que remontam ao ano de 1954 e que imaginava destruídas. Porém, minha sogra, a respeitada professora de piano campineira Olga Rizzardo Normanha, guardara-o com afeto, escondido entre tantos outros objetos amorosos, pois naquele meu pai inserira igualmente gravações de Regina. Frise-se, a professora exerceu o magistério à frente do Conservatório Musical Campinas com uma dignidade ímpar, e no seu vasto currículo, teve como alunos Sônia Rubinsky, que testemunha perenemente a infinita gratidão à grande mestra, Cláudio Richerme e Elisabeth Normanha Atristain, esta divulgando há décadas a música brasileira no México. Alguns alunos particulares se destacaram, inclusive, em outras áreas, como as atrizes Regina Duarte e Maitê Proença e a publicitária Christina Carvalho Pinto.
Essa pequena digressão se fez necessária, a mostrar que todos nós, intérpretes brasileiros atuantes, tivemos origem sólida, muitas vezes esquecida, a imaginar pelas notas biográficas de certos músicos, através das quais entende-se que os estudos no Brasil se deram simplesmente pelo autodidatismo. A referência aos magisters que nos ajudaram é o tributo essencial àqueles que nos conduziram com firmeza e carinho.
O velho rolo de fita em questão, contendo 4 horas e meia de gravações, que remontam a 1954, teve de ser desumidificado, durante semanas, pelo experiente Betho Ieesus da Sun Trip e, após, seguiu-se difícil trabalho de resgate – a fita se rompia a cada dois ou três minutos – realizado pelo competente Sebastião Marciano da USP-FM, que para fazer a fita rolar teve de contar com um antigo aparelho particular cedido gentilmente pelo Diretor da Emissora Universitária, Marcelo Bittencourt. Aos três aqui fica meu agradecimento pela generosidade com que acederam em contribuir à causa. Aliás, meu pai já alertava no ano de 1962, em notas coladas à caixa protetora da fita, sobre os extremos cuidados a serem tomados, graças à compressão. Felizmente, os rolos contendo as gravações, algumas excepcionais, de João Carlos já estavam preservados e parte delas integra CDs e DVDs internacionais de meu irmão.
O resgate veio em dose dupla. Nessa fita, gravada pois em baixíssima rotação, tínhamos horas de gravações – muitos dos registros impróprios para divulgação comercial devido a décadas de precária conservação – suficientes para entendermos a origem originária, o nosso “DNA” musical. Há gravações de Regina Normanha realizadas durante o Concurso Eldorado de 1961, quando foi premiada, e através das quais – alguns competentes amigos músicos já ouviram os resultados – tem-se uma Sonata Waldstein, ou Aurora, op 53 de Beethoven, precisa e com exemplar rigor estilístico, assim como obras de Chopin, Francisco Mignone e J.S.Bach. Depreende-se a orientação competente de sua genitora, Olga Normanha.
Como aquele que não se lembra do passado e busca entendê-lo, pois “aparentemente” perdido, faltava-me, ratifico, esse resgate auditivo que pudesse me apontar o estágio em que me encontrava antes de atravessar o oceano. Havia críticas, comentários, cartas animadoras desse período escritas por Alfred Cortot, Felicja Blumental, Antonieta Rudge, Camargo Guarnieri, Guiomar Novaes e outros, mas o som, a essência do processo interpretativo, esse ficara no esquecimento. Compreenda-se que estávamos há cerca de quatro décadas dos primeiros registros fonográficos, efetuados em torno de 1910 e, de lá para a atualidade, temos mais de cinqüenta anos de um aperfeiçoamento extraordinário quanto às gravações. Estou a lembrar-me dos primeiros registros de meu pai, utilizando-se de pequenos rolos de fio metálico que gravavam com precária acuidade sonora. Nas audições em que João Carlos e eu nos apresentávamos, lá estava o pater a montar a pesada aparelhagem. Hoje, todo jovem intérprete tem acesso aos mais apurados e, frise-se, diminutos aparelhos, que tudo gravam digitalmente.
Qual não foi o meu espanto e emoção, ao ouvir cerca de quatro horas de música que gravara no Brasil entre 1954-58, e outras músicas em França, nas quais pude me reencontrar e entender determinadas preferências que me acompanham até hoje, mais de meio século após. Há as gravações realizadas na Rádio Roquette Pinto do Rio de Janeiro aos 30 de Setembro de 1955 com obras de Bach, Schubert, Debussy, Camargo Guarnieri e mais outros. No final da gravação eu cito a Rádio e a data dos registros. Quanto ao Concerto de Grieg, apresentado ao vivo na Rádio Gazeta no dia 25 de Fevereiro de 1957, sob a regência do sempre lembrado Armando Belardi, o locutor Cesar Abrahão anuncia ao público que o jovem estava a dedicar o concerto ao seu pai, naquele momento em um leito de hospital. Soube que, após ouvir o Concerto de Grieg, foi ele foi sedado para uma dificílima intervenção que se deu nas primeiras horas do dia seguinte. Lembro-me de ter ficado muito emocionado ao começar a execução, que transcorreu a seguir lírica e impetuosa. Felizmente, meu velho patriarca viveria até 102 anos. Há na fita a 5ª Partita de Bach, precedida de longos comentários meus a respeito da obra, isso em 1954; duas Sonatas de Mozart (K.331 e 333) e mais obras de Schubert, Chopin (Estudos op.10 nº7 e op.25 nº10, Sonata em si bemol menor op. 35), Schumann (Carnaval de Viena op.26), Debussy (Images 1º cahier), Scriabine, Ravel (Toccata), Villa-Lobos, Camargo Guarnieri (Tocata e Dança Negra), Prokofiev (Sonata nº5), Shostakovich (Prelúdios op.34), Cláudio Santoro. Completam o longo registro gravações curtas que realizara em Paris num aparelho onde colocava pequenos rolos de fita de uns 8 cm de diâmetro. Enviava minhas saudações à família em São Paulo e tentava mostrar progressos pianísticos. Comentava sempre as minhas participações nas audições públicas da lendária pianista e professora Marguerite Long, assim como suas observações a respeito dessas apresentações. Numa época em que as comunicações eram raríssimas e difíceis, esse recurso das fitas gravadas funcionava bem. Meu pai, memorialista por vocação, tudo guardou de seus quatro filhos, a proporcionar aos descendentes, tantas décadas após, a recuperação da infância e da juventude.
A escuta causou-nos forte impressão. Regina e eu ratificávamos a certeza da qualidade de nossas formações. Estávamos a ouvir desarmados, se bem que o emotivo lá estava, pois impossível não se comprometer com aqueles dois jovens distantes de pelo menos duas gerações. Não obstante, havia uma sólida estrutura advinda de nossos mestres. Para ela, o impacto se mostraria atenuado, pois há gravações de Regina que guardamos com afeto – a todos causa efeito surpreendente – da Suíte Inglesa nº 2 em lá menor de J.S.Bach realizada aos doze anos no Junior Bach Festival em Berkeley, Califórnia e, aos quinze anos, do Concerto nº 3 em dó menor de Beethoven, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com a Orquestra Sinfônica Brasileira regida por Eleazar de Carvalho. O seu “DNA” já estava auditivamente preservado.
Após horas ouvindo o material “recuperado” pois, ratifique-se que há inúmeros problemas quanto à conservação de certos segmentos, fiquei durante muito tempo a pensar. Resultou a convicção de sermos o acúmulo de nós mesmos, algo nebuloso para mim quanto à origem sonora, até o desvelamento agora ocorrido. Nesses registros, algumas entonações são as mesmas das de hoje; quando estou a tocar, nesse meio século a separar o presente, alguns princípios básicos interpretativos já faziam parte desse idiomático inefável e misterioso, fruto de outros acúmulos. Ficaria a certeza de que a visão do mundo transmitida pelos meus pais, no sentido de se buscar, no limite, a maior abrangência cultural, e a formação pianística sólida recebida por José Kliass estão sempre a me conduzir às fronteiras do meu possível. Todos temos nossos limites e dimensões do gênio, do talento ou do artesão digno apenas ajudam a explicar o homem. Se algum talento recebi, é contudo o trabalho artesão que me tem proporcionado o prazer da caminhada.
Não distante de mais uma década, a ser completada em 2008, ouvir aquele jovem tocar nos anos cinqüenta levou-me a ter por ele uma enorme gratidão. Foi a determinação daqueles passos primeiros, guiada por tantas mãos carinhosas, que me conduziram a esse perene afeto para com o piano e a Música. Já não seria uma dádiva continuar a trilhar a longa senda nessa busca inatingível?

The retrieval of the past: the recovering of a lost reel containing recordings made by my wife and me in the fifties, when we were both piano students, led me a reflection on the importance of the guidance and the encouragement I have received from my parents and music teachers, on the significance of an environment that nurtures the love of learning and to precious clues to a better understanding of the pianist and the man that – within my limits – I am today.

    Uma Eterna Renovação

Le Christ recrucifié - Nikos Kazantzaki

Este desenho de Cristo
É obra de longa data,
Mas pode ainda ser visto
Na minha casa da Mata.

Monsenhor Nunes Pereira

Aos 21 de Fevereiro, em plena quarta-feira de cinzas, quando pelo Brasil afora populações ainda se entregavam aos estertores do carnaval, estava eu a fazer as compras em uma loja de extensa rede de supermercados e fiquei surpreso ao ver, já devidamente pendurados acima de nossas cabeças e nas estantes específicas, centenas de ovos de Páscoa. A volúpia do lucro, rigorosamente semelhante àquela movida por madeireiros insensíveis ao amanhã, assim como pelas empresas poluidoras de toda espécie, atinge, no caso dos ovos de Páscoa, o ponto de descaso para com a Quaresma cristã. Se o ecossistema é atingido nos exemplos tipificados, não menos grave é o aviltamento imediato do espírito, provocado pela presença de uma mercadoria em hora imprópria, frise-se, com um único intuito, o lucro imediato.
Chegamos à Semana Santa, comemorada em tantos países onde há o cristianismo e, nesse grande rebanho, católicos e protestantes do Ocidente, assim como as várias vertentes da Igreja Ortodoxa, vivem intensamente a respeitar a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Cristo.
Quanto à latinidade, ela cultua, sobremaneira nos centros menores, a tradição a envolver as cerimônias da Semana Santa. Extraordinárias as manifestações que se processam nos países ibéricos, sendo que anualmente assistimos pela televisão, aos flashes de Sevilha em sua monumentalidade, ou à cerimônia do Lava-Pés e à missa solene do Domingo de Páscoa no Vaticano. No Brasil, as cerimônias e manifestações da Semana Santa em cidades de todos os Estados, preparadas durante meses, com maior ou menor intensidade revelam a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Cristo em cores locais, adaptando a cada Estado, cidade ou vila atávicas tradições. Uma delas, da Igreja Católica e vinda de Espanha, chegou há cerca de 250 anos ao Centro-Oeste e nos traz o maravilhamento através da Procissão do Fogaréu em Goiás Velho, onde membros da comunidade local, os farricocos, à meia noite da quarta-feira da Semana Santa, ou de trevas, atravessam a cidade descalços, encapuzados e segurando tochas acesas na representação da busca e prisão de Cristo. Tem-se também em Nova Jerusalém, no município Brejo da Madre de Deus, em Pernambuco, uma belíssima representação, com centenas de participantes das comunidades locais. Singelamente, no sul do Brasil, descendentes de vários povos europeus pintam carinhosamente ovos naturais a celebrar a data máxima. Esses poucos exemplos, nesse imenso país que comemora na fé a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Cristo, seriam a antítese da absoluta insensibilidade por parte dos mercadores do templo.
Se a Páscoa que os judeus comemoram todos os anos em lembrança da saída do Egito em direção à terra prometida de Canaã tem um significado transcendente, entre os cristãos a Páscoa irá celebrar a Ressurreição de Jesus Cristo. Precedendo esse ato final, a Paixão de Cristo abrangeria as provações recebidas por Jesus desde a sua prisão no horto à morte na cruz. As cerimônias cristãs comemorativas desse período da Paixão são fundamentais à compreensão da Semana Santa como uma culminância do espírito cristão.
O meu entendimento do sentido da Páscoa veio a partir da leitura, no início dos anos 60, de O Cristo Recrucificado (1954), do grande escritor grego Nikos Kazantzaki (1883-1957), na tradução francesa direta do grego. Trata-se de um dos mais extraordinários romances do século XX. Kazantzaki era um forte crítico da igreja ortodoxa grega e, na obra em questão, transcende a existência do homem, expondo os poucos moradores de um vilarejo grego à participação ativa na longa preparação da Paixão, da Morte e da Ressurreição. O cumprimento pascal dos aldeões no dia em que se comemora a ressurreição, Cristo ressuscitou, é a incorporação plena do significado da data. Seguindo a tradição, um deles personificará o Cristo durante a longa encenação. Manolios, o pastor, é o escolhido pelo Conselho de Anciões. É você, Manolios, que recebeu na divisão dos personagens a função a mais difícil, declara o padre em tom solene. Deus te escolheu para fazer reviver, com seu corpo, sua voz, suas lágrimas, a Santa Escritura…Você é quem receberá a coroa de espinhos, quem será flagelado, quem carregará a Santa Cruz e quem será crucificado. Deste dia em diante, até a Semana Santa do próximo ano, você não deve ter senão um pensamento, um só e único: como tornar-se digno de carregar o peso terrível da cruz. O relato mítico do autor envolve humildade, fé, liberdade, dignidade, amor ao próximo, sentimentos que, na pena do autor de Alexis Zorba (1946), tornam-se um libelo dessa perene luta do homem que busca o aperfeiçoamento espiritual contra as tentações.
A data máxima da cristandade é vivida sobremaneira nas comunidades mais simples, enquanto que nas cidades grandes, milhões de cristãos buscam, nos corações e na fé, a transcendência dessa Semana única. Para os que acreditam, é sempre uma renovação, um passo em direção à esperança.

Post Scriptum: Findava esse texto quando desço, a fim de atender o carteiro. Recebia naquele instante o livro O Canto da Paixão nos Séculos XVI e XVII: A Singularidade Portuguesa, do ilustre Professor da Universidade de Coimbra José Maria Pedrosa Cardoso, prefaciado por Rui Vieira Nery, eminente Professor da Universidade de Évora (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, 560 pgs). Precioso contributo à extraordinária presença da música litúrgica da Paixão em Portugal conservada em passionários.

Easter today: commerce and secularization in large cities, feast and faith in remote rural areas in Brazil and the story of Christ’s passion re-told in Nikos Kazantzaki’s book Christ Recrucified.