Navegando Posts publicados em agosto, 2007

Em torno de um Centenário (II)

Mon existence d’ailleurs n’est pas drôle.
Les affaires ne se raccommodent point, au contraire.
La résignation est venue; mais par moments elle
a des absences, et alors je rumine amèrement le passé
et je songe à la crevaison. Puis je me remets à la pioche.

Gustave Flaubert (carta a Ivan Tourgueneff)

Escritos de Camargo Guarnieri a J.E.M. - anos 60

Esse período parisiense enriquecedor teria, como conseqüência, seis cartas do compositor a mim dirigidas, cartão postal enviado de Washington e carta ao ilustre músico da então União Soviética, Aram Katchaturian, tendo sido eu o portador quando de viagem a Moscou em Abril de 1962. Trechos mereceriam ser citados, mas a publicação das missivas na íntegra não se torna possível, pois envolvem personagens ainda vivos. Fica contudo evidente o estilo coloquial do compositor e seu desejo de ajudar e encorajar o jovem estudante.
Villa-Lobos falecera recentemente, no final de 1959, e estudava eu algumas obras para uma apresentação comemorativa. Entre elas, Chôro nº 5, Alma Brasileira. Ouvindo-me, imaginou criar pequena obra in memoriam. Surgiria Homenagem a Villa-Lobos, mais tarde integrando o caderno de Improvisos. Em carta de 2 de Abril de 1960, Guarnieri me escreveria: “ A ‘Homenagem a Villa-Lobos’ já terminei. Estou lhe mandando uma cópia, com os Ponteios. Fiquei contente com essa obra. Vamos ver se você gosta do trabalho, assim tocará bem.” Na mesma missiva, pede-me para entrar em contacto com nossa amiga comum, a notável pianista grega Vasso Devetsi: “ Diga, por favor, à Vasso que já comecei a copiar o ‘Concertino’. Assim que estiver pronta, mandarei uma cópia que prometi a ela.” Sobre Kleusa de Pennaforte, observaria: “ O concerto em Milão foi um sucesso. A Kleusa cantou como um anjo. Foi um prazer. Ela já está em Paris? Escreva-me contando. A Kleusa é uma das cantoras mais inteligentes que conheci em toda a minha vida.” E conclui: “ Lembro-me sempre daí com saudades. Agora, estou aqui, não adianta viver Paris…”.
Na carta de 16 de Maio, comenta: “Recebi hoje uma deliciosa carta da Vasso! Ela é mesmo um encanto. Fala muito de você e com entusiasmo!” Mostrando uma outra faceta, a de ter amizade por pessoas das mais variadas condições, escreve: “ Mande-me o nome certo do ‘concierge’. Vou lhe fazer uma surpresa mandando selos da inauguração de Brasília. Não diga nada a ele.” Nessa, e na carta de 21 de Junho, trata da documentação visando a uma bolsa, que por fim consegue através do Ministro da Educação Clóvis Salgado, de quem era assessor musical: “Sua bolsa já foi autorizada pelo Ministro. Você já é bolsista. Aproveite o mais que puder.” E o cansaço por obra finda: “Minha vida está mal, mal, muito mal. Única coisa que me consola é o trabalho. Terminei minha obra para o concurso Ricordi. Ontem acabei a orquestração. Não tenho feito outra coisa: trabalho, trabalho sem parar. Escrevi a obra em um mês e quatro dias. É tempo recorde, não acha? É o meu meio lucrativo. O resto vai mal, muito mal.”
Aos 24 de Outubro, outra carta, acusando o recebimento da minha, datada de 28 do mês anterior: “ O seu silêncio me fez pensar numa viagem estratosférica ou interplanetária, mas agora vejo que você continua entre os viventes desta pobre terra…”. Sobre sua produção: “Atualmente estou trabalhando na minha 4ª Sinfonia. Espero terminá-la até o fim deste ano. Aquilo que já escrevi agrada-me! Espero continuar com o mesmo fôlego.” Pede-me comunicar à Kleusa preparar a “Sêca” e os “Três Poemas Afro-Brasileiros” pois, se for à Paris para dirigir a Orquestra da Rádio Difusão Francesa, gostaria de tê-la como solista.
A bolsa comunicada na missiva de Junho só seria oficializada no ano seguinte, como afirma na longa carta de Janeiro de 1961. Nesta, tece comentários sobre a endemia político-cultural brasileira que, infelizmente, não tem até hoje vacina confiável: “Deveria estar com as malas prontas para a França, pois teria concerto com a Orquestra da Rádio Difusão Francesa, no dia 2 de Fevereiro. Tive que adiar porque não consegui que o Ministério das Relações Exteriores me pagasse as viagens ida e volta. Se eu fosse jogador de futebol então tudo seria mais fácil! Héllas!”. Desenvolve o tema em outro segmento: “Estamos num período de esportes. Só se fala em boxe, tênis e outras maneiras de desenvolver os músculos dos braços e das pernas. Para o cérebro ainda não se pensou quase nada. É uma lástima ! Mais é verdade.” Acusa o recebimento de outra carta de Vasso Devetzi, em que a pianista faz elogios ao jovem estudante e, logo após, comenta: “…ter sido eleito, por unanimidade de sua Congregação, Diretor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Confesso que não queria aceitar pois bem sabia o trabalho estafante que teria. Enfim, todos queriam e eu cedi. Aquilo está uma verdadeira bagunça. Tenho trabalhado como louco. Imagine que aquela escola esteve 13 anos sob intervenção judicial. Foram 13 anos de completo abandono. Agora estamos tratando de federalizá-lo. Já conseguimos que o Juscelino mandasse uma mensagem à Câmara Federal, por isso estamos muito esperançosos que logo São Paulo terá uma escola à altura de seu progresso.”
Na última carta, datada de 10 de Agosto de 1961, Guarnieri, inicialmente comunica que regressara de viagem: “Estive nos Estados Unidos, de onde lhe escrevi. Quando voltei, me casei, e assim é que estou muito feliz…” Como sempre, estimula-me a continuar os estudos com afinco: “ Soube, pelo Sequeira Costa, que há dias me escreveu, do resultado do Concurso Marguerite Long. Você não deve esmorecer. Continue estudando e progredindo, isto é o importante. Você é um pianista de grande talento, que pela inteligência e honestidade de trabalho atingirá o alvo desejado. O fato de não ganhar um primeiro prêmio não é razão para esmorecer. Quando mais não seja, um concurso sempre traz progressos, isso pelo esforço que se faz pelo desejo de vencer. O Sequeira Costa me diz que o aconselhou a ficar mais tempo na Europa. Ele tem toda razão.”
Aos 15 de Março de 1962, Guarnieri escreve uma carta de recomendação ao ilustre compositor Aaran Katchaturian, entregue em Abril. Em Junho retornava ao Brasil e nossos contactos continuaram durante alguns anos, tornando-se mais esporádicos devido a muitas razões, até comuns para nós dois: trabalho intenso, família com crianças para criar.
A convite de Camargo Guarnieri, toquei sob sua direção, à frente da Orquestra Sinfônica da USP (OSUSP), o Concerto para teclado de Carlos Seixas, nos dias 17 e 19 de Março de 1983. Em 1985, fiz um convite a Guarnieri para que escrevesse uma obra para piano em homenagem ao grande compositor romântico brasileiro Henrique Oswald, destinada a um caderno a abrigar oito composições de autores de valor e editado posteriormente pela Universidade de São Paulo. Aceitou com prazer e compôs uma bela peça, Momento nº 7. Outras poucas vezes estive em seu estúdio à Rua Pamplona. Em fins de 1992, a Universidade prestou uma homenagem a Camargo Guarnieri. Alunos e professores tocaram algumas de suas obras. No peristilo da morte, que ocorreria no ínício de 1993, o músico ficou muito comovido. Poucos anos após, sua viúva, Vera Sílvia Guarnieri, num ato de generosidade e grandeza, doou todo o acervo do grande compositor à Universidade de São Paulo, pois ele fora durante muitos anos regente titular da OSUSP. Todo esse preciosíssimo material está hoje depositado no Instituto de Estudos Brasileiros, IEB, no campus da Cidade Universitária. De minha parte, enquanto estive mais ligado a um dos programas de Pós-Graduação da USP, fui orientador de três dissertações de mestrado e uma tese de doutorado dedicadas à obra de Camargo Guarnieri. Uma das dissertações, praticamente estruturada, ficou inconclusa com o falecimento da orientanda e boa intérprete da obra do compositor, a pianista Cynthia Priolli.

Camargo Guarnieri, anos 50 - foto: José da Silva Martins

Esse é um simples tributo a um dos mais importantes vultos da Cultura Brasileira de todos os tempos, com quem tive o privilégio de contactos tão marcantes em período fundamental de nossas vidas.


These articles are a tribute to the outstanding Brazilian composer and conductor Camargo Guarnieri in the year of his birth centennial. I recollect his friendship with my parents, the music lessons he gave to my brother and I at his home in São Paulo, the period we shared the same apartment in Paris, when I was there for advanced studies with Marguerite Long and Jean Doyen, and the many letters we exchanged after his return to Brazil.

Em torno de um Centenário ( I )

Camargo Guarnieri e J.E.M. - 1954 - foto: José da Silva Martins

Um ego forte, bem estruturado,
enfrenta e luta, tergiversa,
contorna e ressurge acima dos obstáculos,
pois viver é lutar e vencer
na repetição dos impecilhos até o final.

Eduardo Etzel

Mozart Camargo Guarnieri nasceu em Tietê, Estado de São Paulo, no dia 1º de Fevereiro de 1907, vindo a falecer em 1993. As comemorações de seu centenário, apesar de esforços, não estão à altura do grande compositor que ele foi. Obras são executadas em festivais ou isoladamente, mas não com a freqüência que seu trabalho merece. Dir-se-ia, uma pálida manifestação geral. Artigos e livros têm destacado a vida e a criação de Camargo Guarnieri, alguns relevantes, mas ainda pouco se fez. Considerável parcela de sua produção permanece em manuscritos autógrafos. Camargo Guarnieri pertenceu à tríade ímpar da música brasileira de uma época, completada por Villa-Lobos (1887-1959) e Francisco Mignone (1897-1986).
Sobre o homenageado, diria dele ter guardado lembranças indeléveis de 1952 a 1964. Os contatos posteriores, em São Paulo, foram mais esporádicos. No decênio de 50, Guarnieri freqüentou muito a casa de meus pais, que o convidavam reiteradas vezes para jantar. Apreciadores de um bom vinho, o ilustre amigo e meu pai deliciavam-se com algumas garrafas de safras raras. Guarnieri, nessas oportunidades, ouvia-nos, ao João Carlos e a mim, sendo que dedicaria no período duas obras para meu irmão. Tendo nosso professor de piano, José Kliass, espírito “ecumênico”, raro entre os mestres da especialidade, recebemos então, à Rua Lupércio Camargo, onde morava o compositor, muitas aulas de música e também de interpretação pianística. Aprendemos, sobremaneira, a lidar com a frase musical, uma das tantas qualidades do também professor de música na ampla acepção.
Permaneci alguns anos em Paris, a estudar nas classes dos pianistas e professores Marguerite Long e Jean Doyen. Morava no XVIIème, 17 bis, Rue Légendre, em um terceiro e último andar. Tratava-se da sede social de uma importante casa de essências para perfumaria, da qual meu pai foi agente em S.Paulo durante seis décadas: Roure Bertrand & Justin Dupont, com fábrica em Grasse, a capital das essências. Nesse andar, onde eram guardados os arquivos da empresa, podia estudar até altas horas da noite, pois não tinha vizinhos após às 17 horas.
Quando Guarnieri chega a Paris, em fins de Janeiro de 1960, o colega e pianista Gilberto Tinetti e eu fomos recepcioná-lo no terminal de ônibus dos Invalides. Chegara cansado e amargurado devido a problemas afetivos. Dias conturbados, merecendo reflexões, daí ter escolhido Paris, onde permaneceria cerca de um mês. Ao comentar com o Presidente da Roure Bertrand a importância de Camargo Guarnieri no cenário musical e a fase difícil pela qual passava, Charles Vidal pediu-me que o convidasse, em seu nome, para hospedar-se no terceiro andar, pois espaço não faltava. O compositor exultou, porque teria maiores facilidades de vida e de estudo. Tempo extraordinário foi o convívio. “Monsieur” Vidal levou-nos para jantares em restaurantes do padrão de La Tour d’Argent, Le Fouquet ou Maxim’s, completamente fora de nossas possibilidades, e lá íamos nós bem felizes.

Kleusa de Pennaforte e J.E.M. - 1960 - foto: Antoine Robert

Durante a estadia de Guarnieri, recebíamos a visita de músicos e amigos. A cantora Kleusa de Pennaforte vinha sempre ensaiar, pois realizaram recitais na França e na Itália. Também lá estiveram o competente compositor, regente e professor Louis Saguer – com quem estudei durante três anos matérias teóricas, a conselho do grande Fernando Lopes-Graça – e outros mais. Ricardo Tacuchian, em artigo exemplar (Relações da Música Brasileira com Lopes-Graça, in Brasiliana, Revista Quadrimestral da Academia Brasileira de Música, nº 17, maio de 2004, p. 18), comenta: “Em bilhete informal de Paris, 28.2.1960, Guarnieri comunica que está naquela cidade desde o dia 29 de Janeiro e que encontrou, no apartamento de José Eduardo Martins, dois outros amigos comuns: Louis Saguer e Jean Riculard”. Sob o mesmo teto e com dois pianos, não havia dificuldades quanto aos nossos estudos. Permanecia Guarnieri a compor, utilizando-se muitas vezes do piano, ou a escrever suas cartas, pois era um missivista absoluto. Nesse período, eu estudava em média de seis a oito horas por dia. Estou a me lembrar de que Guarnieri achava absolutamente necessária a disciplina na fase de aperfeiçoamento. Não tínhamos, assim, problema algum de relacionamento. Ia aos meus cursos e o compositor aos seus compromissos na cidade, mas conversávamos muito sobre os mais variados assuntos, a preferir contudo contextos musicais. Jantávamos em bistrots, ou tomávamos lanches no próprio apartamento. Por várias vezes o amigo almoçou na cantina da firma e, com bom senso de humor, granjeou admiração de todos os funcionários.
Após o seu regresso ao Brasil, mantivemos um bom relacionamento epistolar. Tópicos das cartas de Camargo Guarnieri referentes ao convívio amistoso estarão no texto a ser publicado na próxima semana.