Para além das análises
Pourquoi le joueur de guitare dédaignerait-il le cérémonial du thé
pour la seule raison qu’il connaît quelque chose sur les relations entre les notes?
Je connais quelque chose sur les relations entre les lignes d’un triangle.
Cependant me plaît le chant de l’eau et le cérémonial qui honorera le roi, mon ami…
Antoine de Saint-Exupéry
A uma pergunta de aluno referente às suas leituras sobre a obra musical e a influência de fatores extras, assim como a respeito da quantidade de análises diferenciadas que pode ser proposta à composição, fiquei a pensar e teci algumas observações. Importante é considerar que o ato de interpretari uma criação musical deve sempre pairar acima de quaisquer categorias de análise, pois é a ação final, plena, inconteste. São as várias categorias analíticas fundamentais? Sim, o intérprete consciente não pode prescindir de algumas ferramentas essenciais à boa leitura de uma partitura. Diria que os alicerces da boa interpretação de uma obra musical passam por esse aprofundamento. Somente através da verificação das várias estruturas que compõem a criação musical pode o intérprete entendê-la e, após maturação, fazê-la emergir em direção ao destino final, a imagem sonora decorrente da performance. Mesmo após récitas, a obra continuará a ser processada no interior de cada intérprete. O grande pianista Sviatoslav Richter, segundo relato de seu mestre Heinrich Neuhaus, só se sentia seguro depois de algumas apresentações públicas de uma nova composição incorporada ao repertório.
Das tradicionais análises musicais sobre aspectos da forma, da harmonia, do contraponto, da frase musical e de tantas outras categorias surgiram, mais acentuadamente nas últimas décadas, teorias analíticas complexas e, por vezes, formuladas por não-intérpretes. Seria possível até entender que a inexistência da práxis musical tenha uma influência direta nesses teóricos da análise. Algumas vezes, deparei-me com profissionais dessa área que desconhecem repertório e têm, por vezes, idiossincrasia velada ou não pela performance. Teorias analíticas pensadas hoje, nesse universo diversificado e propenso a aceitar o novo sem restrições, desde que bem apresentado, devem ser observadas com cautela quando concernentes aos repertórios do passado. Uma teoria incensada no momento pode ser desacreditada anos após. Isto é fato evidente. Essa prolixidade tem distanciado muitos músicos voltados à prática musical do ato de se debruçar sobre uma partitura por absoluto desnorteamento frente ao que lhe é proposto.
Há anos, verifiquei espessa tese de doutorado na qual uma obra consagrada, de apenas poucas dezenas de compassos, foi tema desenvolvido pelo proponente em algumas centenas de páginas. Tabelas numéricas, quantidade de gráficos e informações tentavam explicar uma obra extraordinária que o intérprete cuidadoso saberá entender de maneira transparente, apenas com plena atenção ao que está fixado pelo ilustre compositor, falecido nas primeiras décadas do século XX e que, frise-se, não gostava de ver suas obras analisadas.
Seria possível entender que, mais as teorias se tornam quase que inintelegíveis, mais há o distanciamento do fulcro central de uma obra musical: o estilo. Este basicamente não entra em causa nessas análises, pois pareceria subjetivo demais. Teorias novas sobre o repertório tradicional nascem de um acervo hodierno do estudioso. Suas informações, estruturadas em conhecimentos comuns a outras áreas igualmente, e que captam, inclusive, avanços da informática, almejam transferir para a extensa criação musical dos séculos anteriores olhares do momento presente. Se úteis às inúmeras tendências da música contemporânea, pois por vezes oriundas desse universo, tenderiam a compreender a criação do passado sob ótica sectária. Poderia acrescentar que uma provável desorientação pode ocorrer para o intérprete, a impedi-lo de aflorar o mistério no instante do acontecido durante a performance. Passar-se-ia pois, através de determinados novos approaches analíticos, a aparência de uma verdade. Antolha-se-me que o estilo, essa impressão digital de um autor, deveria ser perceptível ao se conhecer parte de sua opera omnia, pois estendendo o universo cognitivo o intérprete terá referências indispensáveis que levam à performance. Captar o ambiente do compositor, suas preferências e rejeições, conhecer a obra de seus coetâneos e eleitos do passado são igualmente requisitos a dimensionar a interpretação.
A história, do repertório barroco àquele dos meados do século XX, está plena de fatores influentes a substanciarem a interpretação. Seriam eles de ordem descritiva, programática ou sugestiva. Os clavecinistas, em pleno século XVIII, titulam suas criações no intuito de entenderem a natureza, o onomatopaico, o retrato de algum personagem. No Rappel des Oiseaux, de 1724, Jean Philippe-Rameau realiza ousadias modulatórias para o período, mas só se apreende o espírito da obra através da compreensão extra-musical. Dir-se-ia, um amálgama realiza-se entre a observação analítica e a imaginação do intérprete, mas esta é soberana. De que maneira apreender a importância das fundamentais em Rameau e na música dos séculos a seguir se não se conhecer o seu Traité de l’Harmonie de 1722? Como entender as Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau se, a partir de um estudo prévio, não penetrarmos no universo das histórias que estão a desfilar? Alfred Cortot traduz, a partir do poético-literário, intenções românticas nas obras para piano de Chopin, Liszt e Schumann. Como apreender as intenções musicais dos lieder se não nos inteirarmos do sentido do universo poético? A interpretação das obras orquestrais de Hector Berlioz e de Franz Liszt passa, necessariamente, pela visão subjetiva essencial. Em outro patamar, Claude Debussy sugere a idealização de uma imagem por parte do intérprete ao colocar a titulação dos Préludes para piano no final de cada peça. Essa sugestão é um alerta a mais para a compreensão da obra. A magia do sugerir reside na ausência da imposição, a dar ao pianista a prerrogativa de outro descortino. Quando Vladimir Jankélévitch propõe, após observação filosófico-musical, elementos de apreensão de uma obra através do inefável, para autores da dimensão de Liszt, I. Albéniz, Ravel, Fauré e, sobretudo, Debussy, não estaria a criar o clima propício ao entendimento final, aquele da performance? Frise-se, a análise, seja qual a sua categoria, nunca pode ser excludente, faz parte do todo. Contudo, ficaria sempre a sinalização no sentido da busca das origens-originárias de um teórico no âmbito do envolvimento com a música ou com a práxis musical. Caberá ao intérprete, elo final do desvelamento da criação musical, após debruçar minucioso sobre a partitura, torná-la sonoramente viva e, ao libertar-se, criar a interpretação. Rigor e imaginação.
Essas considerações fizeram-me lembrar de episódio ocorrido durante uma das gravações que realizo anualmente em Mullem, na Bélgica. Estava eu registrando fonograficamente, em condições de total excelência nos itens acústica, instrumento e tecnologia, uma obra do ótimo compositor belga Roland Coryn (1938- ). Tratava-se do Adagio Funebre, segundo dos 3 stukken vour piano. A titulação já está a demonstrar o clima da obra. Contudo, apesar de prévio e detalhado estudo analítico da composição visando ao registro sonoro, não estava satisfeito com o resultado. Foi quando Johan Kennivé, amigo, engenheiro de som e psiquiatra, disse-me que eu teria de compreender que se tratava de uma interpretação em torno da morte, imbuída na mente de um compositor flamengo. Permanecia diante do piano e Johan contou-me o enredo de um poema, a fazer-me ouvir a seguir uma gravação que fizera de um espetáculo em que fora homenageado o poeta e escritor de Brugges Guido Gezelle (1830-1899). Deste, o recitante, com voz grave, declama lentamente uma poesia em flamengo acompanhada por música incidental. O enredo, um cortejo fúnebre numa aldeia na Flandres em que o esquife, sobre uma carroça puxada por cavalos pesados e enormes – característicos da região -, seguia observado pelos moradores. Findo o poema, fez-se um longo silêncio e, após, disse ao Johan que julgava ter entendido o clima, simplesmente pela severa e serena narrativa do recitante, pois a língua flamenga é-me de difícil entendimento. Ao tocar novamente o Adagio Funebre, o sentido oculto, ora revelado, pareceu-me presente. Bastou uma só execução e a gravação ficou.
Ideários são eleitos ao longo das trajetórias de um músico. Seria desse amálgama análise-imaginação que nasce o interpretar que transmite mensagem. A ferramenta analítica tem sua importância; todavia, sem o encantamento, a aridez se instala. E nada a fazer em solo infértil.
Musical Performance:
The knowledge of traditional music analyses, encompassing form, harmony, counterpoint, phrase and many other elements, is an essential tool for the elucidation of aspects of a score. However, the musical analysis, particularly in the last decades, has developed into complex and sometimes short-lived theories, leading the performer to perplexity in face of an array of different and occasionnally incomprehensible approaches to musical works. Every musician needs to know the fundamentals of music theory, but should also be able to add to his reading of a score extramusical elements – such as the knowledge of the composer’s style, environment, influences, preferences – as a direction for performance. The interpretation will then do justice to the printed page and delve deeper into the magic of creating music.