Eugenia Michelli

A pitangueira do nosso quintal - pormenor - foto: J.E.M., Set/07

Je crois que nous allons être amenés à fort bien
nous connaître, ce grand déodat élégant
(cedro do Himalaia)
et moi même, et même nouer des liens de profonde amitié
que mon départ inéluctable, un jour, ne pourra pas briser.

Paul Brunton

No início do século XX, a extraordinária pianista Antonieta Rudge (1885-1974) ganhou de seu mestre, Luigi Chiafarelli (1856-1923), muda oriunda da pitangueira que o professor tinha em sua casa. Ao longo das décadas, a pianista mudou várias vezes de endereço mas, para onde fosse, replantava nova muda extraída da árvore que era deixada. Foi assim que, em 1971, após visita à Antonieta Rudge e ao grande poeta Menotti del Picchia na residência do casal à Av. Brasil, demonstrei admiração pela pitangueira do jardim que dava para a via pública. Serenamente, a pianista retirou da terra uma muda – certamente a seguir rito realizado tantas outras vezes – e me ofereceu, não sem antes contar a história da árvore frutífera.
Recordo-me de ter trazido com o máximo carinho essa perpetuação de pouco mais de 30 centímetros. Encontrei um lugar no fundo do quintal, preparei bem a terra, plantei, agüei e, durante dias, ela foi tratada com a maior atenção até adaptar-se bem à nova morada. A planta mirtácea, eugenia michelli, também conhecida por ibipitanga ou eugênia uvalha, crescia, ganhava e perdia folhas, brotava novamente e durante uns bons seis anos não surgiram flores, tampouco frutas. Decorrido esse período, pouco a pouco ela encorpou, cresceu e hoje já tem cerca de sete metros de altura, com boa expressão lateral, apesar das constantes podas. Euterpe e Santa Cecília, musa grega e padroeira da música, respectivamente, devem zelar pela herdeira de longa dinastia.
A pitangueira é uma árvore especial, faz-nos entender a passagem das estações, pois as folhas caducam. Se nos trópicos convivemos com o verde perene, aquelas árvores que ficam desnudas nos remetem às quatro fases distintas. Entramos na primavera e ei-la plena de generosidade a ofertar pitangas, essa fruta tão frágil, mas de sabor único. Nesse período, não conseguimos apanhar todos os frutos, mormente aqueles dos galhos superiores. A safra pode variar dependendo das chuvas e das temperaturas anuais, mas geralmente é boa, e todos curtem as frutas frescas ou as decorrências, pois geléia e licor fazem-nos lembrar da pitanga o ano inteiro. No verão, o verde pronunciado das folhas que brotaram contrasta com as cores de rolinhas, sabiás-laranjeira, pardais, bem-te-vis e maritacas, que buscam abrigo na velha árvore nos momentos de sol forte. Ao aproximar-se o outono, o vento faz cair as folhas já ressecadas que, ao encontrarem o chão, dão o derradeiro estalo, e esse espetáculo prolonga-se por mais de um mês. Finalmente, em pleno inverno, flores brancas e novas folhas de tonalidade verde-claro timidamente brotam dos galhos nus, e assistir a árvore renascer é uma alegria. No auge da queda das flores – prenúncio das frutas que virão a seguir -, a analogia se faz com uma tímida nevasca.
O ciclo repete-se anualmente, a evidenciar que nós também estamos em constante renovação. A velha pitangueira “musical” tem sido seguida desde aquela muda entregue à grande pianista Antonieta Rudge pelo professor dedicado e nos conta história de mais de um século. Quando em 1994 o Departamento de Música da Universidade de São Paulo transferiu-se para o novo prédio no Conjunto das Artes, plantei no pátio muda extraída de nossa casa. Reza a sabedoria oriental que uma planta só atinge a sua plenitude quando cercada de amor. Treze anos se passaram. A nova pitangueira tem pouco mais de dois metros. Nunca frutificou…