Navegando Posts publicados em setembro, 2007

Dignidade Mantida

Seu Constantino - Amolador; foto: J.E.M.

Lembranças sempre vêm quando nos deparamos com o estímulo a aguçar analogias. Quando miúdo, diariamente convivíamos com artesãos solitários ou vendedores, que se tornavam partícipes do cotidiano. Estou a me lembrar dos anos 40, quando verdureiro, engraxate, amolador, vendedor de leite de cabra a puxar por um corda alguns animais, entregador de leite, todos a passar pela calçada de nossa casa em dias certos, dando-nos uma alegria que se foi estiolando a partir do crescimento mal planejado da cidade. Recordo-me dos triciclos que traziam, do filão, da pescada num grande bagageiro em zinco, pleno de pedaços de gelo. Havia garrafeiros e catadores de papel, aqueles dando uns trocadinhos por certas garrafas, estes a pesar jornais velhos em balança manual. Sabíamos os nomes de todos, e era sempre um prazer vê-los em suas atividades. Os sons ficaram no de profundis: os guizos das cabras a tilintarem à distância eram a certeza do bom leite a ser tomado in loco; a flauta de Pã do amolador, a correria em busca de facas, canivetes, tesouras de minha mãe, navalhas de meu pai que, após cuidadoso trato, ficavam afiadíssimos. Pregões de vendedores, quando próximos ao portão, ressoavam pelo quintal, a identificar os personagens. Havia cordialidade e tempo para estreitar relações. A urbe descontrolada e imensa, a violência à espreita, a pressa que leva ao individualismo, o anonimato forçado pelas contingências, tudo contribuiu para o desaparecimento daquele maravilhamento que a criança via e ouvia. Mas a infância tem essa magia de proporcionar a tardia visitação às imagens retidas, de maneira clara, sem névoas.
Se aquele universo acalentado, ao ser rememorado, esvaiu-se, é uma felicidade verificar um remanescente que persiste, na evidência de que nem tudo desapareceu. Aos domingos, sempre por volta do meio-dia, um amolador à antiga passa há anos pelas ruas de minha cidade-bairro, o Brooklin. De longe faz-se ouvir através de sua flauta de Pã, instrumento que remonta ao deus grego dos pastores. Hoje de plástico, na minha infância de lata ou madeira. Povos andinos, da Oceania e dos Bálcãs empregam essa flauta em suas danças e folguedos. Em nossas terras, flauta de Pã e gaita de boca ficaram associadas à presença de um amolador. Escalas rápidas ascendentes e descendentes têm as intensidades variadas determinadas pela aproximação e afastamento desse especialista. Exatamente como aquelas que ouvia quando pequeno.
Estava a estudar e parei. Fui ter com o Seu Constantino, espanhol que há 47 anos exerce o trabalho em São Paulo, após três na Espanha. Aos 79 anos, ei-lo em sua moto antiga, ferramentas e a pedra de esmeril. Aciona o motor, afia o que lhe entregam, toca a flauta de Pã e sempre surgem clientes que o conhecem e confiam em seu trabalho impecável. Exatamente como o amolador de minha infância. Fixo a sua imagem, que poderia ficar acoplada, sem retoques, àquela guardada nos anos 40. Seu Constantino, após trabalho feito, sobe em sua moto, aciona-a e parte lentamente, sempre a tocar as mesmas escalas. Os sons se distanciam e eu vou ao encontro daqueles outros, de meu piano.

Particularidade no Estudar

Peu à peu,
la mémoire m’est cependant revenue.
Ou plutôt je suis revenu à elle,
et j’y ai trouvé le souvenir
qui m’attendait
.
Albert Camus

Frase de Jacques Février, 1959

Durante uma aula em curso da Graduação na Universidade de São Paulo, perguntou-me um aluno: Deve-se estudar lenta ou rapidamente? A questão implicou uma série de considerações que me fizeram retornar aos tempos de alunato.
Em fins de 1958, estava a estudar em Paris com o pianista e professor Jacques Février (1900-1979). O mestre, amigo e intérprete ideal do compositor Francis Poulenc (1899-1963) foi o primeiro pianista francês escolhido por Maurice Ravel (1875-1937) para apresentar o seu Concerto para a mão esquerda na première parisiense. Em uma das aulas escreveu, em vermelho e com letras grandes, frase que seria para mim referência futura. Tanto é que, ao chegar ao Brasil, destaquei a folha, emoldurei-a e coloquei-a em meu estúdio. Nunca trabalhe nem forte nem rápido, mas profundo e relaxado, era a frase em questão. É certo que os arroubos da juventude impelem o jovem à velocidade e ao impacto, mormente se considerarmos que desde o início da metade do século XX, de maneira crescente, houve a proliferação de Concursos de Piano. A concorrência dos jovens, frente ao público e ao júri, estimulou no candidato não só a busca da performance a mais precisa, como a virtuosidade extrema. Ingredientes causadores do choque, do impacto são agregados, sendo pois a frase de Jacques Février um alerta no sentido da procura da Música na partitura o mais amplamente possível. A abusiva quantidade de concursos e de candidatos não representaria nenhuma garantia de sobrevivência dos vencedores, podendo ser até a antecâmara da frustração, quando os holofotes se dirigirem a novos vitoriosos. Não seriam, sob outra égide, determinadas gravações no intuito único de evidenciar habilidades do instrumentista em detrimento do compositor, atração que leva à imitação, um impecilho ao desenvolvimento harmonioso do intérprete?
Ao ler o excelente livro de aforismos do pianista e professor russo Vitaly Margulis (1928-), Bagatelas op.6 (Vila Nova de Famalicão, Quase, 2001, 127 págs.), com acurada tradução, prefácio e notas de Sofia Lourenço, deparei-me com frases não distantes do mestre francês: O pianista inteligente exercita-se em andamento lento, pois ele necessita de algum tempo para reconhecer se atingiu ou não as suas intenções. Alguns pianistas conseguem pensar e exercitar-se com rapidez, mas não os confundam com aqueles que não pensam de todo, e por isso estudam depressa (aforismo 64); guardem sempre uma reserva dinâmica para as últimas notas (af. 199), quanto às grandes intensidades de um final de peça; “Piano” com expressão não quer dizer “forte” (af.197), referindo-se a básicos opostos da intensidade.
O estudar uma obra lentamente conduz à compreensão do todo. Linhas melódicas ou não, processo estrutural, legato, pedal e a conseqüência sonora, acentuações, flexibilização dos andamentos, intensidades e silêncio dimensionam-se. Dessa apreensão resultaria a interpretação musical plena, reflexiva e comunicativa. A virtuosidade submete-se à Música, a ser um meio de transmissão da mensagem. Jean Cocteau já não diria que o virtuose não serve a Música, mas dela se serve? Quando ouço jovens ou não exercitando-se sempre em alta voltagem, frise-se, alta intensidade, a repetirem as passagens sempre da mesma maneira, pois estão apenas a buscar a virtuosidade que pode externar o vazio das idéias, tenho a nítida percepção de uma performance robótica e panfletária. E ela assim será sentida por pequena parcela inteligente do público. Esses executantes pois, que estão a tocar obedecendo critério único, raramente pensam, e a repetição diferenciada na busca de valores musicais não faz parte de suas intenções. Parafraseando François Couperin (1668-1733) em texto de 1713, j’aime beaucoup mieux ce qui me touche, que ce qui me surprend (eu amo muito mais aquilo que me comove àquilo que me surpreende), diria que a permanência de um intérprete na história é prioritariamente musical.
O fato de gostar dos esportes fez-me atento às entrevistas de técnicos das várias categorias esportivas. Inúmeras vezes ouvi-os comentar que, para se apreender bem os movimentos de um atleta, torna-se necessário estudá-los através do slow motion, pois apenas após conhecer sua origem primeira, a contração muscular que se acentua, o olhar a demonstrar intenções, o impulso, pode um especialista ter um diagnóstico preciso da capacitação plena de um esportista. Jean-Philippe Rameau (1683-1764), seguindo princípios cartesianos, já não estudara os movimentos dos cavalos nas cavalariças, ou o canto das fundamentais por um funcionário de teatro em suas atribuições de rotina, a fim de deduzir e formular suas teorias? O gesto adequado e o lento podem estar sendo esquecidos nesse mundo atribulado. Buscam-se recordes nos esportes. Estão a ser quebrados cotidianamente. O contágio torna-se natural nas outras atividades, mercê igualmente do massacre diário da mídia, que sobrevive à custa do impacto.
Voltemos à performance. Andamentos rápidos ou mais rápidos estão assinalados e devem ser obedecidos. O grande pianista Émile Sauer (1862-1942), em visão totalizante, afirmaria, a evidenciar reverência: Quando eu começo o estudo de uma obra, tenho primeiramente o chapéu em minha mão. Estudar lenta e profundamente deveria servir a reflexões dos mais jovens. Entender que as altas intensidades merecem ouvidos atentos, que os grandes crescendos nascem basicamente das baixas intensidades e que necessitam ser entendidos em degraus ou camadas, sem esquecer as notas graves, como observaria Gabriel Fauré (1845-1924): A nous les basses. E o estudar lentamente tem dois grandes compositores do passado a precederem a frase de Jacques Février, mencionada no início deste post. Saint-Saëns (1835-1921) diria: Trabalhe lentamente, após mais lentamente e a seguir ainda mais lentamente. E o compositor foi um dos maiores pianistas virtuoses da história. A Franz Liszt (1811-1886), outro fenômeno técnico-pianístico, é atribuída a observação: Eu não sei suficientemente bem esta obra para poder tocá-la lentamente.
Dias após, aquele aluno me procurou e afirmou sorrindo: Professor, como é difícil tocar lenta e profundamente. A semente parece ter caído em terra fértil.

On how an advice from the great French pianist and teacher Jacques Février led me to reflections on the various aspects involved in piano practice and performance: the importance of practicing at a slow tempo, of being faithful to the composer’s performing indications marked on the score and of tempering technique with a thoughtful interpretation.