Verdadeira Vocação de Pintor
Minha cidade
Amo também teus plátanos nostálgicos
imigrantes infelizes
teus crepúsculos de seda japonesa
tuas ruas longas de casas baixas
e teu triângulo provinciano…
Sérgio Milliet
Nesta cidade, que perdeu quase toda a memória urbana, a presença, em meados do século XX, de pintores que se interessaram pela paisagem paulistana propiciaria uma dupla preservação: os vários olhares para temas em extinção e, quando o talento existiu, a perenidade através da arte. Antepondo-se, sem choque aparente, ao Modernismo da Semana de 22, um grupo de pintores imigrantes, ou oriundos de famílias que aportaram no Brasil décadas antes, intercalava às suas profissões de pintores de casas ou de edifícios, de decoradores ou da simples atividade de artesãos, a vontade de pintar telas, papéis ou simplesmente desenhar. Não se enquadravam nem no movimento modernista, com fortes doses de nacionalismo exacerbado, tampouco no academicismo inócuo. Isso na década de 30. Artistas operários, distantes da elite que debatia e criticava as múltiplas tendências artísticas existentes na Europa, ou dos contestadores, imbuídos do eterno modismo de contestar. Aquele grupo cresceu na simplicidade das intenções e tem sido avaliado presentemente como criador de um dos mais expressivos movimentos da pintura em nossa história.
Alguns pintores, que constituiriam a Família Artística Paulista, grupo a agregar várias associações de artistas, já pelos meados dos anos 30 tinham o ideário advindo dessa origem humilde proletária ou de uma classe urbana a viver de recursos limitados. As suas aspirações, pois, pouco ou nada relacionavam-se com quaisquer desideratos dos chamados modernistas. Havia desconhecimento, por parte de integrantes do modernismo, desses pintores da simplicidade. A região do Cambuci, a baixada do Glicério e todo o entorno foram o lugar comum a muitos integrantes. Se alguns trouxeram conhecimentos da Europa, estavam longe dos debates acalorados que grassavam naquelas terras. Outros, primeira geração do povo imigrado, fizeram cursos no Liceu de Artes e Ofícios ou escolas que ensinavam princípios básicos do métier. Todavia, não tinham qualquer norteamento ingênuo ou voltado a uma pintura hirta primitiva.
Os pintores, que se uniriam em 1934 em ateliês improvisados nas salas 231 e 233 do Palacete Santa Helena, no nº 41 da Praça da Sé, edifício demolido em 1971 para os trabalhos do metrô em expansão, entendiam como princípio pintar a paisagem paulistana, desenhar modelos, fossem eles mulheres, engraxates ou catadores de papel, e nesse convívio diário, a entremear as próprias atividades de artesãos proletários, sentir que um trabalho artístico estava a ser edificado sem pressões e longe das exposições freqüentadas pela inteligentzia paulistana. Fúlvio Penacchi (1905-1992) e Alfredo Volpi (1896-1988) eram italianos, Mário Zanini, Aldo Bonadei (1906-1974), Alfredo Rizzotti (1909-1972), Clóvis Graciano (1907-1988), Humberto Rosa (1908-1948), Manuel Martins (1911-1979) e Rebolo Gonsales (1902-1980), descendentes de italianos ou ibéricos. A posteriori, o nome Grupo Santa Helena passou a designar os amigos pintores. Em torno deles, outros mais juntaram-se aos ateliês. Já em 1936, apresentavam seus quadros de pequeno formato na exposição montada no Palácio das Arcadas com pinturas daqueles não engajados no movimento modernista. Considera-se, contudo, que foi após a mostra da Família Artística Paulista, em 1937, que certa visibilidade começou a tornar-se realidade.
Uma das características do grupo foi o recato inicial frente à popularidade. Se apreenderam poucos conteúdos vigentes entre outros pintores ventilados, seria contudo a percepção através do sensível ditado pelas condições sociais dos integrantes que determinaria a produção. Valores do expressionismo, do pós-expressionismo, assim como daqueles de um saudosismo captado do Novecento italiano, podem ser detectados na pintura desses primeiros anos do grupo. Verifica-se, inclusive, a discrição das cores, nada a causar o impacto, tudo a revelar o de profundis desses pintores. Quando, anos após, o grupo santelenista dispersa-se, perdurariam todavia ingredientes que foram elos de ligação entre seus integrantes.
Mário Zanini continuaria sua atividade, fiel às imagens retidas e as técnicas que privilegiava. Sua criatividade levou-o à pintura a óleo e à têmpera desde os primórdios. Tinha especial carinho para com o desenho. A pintura sobre azulejo ocupou-o por muitos anos. Monotipia e gravura foram outras técnicas por ele utilizadas, assim como a pintura sobre cerâmica. As temáticas preferidas do pintor pertenciam ao acervo ditado pelas origens proletárias e pelo que o cercava. Paisagens paulistanas e paulistas com o Tietê, suas margens, a Ponte Pequena, casarios populares, natureza morta, personagens do cotidiano – entre os quais lavadeiras, mulheres em conversa, ciclistas, jogadores de futebol, operários, banhistas, meninos trabalhadores – percorrem sua trajetória pictórica. Quando retrata a figura humana, em óleo ou desenho, escolhe aqueles de seu convívio. Bem tardiamente experimenta a abstração, retornando contudo à figuração. Em sua pintura, que adquire uma coloração mais efusiva e traços mais contundentes na década de 60, Zanini preferiu, inclusive, telas maiores. O crítico e poeta Sérgio Milliet (1898-1966) assim se expressou sobre Mário Zanini: Sua inquietação, sua modéstia, sua consciência profissional, sua vontade de pureza, sua recusa ao compromisso e ao efeito, fizeram dele, antes de se ter tornado o artista que é hoje, um homem respeitável.
Conheci Mário Zanini no segundo lustro dos anos 60, em uma exposição coletiva. Como visitava constantemente, naquele período, a região do Cambuci, passei a freqüentar o sobrado geminado do pintor em uma travessa da Ana Nery. Esse contato foi permanente até a morte de Mário Zanini em 1971. Algumas lembranças perduraram e rememorá-las é o mínimo tributo ao pintor fiel às suas convicções em relação à vida e à pintura. Importa-me narrar decorrências de diálogos, pois apreendi muito da personalidade de um mestre que tinha como única preocupação a pintura, sem quaisquer interesses visando aos holofotes, que poderiam colocar seus quadros em galerias e leilões. Certa vez, levou-me a almoçar uma pasta em casa de Alfredo Volpi, integrante do Grupo Santa Helena e, nessa época, o mais festejado entre eles, tanto pela mídia como pelos marchands. Amigos, e comungando princípios comuns na pintura no período do Grupo Santa Helena, Volpi contudo aceitaria as regras do mercado. Suas fases contundentes, das Madonas, das Fachadas e das Bandeirinhas, foram avidamente sorvidas pelas galerias. Perguntei, ao levar Zanini à sua morada após o bom almoço, se ele nunca pensara em uma concessão ao mercado. A resposta serena foi não, pois pintava aquilo de que gostava. Em uma outra oportunidade, passei por sua casa à noitinha com meu amigo José Mariano, também um admirador de suas pinturas, e o convidamos para rápida pizza e mais um jogo de futebol que se daria à noite, entre Corinthians e Portuguesa, no estádio do Pacaembu. Respondeu-nos que a pizza sim, mas que preferia o jogo de várzea, pois os jogadores disputavam as partidas por amor ao futebol. Numa outra oportunidade, veio Zanini jantar em nossa casa. Fui buscá-lo e, ao passarmos pela Av. 23 de Maio, recém inaugurada, disse-lhe que a via ficara muito bonita. Nada respondeu, mas, quando descíamos em direção ao Ibirapuera, encantou-se com casas semi- demolidas às margens da avenida, prometendo retornar para pintar as suas telas. Estou a me lembrar de que certa vez vimos passar uma bela mulher e, logo após, uma outra senhora pesada e já na meia idade. Ficou admirado pela segunda. Perguntei-lhe o porquê da preferência. Respondeu-me que, para um desenho, têmpera sobre papel ou óleo, a senhora tinha bem mais predicados, dobras acentuadas etc. Em meados de 1971, convidei-o para dois recitais que daria interpretando a obra de Jean-Philippe Rameau no Teatro Itália. Mostrei-lhe o texto de apresentação de Menotti del Picchia, que seria inserido no programa. O amigo pintor pediu-me para sentar e fez o meu desenho, que foi utilizado no impresso para as concertos. Esteve nos recitais com o também pintor e amigo Theodoro Meirelles.
Acredito que, do Grupo Santa Helena, Mário Zanini, Manuel Martins, Aldo Bonadei e Francisco Rebolo tenham sido aqueles que seguiram trajetórias que se modificaram sem esquecer o passado. A impressão digital é sempre perceptível em seus caminhos. Os dois primeiros não cederam ao chamado do mercado, ou por natureza ou por não terem tido oportunidades outras. Mário Zanini certamente é um dos grandes nomes da nossa pintura.
Recollections of my friendship with the Brazilian painter Mario Zanini in the year of his birth centennial. A simple man with an interest in different painting techniques (oil, watercolor, tempera, engraving, monotyping, tiles and ceramics), his works portray landscapes, everyday people, events and objects. He took part in the Santa Helena group, made up of artists who frequented the Santa Helena Palace, a mixture of office building and art studio in the city of São Paulo, his hometown.
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