Nosso Grande Músico Romântico

Henrique Oswald

Vou catando estas palavras,
Como quem cata continhas
Para bordar no meu peito
Toda a memória que eu tinha.

Maria Isabel Oswald Monteiro

Estava a tocar obra de Henrique Oswald para piano solo quando aluno de outra classe bateu à porta, entrou na sala e sentou-se. Finda a música, perguntou-me com interesse sobre a peça que acabara de interpretar. Ao ouvir o nome do autor, disse-me ter lido meu livro Henrique Oswald – Músico de uma saga romântica (São Paulo, Edusp-Giordano, 1995, 218 págs.). Conversamos e veio uma outra pergunta que tem sido recorrente ao longo desses anos: qual a origem de meu interesse por Oswald?
Em 1978, recebi convite do bom compositor Sérgio Vasconcellos Corrêa para recital de música brasileira tradicional no Teatro Popular do Sesi, na Av. Paulista. Fiquei a pensar, pois não gostaria de repetir repertório já realizado no passado. Fui à antiga Casa Amadeus, na Rua Conselheiro Crispiniano, centro da cidade, deparando-me, maravilhado, com partituras impressas nas fronteiras dos séculos XIX e XX. Todas de Henrique Oswald e intactas em uma pasta. Li-as com profundo prazer e veio-me a certeza de estar diante de um compositor de alto mérito, lembrado basicamente até então apenas por duas ou três pequenas peças para piano. Algumas de suas excelentes obras camerísticas foram freqüentadas pelos intérpretes até as fronteiras da década de 60, mas desapareceriam após das salas de concerto. O recital no Sesi deu-se no dia 17 de Outubro do mesmo ano, inteiramente dedicado às criações de Oswald.
Querendo saber mais sobre o compositor, consultei Regis Duprat, então morando no Rio de Janeiro e através deste cheguei a Mozart de Araujo (1904-1988), músico ilustre daquela cidade. Asseverou-me que eu tinha, absolutamente, de conhecer a neta do compositor, Maria Isabel Oswald Monteiro, pois era ela a memória do avô, depositária da história, dos diários e de muitas obras inéditas do grande compositor. Telefonei e Maria Isabel marcou um encontro em sua residência, à Rua José Linhares, no Leblon.

Maria Isabel - óleo sobre tela. Início da década de 30. Carlos Oswald

Ao chegar, num final de tarde, a anfitriã abriu-me a porta, apresentei-me, fui direto ao piano Blüttner, que pertencera a Henrique Oswald, e toquei Il Neige, a célebre obra do compositor que obteve o primeiro prêmio no Concurso do Le Figaro de Paris em 1902, quando concorreram 647 outras criações do mundo inteiro. No júri, um trio extraordinário: Gabriel Fauré (1845-1924), Camille Saint-Saëns (1835-1921) e Louis Diémer (1843-1919). Selava-se espontaneamente uma amizade que perdura na mais absoluta fidelidade. Semanalmente estamos em contacto. Após a execução, Maria Isabel começaria a abrir toda a documentação que durante tantos anos foi por nós lida, relida e comentada. Nesse primeiro encontro, não só fui convidado para um jantar em família como, antes de regressar a São Paulo, recebi das mãos da guardiã do precioso acervo uma Berceuse inédita de Oswald para piano, datada de 1886 e em manuscrito autógrafo. No Electra que me trouxe a São Paulo encontrei o extraordinário pianista e bom colega Antônio Guedes Barbosa (1943-1993). Falava-me de suas gravações e concertos. Dialogávamos e perguntou qual o motivo de minha viagem ao Rio. Mostrei-lhe entusiasmado a Berceuse, e Guedes Barbosa entendeu plenamente.

Cicico, Maria Isabel e Lilico - óleo sobre tela. Início da década de 30. Carlos Oswald

Durante muitos anos, todos os meses passava um ou dois dias no apartamento de Maria Isabel na Rua Visconde de Albuquerque, também no Leblon. Lá pernoitava e, se o Flamengo jogasse à noite, Mário, seu marido, médico, flamenguista convicto, e eu assistíamos à contenda pela televisão. Foi um período extraordinário, onde não apenas manuseei todos os manuscritos de Henrique Oswald conservados pela família, como ouvi as traduções de Maria Isabel dos diários de sua mãe e de sua mulher Laudomia, escritos em italiano e muitas vezes quase inintelígíveis. Maria Isabel sabia decodificar os meandros dos textos coloquiais. Filha do extraordinário Carlos Oswald, pintor, pioneiro da gravura em metal no Brasil e autor dos desenhos preliminares do Cristo Redentor do Rio de Janeiro, Maria Isabel sempre soube administrar os desvelamentos dos dois vultos ascendentes de significativa expressão na arte brasileira. Maria Isabel é a autora de Carlos Oswald (1882-1971) Pintor da Luz e dos Reflexos (Rio de Janeiro, Casa Jorge, 2000, 229 págs.) Quando no lar Oswald Monteiro, lia os textos literários e os manuscritos musicais ao piano, deliciando-me ao ver a profusão de gravuras, desenhos e óleos de Carlos. Amálgama absoluto.

Carlos Oswald

Na prática, editamos em 1982, pela Novas Metas de São Paulo, as Sonatas para violoncelo e piano op. 21 e 44, uma Berceuse inédita para o instrumento, escrita a lápis e quase incompreensível e dois Estudos para piano. A convite do excelente compositor Edino Krieger, então Diretor da Funarte, iniciávamos a catalogação da obra de Henrique Oswald, interrompida com a chegada de Collor de Mello à Presidência, entendendo-se que seu governo desmantelaria a Funarte durante um período sombrio. Simultaneamente, gravávamos, para o selo da Instituição, um álbum duplo de LPs com a integral para piano e violoncelo e obras para piano solo. A seguir, registramos outro contendo o Trio op 9 para piano, violino e violoncelo, assim como a Sonata op. 36 para violino e piano . Antônio Lauro Del Claro (cello) e Elisa Fukuda (violino) foram os bons parceiros dos empreendimentos da Funarte. Sairia também o Quinteto op. 18 para piano e quarteto de cordas, gravação da Basf, em que tive como companheiros bons instrumentistas de orquestras de São Paulo.
As consultas à Biblioteca Nacional, ao Arquivo Nacional e à Escola Nacional de Música apenas ratificaram a certeza de estarmos diante de nosso grande compositor romântico, capaz de dialogar à altura com seus coetâneos europeus.
Edificava-se a tese de doutorado que defendi em 1988 junto ao Departamento de História da FFLCH da USP. O livro mencionado é parte da tese e senti enorme prazer ao vê-lo publicado.
Após a morte de Mário Monteiro, Maria Isabel foi procurada por Institutos da maior respeitabilidade do Rio de Janeiro, a fim de que houvesse a doação do acervo da família pertinente ao compositor para uma dessas Instituições. A nossa profunda amizade fê-la, com o consentimento de seus irmãos e quatro filhos, doar à Universidade de São Paulo toda essa extraordinária coleção, que se encontra hoje na Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da USP. Já publicamos o Quarteto op. 26 para piano e trio de cordas e encontram-se em andamento o Concerto op. 10 para piano e orquestra, na redução que o autor fez da parte orquestral para quinteto de cordas, e o Diário de Munique, nome que atribuí às anotações confidenciais e pungentes do compositor em 1906, quando naquela cidade para concerto camerístico. Escrito em italiano, já está devidamente traduzido. Frise-se que a Biblioteca da ECA-USP desenvolve um trabalho competente de conservação de documentos fundamentais. Responsabilizou-se pela restauração dos Diário de Munique e dos manuscritos do Quarteto opus 39 e do Trio opus 45. O minucioso debruçar foi realizado por um atelier especializado, com recursos do Programa de Preservação e Conservação de Acervo do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP. Foram obedecidas rigorosas normas internacionais de conservação, documentos foram “higienizados” e “desacidificados”, suportes foram planificados, áreas rasgadas foram fixadas com papel japonês e outras com perfurações receberam aplicações de polpa, assim também “perigosas” fitas adesivas foram cuidadosamente removidas. Finalmente, os documentos restaurados foram interfolhados com papel de PH neutro e acondicionados em caixas e envelopes especiais para conservação. Todo esse trabalho tem o esmero das bibliotecárias Marina Macambyra e Analúcia dos Santos Viviani Recine.
Seria possível asseverar que Maria Isabel e eu verificamos com felicidade a existência, hoje, de cerca de dez dissertações de mestrado e teses de doutorado realizadas no Brasil e no Exterior sobre Henrique Oswald, algumas decorrentes, poderíamos com satisfação entender, daquele nosso primeiro encontro no longínquo 1978. Àqueles que me consultavam, estendia a necessidade igualmente desse conhecimento à memória viva de Maria Isabel. Sobre o filho de Henrique, Carlos Oswald, destaque-se a extraordinária tese de doutorado de Maria Amélia de Toledo Piza, caminho pioneiro para estudos acadêmicos pósteros.
Em outros posts escreverei sobre a importância da obra do compositor no cenário mais amplo, assim como narrarei a introdução das minhas interpretações de Henrique Oswald na Europa, o primeiro recital de piano inteiramente dedicado ao compositor no Grêmio Literário de Lisboa, em 26 de Fevereiro de 1982, e a emoção da primeira apresentação de concerto consagrado ao músico em Gent, na Bélgica, aos 18 de Novembro de 1995, dele constando obras camerísticas com piano e a Missa de Réquiem. Dois CDs camerísticos foram gravados naquele país: integral para violino e piano, tendo como violinista Paul Klinck (selo PKP, 1995); Sonata-Fantasia op. 44 (cello Peter Devos), Quarteto op 26 e o Concerto op. 10, já mencionados, com o Quarteto Rubio (selo De Rode Pomp, produzido no Brasil pela Concerto-USP). Os CDs podem ser visualizados em meu site em construção: www.joseeduardomartins.com sob o menu recordings. Um terceiro CD, apenas com obras para piano, já gravado e em fase de masterização, está previsto para 2008.

Ouça o Concerto op.10 na íntegra, com José Eduardo Martins ao piano, Quarteto Rubio e contrabaixo.

  • Allegro (poco agitato)
  • Andante
  • Molto Allegro
  • In 1978 I was in a sheet music store when I came across a folder with scores of the Brazilian composer Henrique Oswald, all of them printed between the XIXth and the XXth centuries and in excellent conditions. This was for me the beginning of a lifelong work of research on the works of the Romantic musician, which resulted in my doctoral thesis, defended in 1988, a book on Henrique Oswal, recitals, publication of critical editions and articles and the recording, back in the eighties, of two LP albums and, more recently, of two CDs. A third CD with solo piano pieces is ready and will be released in 2008 in Belgium. However, the discovery of Oswald’s pieces was, most of all, the beginning of a much cherished friendship with Oswald’s granddaughter and main keeper of his memory: Maria Isabel Oswald Monteiro. She is also the daughter of Carlos Oswald, painter, engraver and author of the sketches of the statue of Christ the Redeemer in Rio de Janeiro. In my countless visits to Rio for researches into Oswald’s life and work, I was always a guest at her house. She made available his manuscripts, letters, diaries. It was thanks to her generosity and to our friendship that the Oswald family precious collection was later entrusted in its entirety to the Universidade de São Paulo. Today nearly ten academic dissertations on Oswald’s works have been written in Brazil and abroad. Maria Isabel and I proudly believe some of them are the fruits of our distant 1978 meeting.