Tributo ao Músico-Pensador

Santos e Gilberto Mendes - pintura de Eliane Mendes

E o mar então… O mar, o velho confidente
De sonhos que a mim mesmo hesito em confessar,
Atrai-me; a sua voz chama-me docemente,
Dá-me uma embriaguez como feita de luar…
O mar é para mim como o Céu para um crente.

Vicente de Carvalho

Gilberto Mendes é hoje o mais importante compositor vivo do Brasil quase que por absoluta unanimidade. Algumas de suas obras são interpretadas em todo o mundo e a discografia é ampla. Abordou com plena segurança os vários gêneros musicais e sua fidelidade à liberdade de expressão é proverbial.
O músico nascido em Santos, seu porto seguro e definitivo, percorre todos os anos os festivais mais importantes de música contemporânea do Exterior. Outros portos que só servem para dimensionar o retorno à sua segurança praiana.
O que o torna tão erudito e popular junto à inteligentzia? Há, na obra de Gilberto Mendes, a perene presença do lúdico. Emblemático. Aos 85 anos, completados neste 13 de Outubro, Gilberto brinca com o ato de viver e de compor. A constante renovação do material sonoro, com a utilização de instrumentos tradicionais em formações pouco usuais; o emprego do poema – nas canções, como exemplo – dele extraindo conteúdos não apenas lingüísticos, mas também sonoros ou voltados ao simples ruído; o piano muito particular, a sofrer trajetória plena de identidade, são alguns dos elementos essenciais no conjunto da obra de Gilberto Mendes. Ao longo da existência, o compositor foi incorporando à sua linguagem aquilo que o encantava e menos o que racionalmente poderia selecionar. Elementos da música americana do período das fantásticas Big Bands; o minimalismo vivo, onde o fator repetitivo adquire, através de flutuações dinâmicas e do mood, perspectivas outras de entendimento do que aquelas de alguns de seus ilustres coetâneos; assim como a influência da música coral da Idade Média e da Renascença convivem sem conflitos em seu pensar. Se flerta com o dodecafonismo em algumas obras, esta técnica jamais seria dogmática no todo. Poder-se-ia dizer que Gilberto Mendes é um conjunto harmonioso no qual os elementos contrastantes apenas ratificam a essencialidade da impressão digital do autor. Sabe-se, logo aos primeiros acordes ou às notas iniciais, que a criação é de Gilberto Mendes. Frise-se, todo grande autor tem a indelével presença dessas marcas digitais a formarem o idiomático.
Um outro fator que o distingue de muitos de seus contemporâneos é a presença do humor, que paira em consistente compartimento da criação, enriquecendo-a, assim como da crítica arguta, onde há lugar para o trágico e a nostalgia. Um amálgama da condição humana. Mencionemos algumas de suas criações: Beba Coca Cola (1967) e Vila Socó Meu Amor (1984) para coro a Cappella; Santos Football Music (1969) para orquestra sinfônica, três tape recordings contendo irradiação de jogo de futebol, participação do público e ação teatral; Asthmatour (1971) para vozes e percussão (pandeiros, maracas, crótalos) e ação teatral; Ópera Aberta (1976), ação teatral para voz operística, halterofilista e três ou mais pessoas aplaudindo; O último Tango em Vila Parisi (1987) para orquestra sinfônica; Ulysses em Copacabana Surfando com James Joyce e Dorothy Lamour (1988) para 10 instrumentos. No segmento melodia acompanhada, o compositor se mostraria seletivo quanto aos textos poéticos: Carlos Drummond de Andrade, Raul Leoni, Vicente de Carvalho, Cecília Meireles, Maria José Aranha de Rezende, Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, José Paulo Paes e tantos outros nomes consagrados.

Gilberto Mendes

Conheci Gilberto Mendes antes de meu ingresso na Universidade de São Paulo. Foram dois encontros casuais após recitais meus em Santos. Contudo, quando no campus universitário, tornamo-nos colegas e amigos de fato. Sua vinda a São Paulo para as aulas coincidia com um de meus dias de atividade docente, às quintas-feiras. Desde 1982 conversávamos muito nos intervalos e passamos a ter um hábito salutar e de estreitamento: ambos trazíamos marmita e almoçávamos na pequena cozinha do Departamento. Por vezes, o saudoso irmão do compositor, professor emérito da USP Erasmo Mendes, comparecia com um sanduíche e alegrava-nos com a coleção de piadas de seu incrível repertório. Durante o período de convívio no Departamento, inúmeras vezes Gilberto, ao ouvir-me estudar nos intervalos entre as aulas, entrava em minha sala, sentava-se e se encantava com as peças de I. Albéniz – El Polo, Triana, Navarra, El Abaicin… –, de Scriabine – Estudos e Poemas – e sobretudo o Noturno n° 4 de Gabriel Fauré. “Daria toda minha produção em troca dessa obra”, disse-me. Fascínio e grandeza demonstrados.
Através de Gilberto Mendes comecei a me interessar pela música de nossos dias. Ligado à linguagem que se estendia do barroco a meados do século XX, pequenas incursões fizera até então na seara mais atualizada. Já em 1985 nascia o projeto in progress voltado ao Estudo Contemporâneo para piano, que abriga hoje cerca de 70 Estudos compostos por autores de várias regiões do mundo. Gilberto, fundador do Festival de Música Nova em 1962, estimulava-me nessa aspiração, que tinha como desiderato a edificação de um extenso caderno, a mostrar uma panorâmica do piano na passagem dos séculos XX e XXI. Nem sempre Gilberto pensou em Estudos. Il Neige…de Nouveau (1985), parafraseando a célebre Il Neige!, de Henrique Oswald, homenagearia o autor e incorporaria a seleção de oito peças escritas por ilustres convidados. Viva-Villa (1987) enriqueceu a coletânea de tributos a Villa-Lobos, por ocasião do centenário de nascimento do grande compositor. Os dois cadernos foram publicados pela Universidade de São Paulo. Vieram após: Um Estudo? Eisler e Webern Caminham nos Mares do Sul (1989), Estudo Magno (1992), Estudo, Ex-Tudo, Eis Tudo Pois (1997) in memoriam de nosso saudoso amigo, o grande compositor português Jorge Peixinho (1940-1995), Lenda do Caboclo. A Outra (1992), Étude de Sinthèse (2004). Duas obras, que entendia passíveis de terem uma leitura apenas pianística, foram transcritas por Mendes: Outro Estudo…Ulysses em Copacabana (1991) e Um Estudo para o Outro Pente de Istanbul (1995). O título “Pente de Istanbul” está cercado desse humor único, característico de Gilberto Mendes. Quando o ótimo percussionista Carlos Tarcha ligou da Alemanha, solicitando com urgência o título de obra recente para apresentação naquele país, o compositor estava a pensar quando Eliane, sua dedicada mulher, disse-lhe: “achei o pente de Istambul”, referindo-se ao pente de plástico comprado na capital da Turquia. E Gilberto a Tarcha: o nome é O Pente de Istanbul, notável criação de 1990 para vibrafone, marimba e percussões. E ficou. Como gostei da peça, sentindo que ao piano ela resultaria também, e previamente encomendando a um amigo que viajaria à Turquia um outro pente, mais sofisticado, ao receber o objeto entreguei-o a Gilberto. Daí…O Outro Pente de Istanbul.
Um dia, ao almoçar no aconchegante apartamento do casal, perguntei a Gilberto sobre seu passado musical. Haveria criações para piano? Respondeu-me laconicamente que essas peças não lhe interessavam e que estavam guardadas em um baú. Insisti. Abriu-o e retirou várias obras da década de 50. Quando li ao piano a Sonatina Mozartiana (1950), Gilberto disse sorrindo: “Não é que ela é bonita!”. Constavam desse precioso pacote: Pequeno Álbum / 6 peças (1947-1951), 13 peças para piano (1949-52) e a Sonata (1953). Todas essas obras, do passado ao presente, interpretei-as em primeira audição, no Brasil ou no Exterior. E de sua camerística apresentamos em nosso país: Saudades do Parque Balneário Hotel (1980) para saxofone alto e piano; Longhorn Trio (1983) para piano, trompete e piano, Ulysses em Copacabana…para conjunto instrumental; o Concerto para piano e Orquestra (1981), conjunto de canções e, em tournée pela Bélgica com o Quarteto Rubio, Rimsky (2000), para quarteto de cordas e piano.
Próximo à compulsória, atingida em 1992, disse a Gilberto que ele precisaria fazer o doutorado contando sua trajetória. No início vacilou, mas enfrentou o hercúleo trabalho, indispensável à compreensão de um período fundamental para a História da Música do Brasil. Como insistia ao telefone sobre prazos acadêmicos, várias vezes tivemos conversas até ásperas, pois entendia o amigo que eu o estava pressionando demais. Não só defendeu brilhantemente a tese, de cujo júri tive o privilégio de participar, como, após pequenas modificações, estive na Reitoria a evidenciar a monumentalidade de seu livro inédito. Surgia Uma Odisséia Musical – Dos Mares do Sul à Elegância Pop/Art Déco (São Paulo, Edusp-Giordano, 1994, 268 pág. mais anexos), obra rigorosamente indispensável.
O Compositor de Santos, após ter sido assediado por Instituições do Brasil e do Exterior, a fim de doar ou vender todo o seu acervo criativo, num ato de despreendimento, ofereceu o precioso material à Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Por ser ele uma das figuras mais ilustres de sua história, a Universidade de São Paulo ainda lhe deve a justa homenagem.
Gilberto Mendes. Fica neste post simples tributo a essa figura ímpar da Cultura Brasileira, num dia histórico. A data está a ser comemorada com entusiasmo por todos aqueles que o conhecem e pelo enorme segmento de outros admiradores.
Bem haja!


This post is dedicated to Gilberto Mendes (b. 1922), almost unanimously accepted as the greatest living classical composer in Brazil, who commemorates his 85th birthday on 13 October 2007. Internationally acclaimed, he is the author of innumerable symphonic and chamber pieces, works for solo piano, percussion instruments, voices. I premiered most of his works for solo piano in Brazil and abroad. A former colleague and fellow professor at the Universidade de São Paulo, Gilberto Mendes and I have been close friends for the last 25 years.