DC-3 do CAN
Do trilho
só entende quem o trilha.
Adágio Popular Açoriano
Estava a almoçar na Universidade com meu dileto amigo e colega Edelton Gloeden, excelente violonista, e este contou-me, entusiasmado, a respeito de um curso que dera em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, patrocinado pela Universidade Federal. Perguntou-me se conhecia a cidade. Disse-lhe que sobrevoara Campo Grande em baixa velocidade, lembrava-me das largas ruas e, superficialmente, do aeroporto. Contei-lhe o episódio.
Em 1963, dei um curso de três semanas em Instituto Musical de Assunção, a convite de uma Companhia local e das Linhas Aéreas do Paraguai. Foi entre Outubro e Novembro, meses absolutamente quentes. O curso de interpretação pianística transcorreu bem e, ao final, dei um recital de piano transmitido pela Rádio para todo o país. Tempos do ditador Alfredo Stroessner (1912-2006). No intervalo da apresentação, o Embaixador do Brasil, o ilustre escritor, político e diplomata Mário Palmério (1916-1996), futuro membro da Academia Brasileira de Letras, em público, ofereceu-me alguns livros, entre os quais o premiado Vila dos Confins (li-o com enorme prazer) e um LP, dele constando algumas guarânias por ele compostas. Gentilmente asseverou que eu receberia um cachê do governo brasileiro, oferecendo a mim e à minha mulher o retorno ao Brasil pelo vôo do Correio Aéreo Nacional (CAN). Nossa intenção inicial era regressar no dia seguinte utilizando o bilhete aéreo paraguaio, mas a nova passagem fez-nos permanecer mais dois dias na cidade e defrontamo-nos com duas “epopéias”: a do cachê, jamais recebido, apesar de muitas missivas trocadas, e a viagem pelo glorioso CAN, que relevantes serviços prestou à nação em tantas décadas. O CAN realizava verdadeira interação deste país continente, atendendo também algumas nações limítrofes. Fez-me lembrar, sob contexto outro, do extraordinário livro Courrier Sud, de Antoine de Saint-Exupéry.
O percurso, que seria de aproximadamente duas horas, levou exatamente um dia. O avião, um Douglas DC-3, tipo de aeronave tão utilizada durante a Segunda Grande Guerra, tinha os bancos laterais de madeira e todos os tipos de personagens adentraram o avião, enquanto enormes pacotes abarrotaram outros espaços. Como o DC-3, incrivelmente estável, voava a baixa altitude e o calor era intenso, viajamos por muitas horas com as janelas abertas. O avião fez várias escalas, a fim de deixar e recolher correspondência e mercadorias. Pessoas desciam e subiam, quase como em ônibus urbano, e a cada decolagem minha mulher passava mal e tinha de acudi-la. Ponta Porã, Dourados, Campo Grande, Três Lagoas, dois ou três outros pousos em pistas de terra batida, cuja localização eu não saberia precisar, uma cidade do interior de São Paulo cujo nome não me lembro, e o destino final, que seria São Paulo. Ao sobrevoar, já à noite, o Aeroporto de Congonhas, desabava um aguaceiro violento, e o avião foi pilotado prudentemente até Viracopos. Outro era a momento histórico, em que interesses espúrios ainda não se mostravam pandêmicos. Esses pilotos militares eram super competentes, habituados a todo tipo de adversidade e atenciosos para com os passageiros, alguns descalços, pois pessoas simples da lavoura subiram e desceram em outros campos.
Quando finalmente aterrissamos no aeroporto de Campinas, já com poucos passageiros, a tempestade chegou logo após, precedida por rajadas violentíssimas de vento. O DC-3, longe de ser um avião pesado, sentiria as conseqüências caso medida urgente não fosse tomada. O comandante solicitou um veículo, que recolheu mulheres, idosos e crianças, não sem antes pedir aos homens que permanecessem no interior do avião, a fim de ajudar a tripulação, formada por militares. Levados os escolhidos, e sob as ordens do comandante, descemos naquela ventania forte, já sob aguaceiro total, e tivemos a árdua tarefa de puxar com firmeza umas cordas para serem fixadas – não saberia precisar onde, devido à intempérie –, a fim de que o avião não ficasse à deriva. Serviço encerrado, fomos ao saguão e aconselhados a pernoitar no aeroporto, pois apenas no dia seguinte a aeronave seguiria para São Paulo. Foi-nos permitido dormir em casa de meus sogros em Campinas, mas a bagagem permaneceria no avião. Por tratar-se de vôo internacional, o desembarque teria de acontecer em São Paulo. Após uma noite curta, no final da madrugada já lá estávamos para o percurso definitivo.
Com tantas viagens realizadas no decurso da existência, seria impossível rememorar todos os trajetos. Esse ficou marcado graças à gentileza do escritor Mário Palmério e às peripécias do percurso. Contá-lo a um amigo como Edelton serviu para boa descontração. A seguir, caminhamos dispostos para as aulas do período da tarde.