Entender o Espírito Essencial

J.E.M. e alunos - Gent, Bélgica. Crayon, Yves Dendal, 2000

On peut tromper la vie longtemps,
mais elle finit toujours par faire de nous
ce pour quoi nous sommes faits.

André Malraux

Jorge é um aluno de outra unidade da Universidade de São Paulo. Aplicado discípulo da complexa área das Exatas. Procurou-me, pois é assíduo visitante de meu blog, que conheceu através do guia mensal de música erudita, Concerto. Lera os textos O Drama da Pós-Graduação (21 de Junho), Concurso e Concursos (9 de Julho) e Interpretação Musical (21 de Setembro) e estava com perguntas bem definidas. Fiquei feliz ao conhecê-lo e ao sentir o seu entusiasmo pela música, pois disse-me praticar piano amadoristicamente. Convidei-o para um café e conversamos uns bons momentos a respeito dos temas. Prometi a ele colocar um post sobre a matéria, motivo de nosso diálogo mantido durante pouco tempo, infelizmente. Teríamos de retornar às aulas, ele aos números, eu aos sons.
Desde o meu ingresso na USP, sempre entendi que a formação de um aluno, seja em qual área estiver, tem de ser harmoniosa, a contemplar várias categorias do conhecimento. O resultado nesse caso, quando o formando deixa os bancos universitários, é significativo, e entendo que ele preencherá os quesitos que a sociedade dele espera, a saber, atender com competência a coletividade.
É sempre bom lembrar que o professor universitário deve ter em mente princípio que tem origem na Idade Média, o Studium Generale, caminho seguro para que o discípulo tivesse formação sem arestas. Universidades recebiam esse título da Igreja ou da realeza, salvaguarda da excelência. Doutores pertencentes à Universidade assim considerada mereciam a maior respeitabilidade. A Universitas teria a incumbência absoluta de zelar para que o desiderato do conhecimento pleno fosse alcançado na Europa medieval. Aliás, a etimologia da palavra Universitas já estaria a apontar para essa dimensão de universalidade. Ampliar os horizontes do conhecimento. Mutatis mutandis, a Universidade Pública no Brasil deveria sempre estar atenta a essa abertura, pois ela subsiste mercê dos impostos pagos pelo contribuinte.
No quarto de século em sala de aula no campus da USP, a todo início de ano deparo-me com uma pergunta recorrente, relacionada à atividade musical. Questionam-me se preparo, na Universidade, aluno para concurso de instrumento, no caso, piano. A minha resposta, conhecida por gerações de alunos, é sempre a mesma: não. Calmamente respondo que é questão de estilo. Complemento, a afirmar que os bancos universitários existem, como cláusula pétrea, para a formação plena, guardando-se especificidades, e que o músico intérprete, entendendo-se aquele capaz de apreender as várias áreas formadoras do verdadeiro profissional, tão mais abrangente será quão maior for a sua visão. Na especificidade piano, direciono o olhar ao repertório expandido, a compreender períodos e estilos. Atingir nível técnico amplo é imprescindível, mas a virtuosidade, um de seus itens, entraria como um meio necessário, jamais um fim. A se considerar o aprofundamento nos conteúdos de outras disciplinas musicais, a integração deveria sempre, em conditio sine qua non, incorporar a cultura geral – compreendida a projeção voltada às leituras -, as outras artes, o político-social-econômico, o conhecimento de outras línguas e de outros povos e as captações conscientes do cotidiano. Expressara essas idéias a Jorge, quando ouvi notas fortes de um pica-pau-de-banda-branca e o canto de sabiá laranjeira em árvores próximas. Continuaria as divagações, a dizer ao jovem atento que, se olhasse para o alto, veria, nesta primavera, as árvores floridas do campus e os pássaros a cantar, se olhasse para o chão, a cena com mato não cortado e papéis jogados, a revelarem que nossa verdadeira aspiração deveria sempre estar voltada para as alturas. O espaço aberto impede as viseiras e afugenta o canto da sereia.
Entendo, sob a égide de princípios, que a Universidade deve incentivar os mecanismos que propiciem o desenvolvimento completo do aluno. No caso da Música, há Conservatórios e Escolas de Música, ou mesmo professores particulares, que direcionam o discípulo à tipificação representada pelos concursos. Esses são os espaços consagrados através da história. Outra sendo a carga de disciplinas que compõem o todo estruturado para a formação do aluno, aquelas categorias de instituições ou o mestre particular têm toda a liberdade de instruir o jovem intérprete que busca a quantidade de concursos de instrumentos existentes. É uma prerrogativa a ser respeitada. Sob outro patamar, a proliferação de concursos, a condução muitas vezes distante da ética em tantos certames e a necessidade dos holofotes voltados ao duo magister/discipulus podem camuflar lacunas que estarão a ser sentidas ao longo da trajetória do intérprete. E estas tendem a ser definitivas. Há número incalculável de premiados. Quantos atingiram níveis satisfatórios ao longo da vida? Se o concurso para aferições tem sua importância, deve-se contudo entender que apenas a integração harmoniosa será recompensada, mesmo que as luzes acesas pela mídia focalizem, por período razoável, triunfantes ocasionais. Corroborando a colocação, Jorge perguntara-me se eu teria passado pelo período dos concursos. Primeiramente, disse-lhe que extraordinários intérpretes jamais se submeteram a concursos que, tal como remédios, podem ter efeitos colaterais. Sim, concorri no país e no Exterior e os resultados no todo foram bons. A minha bolsa para França foi conseqüência de uma das premiações no I° Concurso de Piano da Bahia, no longínquo 1958, quando concorreram nomes referenciais como Antônio Guedes Barbosa, Artur Moreira Lima, Fernando Lopes, Sônia Goulart e Luís Medalha. Nos de além-fronteiras, dois dos mais importantes do mundo. É bom confrontarmo-nos com a elite, sentir a emoção e entender estágios de aperfeiçoamento. Quando concorri no II Concurso Internacional de Piano Tchaikowsky em Moscou, no ano de 1962, e algumas das gravações, ao vivo, estão hoje em CD, os vencedores foram Vladimir Ashkenazy e John Ogdon. Contudo, a preparação para os concursos era parte integrante de minha formação e o repertório tipificado de certames, apenas parcela de obras fundamentais para piano que estava a estudar em Paris sob a orientação de Marguerite Long e Jean Doyen. No geral, os programas desses concursos são bem convencionais, a explorar básicos princípios da virtuosidade. O grande pianista e regente Philippe Entremont, em entrevista recente, lembra uma palavra-chave, já largamente difundida na década de 50, ou seja, que o concorrente é uma “bête” à concours, pejorativa, é certo, mas a traduzir realidades. Se em muitas décadas anteriores havia poucos concursos de níveis diferenciados no Exterior, esse número aumentou, mercê da influência mediática voltada à proliferação de competições esportivas: circuitos de tênis, vôlei, atletismo, infinidade de torneios futebolísticos. É a globalização plena, a revelar talentos de muitos países para, tantas vezes, eclipsá-los logo após, pela necessidade da visualização dos próximos. Concursos instrumentais no Brasil são abundantes. Temo sempre pela qualidade. Vencedores de batalhas que dificilmente subsistirão à “guerra” do mercado. Se um triunfante não for músico-artista na acepção, ficará sempre o atestado de hábil instrumentista, mesmo que reconhecido, e estes se contam às centenas. Reza um preceito oriental que, por mais que tentemos lavar um carvão, jamais ele adquirirá brancura.
Em se tratando da essência essencial da Universidade, o princípio direcionado à pura confrontação de concorrentes é questionável. Induz o aluno a quantificar a sua concentração unicamente em um foco, desviando-o – há sempre exceções – da formação abrangente, única salvaguarda para o não estreitamento das idéias. A função da Universidade estaria a ser reduzida e haveria um capitis deminutio na harmoniosa edificação do graduando. Inclusive, aconselho meus alunos, a freqüentarem disciplinas oferecidas pela Universidade, como História, Psicologia da Educação, Literatura, Filosofia, para ampliação dos conhecimentos.

J.E.M. e alunos na USP - Crayon, Maria Fernanda Martins Rosella, 2007

Durante todos esses anos tive gratas revelações, tanto entre alunos que se inscrevem no curso de instrumento principal, como entre os que estão a estudar o chamado instrumento complementar, necessário à formação integral de um aluno de música. Seria, contudo, entre os alunos desta categoria que os debates sobre música são mais enriquecedores. Os resultados que obtive em ambos os compartimentos foram surpreendentes e, para meu gáudio, alguns ex-discípulos têm hoje lugar de destaque como músicos no Brasil e no Exterior. Nomear alguns, fatalmente, far-me-ia esquecer outros atuando meritoriamente. Todavia, asseguro, representam um orgulho para a universidade.
Jorge, ao saber que as aulas de instrumento são basicamente individuais, questionou-me se tenho monitor, devido ao natural afluxo de alunos. Salientei que a figura do monitor é contemplada pela legislação uspiana, portanto a presença dele é prática em muitas áreas da universidade. Ponderei a seguir que, curiosamente, sempre há dois ou três alunos excedentes que me procuram após o início do ano letivo, a dizer que prefereriam estudar com professor e não com monitor. O fato leva-me a algumas perguntas: esforçaram-se para entrar em importante universidade, a fim de serem orientados por “quase” colegas, pois em faixa etária bem próxima e sem o embasamento necessário, ou pelo professor, que passou por concursos acadêmicos para este mister? Buscam a transferência de conhecimento adquirido por um docente, ou aquela ainda em “formação” de um monitor? Considerando-se que nosso compromisso assinado com a universidade supõe as duas categorias, principal e complementar, entende certa – apesar de legitimada – a decisão de “outorgar” a um monitor a sacra tarefa de ensinar? Obviamente, a resposta é sempre não. Acredito profícua a existência de monitor competente, geralmente ligado a um programa de pós-graduação. Contudo, entendo também que o aperfeiçoamento se dará se acompanhado, em sala de aula, do professor, única referência para que o monitor capte ensinamentos preciosos. O equívoco seria deixá-lo a assistir um aluno com poucos conhecimentos, pois alguns dos questionamentos deste requerem uma bagagem de experiência cultural, geralmente ainda não sedimentada pelo monitor.
O prazer do docente viria da diversificação. Ao discípulo de instrumento complementar há material enriquecedor. Àquele que estuda composição, o conhecimento que terá de pequenas obras de autores referenciais, possíveis de serem por eles interpretadas, desvelará o estilo de um autor. Poder-se-ia dizer, o multum in minimo, indispensável ao seu próprio futuro como compositor; àquele que estuda canto, saber acompanhar lieder, dará a intimidade piano-canto; experimentar um piano e sentir a essência de seu som serão indispensáveis à vida musical dos instrumentistas de arcos ou de sopros. E nessas aulas, o discutir estética, estrutura, estilo e história enriquece a ambos, aluno e professor. Se monitor houver, sairá com maiores conhecimentos. Essa metodologia passa a ter sentido quando aplicada aos alunos de piano principal. Observar o vasto repertório, não necessariamente o mais ventilado, mas o mais substantivo na apreciação totalizante; distinguir estilos e, entre estes, a própria evolução estilística de um mesmo autor; entender seus ascendentes, pois todo compositor os tem; sugerir leituras complementares sobre música, temas pertinentes ou literatura de qualidade; evidenciar o prazer que se tem ao interpretar uma obra, dela sabendo extrair conteúdos essenciais, sem a finalidade do impressionar, mas sim do transmitir. Servir à música e, por extensão, ao espírito de universalidade que deve reger a Academia, parecer-me-iam os princípios basilares, sem os quais corremos o risco de superestimar egos. A nossa missão é extraordinária, e o caminho já percorrido dá-me a certeza de que a escolha da trajetória foi um maravilhamento.

The Missions of the University

As a pianist and after a quarter of a century as a university teacher, I am often asked if at the university I prepare students for piano competitions. My answer is always no. Far from being against such contests, my position simply means I do not think this is the mission of an institution of higher education. This is more suitable for conservatories and private music teachers, both free to gear each lesson to the individual needs of those who want to participate in the many musical competitions available nowadays.
In my view and according to principles that date back to the Middle Age, the commitment of teachers at a University, particularly when it is funded by the state, should be focused on teaching not only the performance side of music, but also on providing students with a wide and critical knowledge of the musical repertoire – its history, its theory, its social and cultural contexts -, on suggesting good music literature, on stressing the importance of extracting from a piece of music its inmost contents so as to be able to convey ideas and emotions in an imaginative way. In other words, to develop practical and theoretical skills essential to thinking musicians in any field, a solid musical grounding much in accordance with the spirit of universality already implied by the etymology of the word “university”.
I also comment on the role of teaching assistants and how important it is for them to work under a teacher’s guidance.