Um Conto Singelo
De todas as histórias que nos contava
guardei apenas uma vaga e imperfeita lembrança.
Porém, uma delas ficou tão nitidamente gravada
em minha memória, que sou capaz de repeti-la
a qualquer momento – a pequenina história
do nascimento de Jesus.
Selma Lagerlöf
Dom Henrique Golland Trindade (1897-1974) foi uma figura extraordinária. Poder-se-ia acrescentar: homem santo ou iluminado, a depender das conceituações espiritualistas. Nascido em Porto Alegre, a vocação levou-o à formação religiosa competente. Tornou-se franciscano e atuou com intensidade frente a várias paróquias do país. Quando designado para a vida eclesiástica em Botucatu, no Estado de São Paulo, teve seu apostolado voltado aos mais simples e às crianças órfãs. Bispo e mais tarde arcebispo da diocese de Botucatu, nem por isso deixou de lado essa missão diária de assistir aos desalentados da cidade. Fundador da Congregação Diocesana das Irmãs Servas do Senhor em 1952 e da Vila dos Meninos Sagrada Família, Dom Henrique amava as Artes. A Capela da Santíssima Trindade do Seminário Arquidiocesano foi pintada por Henrique Oswald, filho do grande artista plástico Carlos e neto do não menos ilustre compositor Henrique (vide post de 19 de Outubro).
Em 1952, João Carlos e eu demos um recital na Igreja de São Francisco, no Largo do mesmo nome, em São Paulo. Era uma homenagem ao eminente prelado. Nos anos subsequentes, oferecíamos um recital no Colégio Santa Marcelina, em Botucatu, com a renda inteiramente destinada à Vila dos Meninos. Por várias vezes fomos passar alguns dias no Arcebispado da cidade e, orientados por Dom Henrique, apreciávamos, nos mínimos pormenores, a belíssima pintura de Henrique Oswald na ábside da Capela. Foi nosso padrinho de crisma. Em 1963, em Campinas, oficiaria o meu casamento com Regina.
Recordações tornam-se necessárias. Dom Henrique mostrava-me, em seu quarto, algumas imagens em madeira, a representarem S. Francisco. Chamou-me a atenção sua cama, uma larga tábua envernizada coberta por lençol e manta, sem qualquer colchão ou acolchoado. Perguntei-lhe o porquê. Disse-me que era o mínimo de penitência a ser feita. Indaguei-lhe certa vez a respeito da corrente e do crucifixo, assim como do anel de autoridade eclesiástica, todos em madeira, seus objetos pessoais de todos os dias. Respondeu-me que ouro ou pedras preciosas, comuns à alta hierarquia da Igreja, representavam ostentação. Em outra oportunidade, no início da década de 70, dera um recital em Botucatu e no dia seguinte, bem cedo, fui visitá-lo na Vila dos Meninos, onde há muito se recolhera. Econtrei-o ajoelhado, naquela manhã fria, a podar umas rosas. Tentei levantá-lo. Disse-me que estava bem. Perguntei ainda como se sentia, após a renúncia da arquidiocese muito tempo antes, a fim de cuidar de crianças desamparadas. Baixou o capuz e serenamente respondeu: “Enquanto eu tiver braços para levantar e louvar a Deus, estarei bem”.
Grande orador sacro, seus sermões não apenas cativavam pela profundidade dos ensinamentos, mas igualmente pelo vernáculo impecável. Escreveu vários livros, entre os quais Matt Talbot – O Operário Penitente (Petrópolis, Vozes, 1945, 181 págs.) e Os Nossos Pobres Contos (Petrópolis, Vozes, 1952, 171 págs). Para este Natal, lembrei-me de um conto de Dom Henrique inserido no segundo livro mencionado. Em 1954, nosso padrinho ofereceu-nos essas duas pequenas obras. Li-os, e muito ficou naquele fundo da memória reservado àquilo de que gostamos.
Telefonei à Editora Vozes e gentilmente aquiesceram no sentido da publicação on line de Velho Natal, um conto, entre centenas de outros, escritos por autores os mais díspares, divulgados pelo mundo e relativos ao evento máximo da cristandade. Porventura um dos mais simples e despojados, características essenciais da personalidade de Dom Henrique. Transcrevo-o pois aos leitores:
“ O Papai Noel, enviado do Menino Jesus, com suas longas barbas e seu capuz de ponta, já se fora…
Mas quantos presentes deixara! Nunca se mostrara assim tão generoso: tambor, corneta, livros de figuras, roupa e… um velocípede, pelo qual o pequeno felizardo tanto suspirara! Oh! Poder agora correr pelas alamedas do jardim, pelas calçadas e praças públicas, que prazer! Não era muito grande, não; e Papai Noel do Deus Menino dissera que, em breve já não lhe serviria. Mas, qual história! A gente não cresce tão depressa assim: sempre se conhecera do mesmo tamanho e a seu pai sempre vira com seus bigodes salpicados de brancura…
E o rapazito pulava de alegria. Nem era tudo: os armários estavam abarrotados de doces e empadas, nozes, amêndoas e avelãs; sobre as mesas era tudo flores e frutas, maçãs das bem vermelhinhas, e peras daquelas plenas de suco, como de água as esponjas; na cozinha, bem temperadinho, estava o mais gordo peru que fora, já na véspera, degolado. E enquanto pensamentos elevavam o pequerrucho, fazendo vir-lhe água à boca, lembrava-se de que, daí a pouco, vestiria sua roupinha nova, cor de neve, calçaria seus sapatitos pretos de verniz e, depois, todo faceiro, entre o papai e a mamãe, iria assistir à missa de festa na matriz. Lá veria o encantador presépio: o Menino Jesus nas palhas da manjedoura, as ovelhinhas a pastar pelas encostas das montanhas… de papelão, anjinho a voar, pastores com suas flautas a tocar, os reis magos com seus pajens e camelos, lá ao longe, tão longe, tão longe, que só se prostariam aos pés do menino, 12 dias depois. E quando ele tivesse examinado bem todas as maravilhas do presépio, apareceria o bondoso pároco, segurando um cálice de ouro, com os cabelos brancos como a lã das ovelhas; rezaria muito ao altar, contaria a seus paroquianos a história do Menino Deus, que sempre se ouvia com novo prazer. Lá em cima, na tribuna, cantariam: ‘Noite feliz!’ que ele também sabia. Depois, os meninos vestidos de vermelho, tocariam as campainhas, todos bateriam no peito, e lá iriam, papai e mamãe, com as mãos juntas e os olhos baixos, receber sobre a língua, das mãos do pároco, um pãozinho branco, que a mãe sempre dizia ser a morada do Menino Deus; e quando voltassem a seus lugares, o rosto do pai pareceria mais belo e a mãe, com lágrimas de alegria, o apertaria contra o peito, dizendo: ‘Meu filho, meu filho, pede a bênção a Jesus, para que nunca te afastes dele!’ – Depois voltariam para casa e, com os primos e com as primas… que festa o dia inteiro!
Oh! Natal! Natal! Que belo dia! Por que Jesus não nasceu mais vezes? Poderia alguém estar triste em tal festa? Poderia alguém chorar?
E os sinos da matriz bimbalhavam alegremente: ‘vinde adorar o Menino Deus!’
.. .. .. .. ..
E… o jovem despertou. Passou os olhos tristemente esbugalhados pelo quarto, onde a riqueza e o luxo se uniam ao desleixo e à desordem. Olhou para o relógio prateado da parede: nove horas; para a folhinha: 25 de Dezembro!
Os sinos da matriz, sim, repicavam, realmente, mas… o resto fora já, em tempos idos, realidade. Agora… fora um sonho.
.. .. .. .. ..
Natal! Natal! A roupinha branca, há muito que não a tinha; os pais já descansavam sob o mármore do sepulcro, aonde ele ia, uma vez por ano, contrafeito, depositar um punhado de saudades e colher uma braçada de espinhos e remorso. A história do Menino Deus era, agora, para ele, uma bela lenda para educar crianças. Com seus vinte e três anos já era senhor da grande fortuna paterna, que ele se encarregava de dissipar. Tinha liberdade, tinha ‘amigos’, tinha festas, mas não tinha felicidade, pois já perdera aquela inocência da qual a mãe era tão ciosa, e a fé, da qual o pai tanto se orgulhava.
De que servia o seu rio de dinheiro, se não era suficiente para comprar a alegria e a paz da sua infância? De que lhe servia a liberdade, se sua alma gemia em dura escravidão?…
O sonho fez-lhe mal. Levantou-se da cama, banhado em suor frio.
Correu a cortina do balcão, que abria para a rua, e viu o rosto do rapazito alegre, as crianças felizes, sobraçando os seus mimos, e os velhos bem dispostos, em seus fatos domingueiros.
‘Poderia alguém estar triste em tal festa? Poderia alguém chorar?’ E o rapaz atirou-se sobre a poltrona de veludo, cobriu o rosto com as mãos e … chorou! Chorou no meio de sua riqueza, enquanto os pobrezinhos, alegres, acudiam ao bimbalhar dos sinos, que chamavam, alvissareiros: ‘Vinde adorar o Menino!’”
Velho Natal (Old Christmas) is an unpretentious Christmas story written by Dom Henrique Golland Trindade (1897-1974), a priest and a holy man, once archbishop of the city of Botucatu, a position to which he resigned in order to minister to the poor, orphaned and helpless. A very dear friend of mine, he was the sponsor at my Confirmation and officiated my wedding cerimony.
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