Origem do Fascínio
Domar a mente
é a tarefa mais importante
da vida de uma pessoa.
XIVº dalaï-lama Tenzin Gyatso (1935 – )
Meu pai e eu aniversariávamos no mesmo dia. Pediu-me que eu o presenteasse com a Valsa op. 64 nº 2 de Chopin, popularmente conhecida como 7ª Valsa. No dia da comemoração, durante o café da manhã toquei para ele o que prometera. O seu presente, jamais esqueceria: O Mundo Pitoresco, a belíssima coleção encadernada em IX tomos ( Rio de Janeiro, W.M.Jackson, 1946, 2.331 págs.). Completava meus 12 anos e a obra seria minha cúmplice geográfica. O mundo lá estava: regiões, povos, tradições, abundantes ilustrações, textos assimiláveis. O adolescente que eu fui leu devotadamente a coleção, sonhou e viajou pelas terras desconhecidas, a pensar em como seria extraordinário conhecer o planeta, na época ainda a apresentar regiões misteriosas e a ter uma integridade física que a incúria humana não fez mais do que deteriorar ao longo das últimas décadas.
Já no início do primeiro volume deixei-me fascinar pelo texto Através das Terras Proibidas, no qual Tibete, Nepal e Butão eram apresentados como regiões localizadas no topo do mundo e praticamente ignotas pelo homem. O autor do relato já advertia que aqueles territórios permaneciam fechados. O jovem cresceu e o interesse por essa região também, não apenas no aspecto geográfico e das populações que lá existem, mas igualmente na maneira como elas entendem a vida através da tradição de milênios a resultar na prática religiosa diária, costumes simples e rudes, respeito absoluto à natureza e deslocamentos constantes de determinadas povoações nômades naquelas alturas gélidas. Vôo para a imaginação. Na adolescência sonhei até em ser alpinista, atividade incompatível para um jovem que se dedicava seriamente ao piano. Todavia, o interesse pela extensa cadeia representada por quantidade imensa de picos acima dos 7.000 metros persistiu, e quando viajo levo comigo escritos sobre o Himalaia.
Tantas foram as obras lidas: aventuras visando à conquista de alguns dos altos cumes, narrativas de viajantes ou daqueles que buscaram refúgio místico, coletâneas de textos enriquecidas por fotos de perfeição mágica, pensamentos filosófico-religiosos; todos ainda despertando no hoje quase septuagenário o prazer inconfessável dos sonhos secretos.
Duas narrativas chamaram-me a atenção neste ano: a de Alexandra David-Néel (Au coeur des Himalayas, Paris, Payot, 2004, 193 págs.) e a de Paul Brunton (Un ermite dans l’Himalaya, France, du Rocher, 2006, 431 págs. trad. do inglês). Ambas pertencem à primeira metade do século XX, quando as regiões mencionadas eram pouco freqüentadas, e abordam aspectos distintos, porém concordantes em tantos ângulos.
A escritora, budista e exploradora francesa Alexandra David-Néel (1868-1969) teve uma vida plena. Escreveu mais de 40 livros sobre viagens, espiritualismo, posicionamentos políticos. Percorreu a região do Himalaia por cerca de quinze anos. Em 1949, é publicado Au coeur des Himalayas, reeditado recentemente. Nele a escritora, que foi a primeira mulher ocidental a se tornar Jétsunema, ou seja, lama, relata uma extraordinária peregrinação durante o inverno de 1912-1913 ao coração das regiões montanhosas, a fim de visitar os lugares onde viveu Buda. Mencionávamos o desconhecido relacionado ao Himalaia. Naquele início de século, a andança de uma mulher voltada à cultura e religião orientais era algo quase inimaginável. Madame David-Néel aprofunda-se no conhecimento das tradições da região. Misticismo, hábitos atávicos, pureza, simplicidade, fatalismo e crueldade são naturalmente expostos enquanto a escritora espiritualista visita lugarejos, paisagens. Nepal e Tibete surgem, sob a pena de David-Néel, como alumbramentos: Ó! Tibete! Como este país tão diferente do meu conseguiu me conquistar de maneira tão profunda, possuindo-me inteiramente corpo e espírito, pensamentos e sensações? A autora observa diferenças entre as arquiteturas dos monastérios da India meridional e aquelas do Tibete e do Nepal; mantém algumas tradições ocidentais, mas incorpora-se, em parte, ao modus vivendi dos monges budistas, respeitando-o; encanta-se com as paisagens fantásticas da cadeia de montanhas entre esses dois últimos países. Compartimenta o termo paisagem. Ela afirmaria ter tido como fim essencial a curiosidade que leva ao conhecimento, no amplo sentido do conhecer “paisagens”. Se altas montanhas, vales, florestas, rios, flores e pedras têm muito a revelar, pois vivem intensidades e para isso é só necessário ter ouvidos e olhos atentos, paisagens são também a vida dos homens e aquilo que eles estão a traduzir através da conduta. Esta evidencia-se por meio das idéias, desejos, crenças, amores, rancores, esperanças, conteúdos sempre em movimento naquilo que a autora nomeia como a própria alma. O livro relata a experiência da viajante frente a um tigre. Imóvel, libertou-se de pensamentos, fitou o animal sem medo, pois estava em meditação, e o felino, após algum tempo, afastou-se. As narrativas de Alexandra David-Néel cativam pela sagacidade das observações.
Paul Brunton (1898-1981), pensador, jornalista, viajante, místico e guru inglês, teve uma vida igualmente intensa. Seus livros refletem o interesse do pensador em busca de explicações que levem o homem à paz interior. Em Un ermite dans l’Himalaya, Paul Brunton em 1936 retira-se do convívio com a turbulenta sociedade londrina e encontra, durante meses, um local perdido entre o Nepal e o Tibete. Instala-se em um bangalô e diariamente passa horas a meditar em local próximo, mas ainda mais alto, de onde descortina segmento da cadeia montanhosa do Himalaia. Um velho deodar – cedro do Himalaia – à frente de um abismo torna-se seu confidente. No livro há relatos dos caminhos percorridos, mas diferentemente de David-Néel, Brunton está na região para esse encontro místico com o almejado esvaziamento do pensar. Compara as múltiplas idéias a ocorrerem na mente de um citadino ocidental com a evaporação dos pensamentos simultâneos, num desiderato único de, em meditação, conseguir a quase impossível meta de, longamente, ter apenas uma fixação. Seria a idéia única que, almejada, deve tornar-se imanente. Em seu exílio voluntário, recebe visitas esporádicas de grandes mestres yogas, como Pranavananda, assim como a de um Príncipe Sábio. Registra tudo em sua máquina de escrever. Pranavananda conta a Brunton que seu mestre, Swami Jnanananda teria permanecido longo período em meditação durante o inverno acima dos 3600 metros, sem roupas e sem fogo para aquecê-lo, apenas com a força do pensamento. Chegara ao estágio de alcançar apenas uma fixação e conservá-la. Parece-nos fantasioso, mas relatos testemunham essa façanha de um verdadeiro yoga despojado de quaisquer outros pensamentos que pudessem distraí-lo ou perturbá-lo. Paul Brunton vive a sua experiência, relata-a e sua narrativa jamais perde o encanto nesse solilóquio previsto. O Príncipe do Nepal que o visitou, Mussooree Shum Shere, escreve na apresentação do livro que Brunton considerava Un ermite dans l’Himalaya horrivelmente egocêntrico, no que o apresentador discordou. A obra tem interesse, a ensinar, através da experiência vivida, que o homem deve buscar, mesmo nas grandes cidades ocidentais, refúgios para a mente, despojando-a de pensamentos dispersos, provocadores e inúteis. Um parágrafo do livro sintetiza o esforço nessa intenção, certo niilismo, mas a certeza de ser a luta constante o caminho a ser seguido: Eis-me presentemente letárgico, inútil à sociedade e sem ocupação lucrativa, um desocupado que se contenta em permanecer sentado sem se mexer e esforçando-se em expulsar vagas de pensamentos invasores que tentam subjugá-lo. Em resumo, eu não tenho nem status oficial nem lugar reconhecido no mundo. Eu não mais sou respeitado. Isso não tem importância!. Como curiosidade, Brunton mantinha em seu bangalô uma foto de Charles Chaplin, dedicando longas reflexões ao ator: porque ele fala a língua universal que brancos, mestiços, amarelos e negros compreendem bem – a língua do humor e do patético. Divaga sobre o esplendor das estrelas em noites imaculadas naquelas altitudes, a comentar não apenas constelações e astros, mas os reflexos noturnos nas paredes nevadas do Himalaia. Assim como Alexandra David-Néel, Brunton encontra na solidão o seu felino, uma pantera. Fixaram-se, o animal demonstrou sua raiva, mas não atacou, devido à “aparente” tranqüilidade do autor. Os livros de Paul Brunton tiveram enorme sucesso. Entrara em contacto com grandes figuras do pensamento místico da India, e o acervo de experiências e captações tornaram Brunton um mestre para seus seguidores. Embora enfoquem período determinado, tornam-se atemporais, despertando interesse de todos que almejam a paz interior.
When I was a boy I was given the encyclopedia O Mundo Pitoresco (The Picturesque World). I read bewitched the stories of far-off countries, with their rich and unique cultural heritage and uncommonly diverse landscape. This was the beginning of my lifelong interest for the Himalayas, home to the world’s highest peaks. This post is about two books I have recently read on this subject: Alexandra David-Néel’s Au Coeur des Himalayas (In the Heart of the Himalayas) and Paul Brunton’s A Hermit in the Himalayas. Two narratives written in the first half of the XXth century, approaching the matter from different but equally fascinating perspectives.