Navegando Posts publicados em outubro, 2009

Lembranças e Interpretações

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Foi uma alegria nostálgica, mas intensa, ter recebido inúmeros e-mails de leitores que ou estiveram a se lembrar de leituras das enciclopédias da adolescência-juventude ou teceram observações consistentes (vide O “Thesouro da Juventude, 17/10/09). Torna-se difícil, no espaço proposto, contemplar todas as mensagens recebidas, daí ter selecionado algumas que estabelecem a ligação com uma coletânea que marcou gerações. Com os frequentadores de meu blog semanal, partilho algumas dessas opiniões.

“Maravilhamento foi também a leitura do seu último texto ‘O Thesouro da Juventude’ ! O breve poema do nosso saudoso Eugénio de Andrade, que preludia o texto, diz-nos tudo sobre a preciosidade dos livros. Feliz todo o ser humano que tem acesso a eles sobretudo, a começar na infância, porque eles são, na realidade, os nossos mais fiéis companheiros. Mas há livros e livros. Há os belíssimos, transparentes, sábios, cheios de Harmonia, sempre prontos para nos transmitir a beleza, as coisas práticas da vida, mas também os seus mistérios. Claro que são estes que nos ajudam a crescer de forma equilibrada. Foi assim ‘O Thesouro da Juventude’ (18 volumes !) que iluminou a sua adolescência e o ajudou a formar um tão forte carácter! Hoje há milhares de enciclopédias disto e daquilo para crianças e jovens. Mas há sempre uma lacuna que os livros da nossa adolescência não tinham – a questão da formação humanística, a formação moral dos jovens era uma preocupação constante que estava presente na literatura que nos era dirigida. Hoje confunde-se moral com religião. Ao mesmo tempo que se foi perdendo o sentido do sagrado, as sociedades contemporâneas também se esvaziaram de valores morais imprescindíveis para nos respeitarmos e amarmos uns aos outros. No meio desta selva, continua a haver, felizmente, muitos pais que sabem educar os filhos….”
(Idalete Giga – Portugal)

“Também tive o meu Tesouro da Juventude, ainda que certamente o tenha lido de um modo diferente do seu. Outros tempos, é verdade, as fontes já eram mais variadas também”.
(Mônica Sette Lopes)

Tomo IX, pág. 2837. Clique para ampliar.

“Não tive o privilégio de ganhar, como você, uma coleção de O Tesouro da Juventude. A dádiva veio de outra forma: a meninice e a puberdade passei-as nas plagas então recolhidas do seminário de São Roque, desimpedido de preocupações outras que não a da prece, diversão e estudo. A prece extinguiu-se, a diversão desvaneceu-se, o estudo arrefeceu, mas entre as poucas lembranças desse período restou justamente a dos volumes do Tesouro, carregados de histórias, poemas e ilustrações. Foi neles que fiz as primeiras descobertas do mundo da fantasia e onde se abriu a aventura que ainda hoje me dá alento: a leitura… Há alguns anos eles me foram de extrema solicitude. Queria reencontrar um poema que naquele feliz período me encantara, mas não havia meio de lembrar o nome do autor; as pessoas consultadas, embora conhecedoras do poema, também não se recordavam de quem o compusera. Veio-me à lembrança o Tesouro, fui a ele no acervo da biblioteca da Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes (hoje em Campinas), e lá estava o poema:

História de um cão

Luiz Guimarães Junior

‘Eu tive um cão. Chamava-se Veludo.
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
para dizer numa palavra tudo,
foi o mais feio cão que houve no mundo.

Recebi-o das mãos dum camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo,
não me queria acompanhar por nada.
Enfim – mau grado seu – o vim trazendo’.
[…]

Pena seja longo demais reproduzi-lo agora. Mas fica o registro e a menção de que Guerra Junqueiro também rimou essa mesma história, que intitulou Fiel e que em seus versos começa assim:

Na luz do seu olhar tão lânguido, tão doce,
havia o que quer que fosse
d’intimo desgosto:
era um cão ordinário, um pobre cão vadio,
que tinha coleira e não pagava imposto.
Acostumado ao vento e acostumado ao frio,
percorria de noite os bairros da miséria
à busca d’um jantar.
E ao ver surgir da lua a palidez etérea,
o velho cão uivava uma canção funérea,
triste como a tristeza ossiânica do mar.”

(Cláudio Giordano)

Tomo XIII, pág. 4009. Clique para ampliar.

“Você falando do Thesouro da Juventude! Ainda não li seu blog, mas só de mencionar o nome daquele tesouro voltei atrás e ainda estou vendo os volumes encadernados em azul claro, lembro-me de mamãe lendo uma história antes de eu dormir e de chorar longamente por que achei a história triste e de mamãe dizer que se era para eu chorar com as histórias, ela não leria mais para mim. Era qualquer coisa com a história de um pinheirinho. Enfim, nós adorávamos essa coleção. Obrigada por me fazer lembrar de um tempo tão feliz, pois estou revendo aquelas páginas grossas, brilhantes, as ilustrações. Enfim, uma parte de mim que se foi, mas que continua presente”.
(Maria Helena Etzel)

“Também nós tivemos em casa a coleção toda do Thesouro da Juventude, realmente um tesouro e me marcou muito. Lembro-me de que a nossa ainda era com a ortografia antiga, do tempo de PH e do Brazil com Z. Por falar nisso, por quantas reformas ortográficas passamos, não? Pensar que a ortografia de língua francesa data do século XVI…”
(Maria Cecília Naclério Homem)

“Minha relação com os volumes sempre foi muito respeitosa, porque nos anos 50 e 60 não tínhamos acesso à estante de livros, como as crianças têm atualmente, mesmo sendo esta em casa. Essa forma de agir deixava em nós um vínculo de respeito pelo livro, principalmente o encadernado, de capa dura e de coleção. Todas as vezes que manipulávamos o livro era com grande cuidado e por uma boa causa: a nossa educação formal. Essa pequena biblioteca que tínhamos nos proporcionou (a mim e mais três irmãos) momentos agradáveis com amigos se agrupando, em nossa casa, para fazermos as pesquisas de trabalhos escolares.
Essas foram as formas que permearam a minha relação com o Tesouro da Juventude, que juntamente com a Barsa, coleções de arte, de prêmios Nobel de Literatura, e muitos outros livros encantaram minha infância, minha juventude e agora a minha saudade.”
(Eliana Bento)

“Li seu blog sobre o ‘Thesouro da Juventude’. Esplêndido.
Em nossa meninice, em que não havia televisão ou internet, era a bíblia dos jovens. Li-o quase por inteiro.
Alegra-me que você tenha relembrado aqueles tempos, em que todos criávamos o próprio mundo a partir da leitura e não o recebíamos ‘enlatado’ nos programas montados pelos novos técnicos de comunicação. E o mundo de nossa imaginação era muito mais ambicioso do que aquele que a atualidade cria.”
(Ives Gandra Martins)

Interpretação de uma Charge

A Justiça. Charge de Luca Vitali. Setembro 2009. Clique para ampliar.

Se o acaso te fizer conhecer três homens das ruas,
certamente eles terão algo a te ensinar.

Confúcio

Luca Vitali é ouvinte paciente. Quando entendo determinado tema do interesse do amigo, comunicamo-nos e vamos ao Natural da Terra tomar um curto. Leio pausadamente o post da semana. Luca, atento, pensa por vezes em imagens e a criação vem, sem eu nada pedir, via e-mail. É uma alegria ter seus desenhos a ilustrar meus textos.
Desta vez, deu-se o contrário. Instigado por outro apelo, sugestão de uma nossa amiga virtual para possível ilustração de um livro, realizou um desenho daquilo que ele entende por Justiça. Vi seus traços firmes e disse-lhe apenas que se tratava de forte e irreverente interpretação. Poderia pensar num futuro post? Achou graça e concordou, pois generosidade faz parte de seu cotidiano. São tantos os deficientes físicos que se realizaram a partir de seus ensinamentos artísticos ! Tema futuro, sem dúvida.
Várias corridas pelas ruas levaram-me a pensar. O desenho não saía de minha mente. Escrevia posts após reflexões, mas a charge de Luca continuava acesa em meus pensamentos. Traduzia aquilo que também passei a aceitar como integrante de surdo clamor existente no cidadão comum, longe das pesquisas, tantas vezes comprovadamente falhas. Sob aspecto outro, refletiria o desenho uma quimera, pois o acesso à Justiça mostra-se para o homem do povo, aquele dos transportes coletivos abarrotados, das longas jornadas de trabalho, da ausência de assistência médica, da absoluta impossibilidade de ter segurança, uma lâmpada apagada num túnel sem fim. Comprovadamente sabe esse cidadão que transita pela cidade que, se cometer algum delito, ou buscar reivindicar direitos, terá não apenas imensas dificuldades para inteirar-se das tramitações pertinentes, como estará à mercê de advogados, nem sempre com méritos, e sem o prestígio de alguns luminares que conseguem, através de argumentações mais embasadas ou da aura imbatível, defesas sustentáveis para casos complexos.
Nos dias que se seguiram ao curto com Luca, indaguei a várias pessoas se acreditavam na Justiça brasileira. Diria que, de vinte e tantos questionamentos para uma classe média a obedecer nuances, a resposta veio sempre instantânea, o não sem titubeio. Apenas uma exceção, um a se dizer advogado que se limitou a sorrir ironicamente. O mais contundente entre os negativistas, rosto entre milhões d’outros, disse que o santo caíra do altar. Quis saber o que queria dizer. Respondeu-me que meses atrás assistira pela televisão a uma sessão do Supremo Tribunal Federal. Houve discussão de tão baixo nível entre ilustres Ministros da Suprema Corte que sentiu vergonha. Um filho seu que se preparava para vestibular de Direito, ao ver a cena disse ao pai que estava a desistir naquele instante e que buscaria outra opção. Perguntei-lhe se realmente desistira. Com sorriso que transparecia resignação, retrucou “Ele e eu. Fará Economia e eu desisti de acreditar na Justiça que chega a esse nível em nosso país”. Emudeci. Mais do que o lamentável episódio ocorrido entre dois respeitados representantes de nossa Corte Suprema, calou-me o fato de que possível vocação de um jovem lhano – a tudo indicar pela atitude – tenha sucumbido ao vislumbre de um destempero. Decisão sem retorno, pois a partir de exemplo extremo. Mais ainda apreendi a mensagem de meu dileto amigo desenhista e pintor.
Luca teria captado algo patétito. Compreendeu, como artista, a realidade que parece ser sedimentada, sem condições de melhora. Creio que a mídia, a denunciar tantos escândalos quase que todos os dias, sem a menor possibilidade de resultados que incriminem culpados, tenha propiciado àqueles com o mínimo de esclarecimento o descrédito pelo nosso Poder Judiciário. Escândalos do Congresso Nacional e crimes de toda ordem, amplamente divulgados, repercutem em todo o país, sem punições para as figuras conhecidas envolvidas. Se elas acontecem, são quase sempre tênues, ou a paliativa prisão domiciliar. Ratificam para o homem que transita pelas ruas a desconfiança e o desalento. A impunidade proclamada pelos meios de comunicação mostra-se acentuada para aqueles que têm recursos para pagar honorários a causídicos renomados e convincentes. Fiquei entristecido com o resultado da minha simples pergunta. E nossas doutas cortes, em todas as instâncias, têm muitos dos mais brilhantes cérebros jurídicos do país, que lá chegaram através de méritos, seja por difíceis concursos, ou indicações políticas a partir de serviços prestados ao país.
Numa outra visão, aquela de um pobre sentenciado que conheci em Prados, Minas Gerais, está a apontar a absoluta diferença quanto aos julgamentos. Participei, entre os anos 80-90, de alguns Festivais de Música nessa pequena e bonita cidade, perto de Tiradentes. Ao lado da casa onde fiquei hospedado há a prisão e um só preso ocupava a cela. Conheci-o, pois durante o dia deixavam-no lavar um ou outro carro, e o sentenciado angariava alguns trocados. Moradores diziam que o rapaz, realmente bem simples, tinha boa índole, daí esse afrouxamento durante algumas horas. Quando em um bar bem típico, onde fui tomar café requentado, perguntei a um pradense qual a causa da punição e qual a pena a ele infringida, recebi como respostas: “roubou um saco de batatas e foi condenado a cinco anos de reclusão”.
A ilustração de Luca Vitali alusiva à Justiça, uma charge a considerar diversos aspectos por ele interpretados em traços que fazem parte de seu idiomático, traduz muito do que se ouve nas ruas a respeito do Poder Judiciário. Luca auscultou-se. Esse ouvir interior não seriam seus acúmulos silenciosos frente ao que todo cidadão também ouve, lê e vê diariamente?
A Justiça é representada com venda nos olhos em estátua grega. Essa venda teria origem no século XVI e representaria a isenção necessária nos julgamentos. Simboliza a Justiça “cega”, sem mácula, imparcial. Contudo, venda nos olhos pode pressupor sua retirada, o que tornaria injusto qualquer juízo, pois doravante a pender para uma das partes. A interpretação da charge de Luca mostra-se transparente. Ele idealizou a Justiça realmente cega e a sua balança só teria um prato para aferição e a suportar um Código, daí ter utilizado velho medidor tão comum nas feiras de antigamente. Sequer pensou na balança de dois pratos, equilibrada, isenta. Cego tem geralmente a guiá-lo cão fiel, mas Luca preferiu pensar numa raposa também sem a visão como guia e um gato como “observador”. A cegueira conduzida pelo estranho instinto da raposa. A espada a simbolizar o poder da Justiça, que sem bainha pressupõe a presteza decisória na tradicional representação, estaria substituída pelo guia, a manter junto a si a raposa. Notório entender que o preceito latino suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu) estaria a sofrer tendências tergiversantes.
Os Poderes Executivo e Legislativo têm dado exemplos não dignificantes, mercê em parte da enorme diversidade de formação de seus integrantes eleitos pelo povo. Alguns bons governantes existem, assim como bons legisladores. Há quantidade deles que servem aos Municípios, Estados, União. Porém, quantos não são aqueles que, a exemplo das ervas daninhas, têm permanentemente escândalos divulgados? Tendem a macular nossas Instituições e, entre elas, o Poder Judiciário. Salvaguarda fundamental deste país, graças, inclusive às biografias de seus membros, o Poder Judiciário deveria, sine qua non, ser o baluarte da credibilidade para o cidadão. É o descrédito pela Justiça, assinalado nesse minúsculo questionamento que realizei, motivo de preocupação? É-o, na necessidade absoluta e imprescindível do respeito que todos nós deveríamos ter pelo Poder Judiciário em sua abrangência, a reforçar, inclusive, a auto-estima do brasileiro. Não podemos, sob qualquer pretexto, perder a confiança na Justiça, mas ela tem de apresentar resultados que levem o cidadão a acreditar.
Certamente, o polêmico desenho de Luca Vitali tenderá a suscitar as mais variadas interpretações em todas as direções. A charge do amigo tem a força expressiva e criativa do artista e seus mistérios insondáveis. Por mais que haja objetividade na ilustração, um conteúdo oculto está por trás. Não seria a forte diminuição da credibilidade de nossa Justiça junto ao cidadão comum fato para a mídia dimensionar, o povo criticar, o artista idealizar, e eu abordar neste post? Houvesse a total imparcialidade a considerar o preceito constitucional de que todos deveriam ser iguais perante a lei, existisse a presteza nos julgamentos, e certamente a charge poderia ser outra e o presente post não teria razão de ser escrito. Arte, Luca a tem nas veias e acredito eu, não fosse o seu desalento, que é o de parcela majoritária esclarecida da população do país frente à Justiça, haveria tantos outros caminhos criativos para a sua pena percorrer.

Looking at an illustration made by my friend and graphic designer Luca Vitali, portraying the symbol of Justice as he sees it, I was led to reflect on the issue of dispensation of justice in Brazil and on the reasons why the common man has always had a distrust of our judiciary, tending to regard it as an exclusive reserve of the elites.

Horizontes Abertos às Gerações

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Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.

Eugénio de Andrade

Desde Março de 2007, rememorar o passado tem preenchido posts. Faz parte da existência olhar o presente, vislumbrar passos a serem dados, mas também revisitar mentalmente caminhos trilhados. O regresso às lembranças registradas e às leituras que permaneceram apenas dimensiona a apreensão do todo de uma vida. Somos forjados nesse gigantesco acúmulo que, ao final da trajetória, deverá resultar na interação completa dos tempos de maneira harmoniosa, ou demonstrar que certas sendas levaram a impasses, dependendo de nossa atitude frente à vida, ou até do imponderável.
A geração a que pertenço cresceu sob égides desconhecidas ou difíceis de serem entendidas pelas que a sucederam. No quesito leitura, a formação dos pais pode ter sido determinante à qualidade dos livros. Se interessados, sabiam como entusiasmar os filhos nessa mágica viagem que os volumes proporcionam. Não havia distrações ditadas pela tecnologia em veloz aceleração, o que permitia ao jovem concentração maior nas poucas alternativas existentes. E o livro preponderava.
Estou a me lembrar das coleções que ganhei de meus pais, mercê da evolução pianística paulatina a causar guarida no coração dos dois. Serviam de estímulo aos progressos alcançados pelo adolescente. Sabiam qual orientação dar, não se esquecendo contudo de preferências individuais de cada filho. Foi assim que recebi O Mundo Pitoresco em nove volumes, que me abriu a janela geográfica do planeta (vide Leituras sobre o Himalaia (I) – Origens do Fascínio, 07/12/07), Os Doze Trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato em doze fascículos e, nessa ampla visão enciclopédica, o Thesouro da Juventude em 18 substanciosos compêndios (Estados Unidos da América do Norte, The Colonial Press. Inc., s.d. Distribuído no Brasil pela W.M.Jackson, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, 5.904 págs.). À Introdução, o insigne Clóvis Bevilacqua escreve: “ É, portanto, o Thesouro da Juventude uma biblioteca apurada, escolhida e condensada, onde se acham as noções essenciais das ciências, os conhecimentos de utilidade geral, as artes e a moral, e que resume e substitui uma dispendiosa e vasta, que muito poucos podem adquirir, e menor número ainda consegue ler”.

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A obra é realmente um tesouro. Atendia às mais variadas áreas do conhecimento, a possibilitar, inclusive, a precoce escolha de uma profissão pelo adolescente que frequentava a leitura dos compêndios ricamente encadernados. Cada um tratava harmoniosamente de várias categorias, prioritariamente denominadas livros. A fim de não se tornar cansativo, cada seção não se exauria de uma só vez, mas era intermediada por todas as outras. Dessa maneira, o retorno a segmento já apresentado pressupunha a visita progressiva a todos os outros “livros”, ou o encontro mais adiante com a categoria de interesse naquele momento. Estruturava-se a divisão nos seguintes compartimentos: O Livro da Terra, O Livro da Natureza, O Livro da Nossa Vida, Os Livros do Velho e do Novo Mundo, Cousas que Devemos Saber, O Livro dos “Porquês”, Homens e Mulheres Célebres, O Livro dos Contos, Cousas que Podemos Fazer, O Livro das Bellas Acções, O Livro da Poesia, Os Livros Famosos e O Livro das Licções Attrahentes. Todos os segmentos apresentavam-se em doses homeopáticas, distribuídos pelos 18 compêndios. Se as poesias escolhidas mantinham-se quase sempre na íntegra, o mesmo não acontecia com os Livros Famosos ou o dos Contos, apresentados resumidamente, mas a estimular o jovem leitor ao conhecimento da obra na sua abrangência. Nos títulos O Livro da Terra, O Livro da Natureza e O Livro da Nossa Vida, deparávamo-nos não apenas com o universo e seus mistérios, assim também com todas as implicações da origem, formação e sedimentação do planeta – mares, rios, águas subterrâneas, minérios, fauna, flora. O Thesouro… aguçava o conhecimento da história e da geografia através dos Livros do Velho e do Novo Mundo – apresentados separadamente. Exemplos dignificantes ficavam reservados aos Livro das Bellas Acções e Homens e Mulheres Célebres. Muitas das atitudes perante à vida não teriam sido influenciadas por exemplos representativos? Nos segmentos: O Livro das Licções Attrahentes, O Livro dos “Porquês” e Cousas que Podemos Fazer, aprendemos lições teóricas e práticas que serviriam para a vida. Estou a me lembrar que, nesse último compartimento, minha mãe disputava a leitura quando algo referia-se às prendas domésticas.
O ilustre economista Roberto Macedo escreveria uma sensível crônica com o título O “Thesouro da Juventude”, publicada em O Estado de São Paulo (30/12/1999, pg.2), a relembrar os efeitos duradouros que a obra teve sobre sua formação humanística. Comenta “Seja por interesse ou porque na época não havia muitas alternativas, particularmente as audiovisuais que hoje tanto atraem a juventude, devorei quase todos esses livros e devo muito a eles”. Creio que para todos aqueles que tiveram o grande privilégio de contar com essa extraordinária coletânea, lendo-a preferencialmente, marcas indeléveis permaneceram, mercê da diversidade das áreas abordadas em textos claros, objetivos, sintéticos, mas sempre a provocar o aprendiz da leitura.

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Minhas filhas ainda chegaram a consultar os tomos, que estavam a conhecer outra geração. Entretando, a coleção não resistiu à geração das netas, pois a grafia e fatos tantos que perderam a atualidade desviaram suas atenções para as tecnologias virtuais em evidência. Possivelmente as conexões cerebrais dessa novíssima geração, voltada aos contextos multidisciplinares e suas cargas em constante mutação, provoquem uma outra apreensão do mundo, de tudo o que nos cerca. Muitos dos contos “pueris” do Thesouro da Juventude, lidos hoje para os miúdos, deixam até de ser compreendidos. Todavia, os temas que ficaram congelados perante o caminhar diário da humanidade tornam-se motivo de nostálgica alegria para aqueles que conviveram com a coleção. Mencionemos dois: “ O aeroplano moderno, capaz de desenvolver uma velocidade de 300 kilômetros à hora”, ou “Podemos affirmar desde já que é impossível para um carro ordinário marchar sobre um só rail, porque as suas rodas estão collocadas d’um lado e d’outro, duas a duas ou quatro a quatro, nas duas extremidades de cada carruagem, precisando pois de dois rails para se apoiarem”. Conceituações hoje “ingênuas”, mas que ajudaram gerações a entender transições que se processariam com o desenrolar do tempo.
Conservei intacto o meu Thesouro e é sempre com carinho que observo esses velhos tomos repetidamente visitados durante minha formação. Foi em momento de descontração que consultei-o e a idéia germinou. Lombadas amareladas pelo passar das décadas, afagadas pelas mãos do adolescente que eu fui, mas que não abalaram sua estrutura, tampouco apagaram as inscrições douradas. Enciclopédia envelhecida, mas a revelar que houve carinho a protegê-la. Como a obra redigida data de meados dos anos 30, os episódios da história, comprovadamente “atuais” do período, proporcionam-me, ao revisitá-los, prazer especial. Transmitir aos meus leitores esse afeto faz-me relembrar o passado, que abriu as portas para o desvelar do grande enigma que é a existência. A depender de nossa intenções, podemos, apesar de tantas distorções, entendê-la como maravilhamento.