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Wilhelm Kempff (1895-1991), ilustre pianista alemão. Clique para ampliar.

Nunca percebera semelhante ressonância ao piano.
Bach escreveu nesse segmento um cantochão para tenor,
enquanto que a melodia
apresenta-se enquadrada por alertas colcheias
tocadas pela mão esquerda
e por filigrana prateada de notas mais breves ainda,
tocadas pela mão direita.
Acreditei estar ouvindo uma trindade sonora,
um órgão do futuro.

Wilhelm Kempff
(adolescente, ao ouvir Ferrucio Busoni
interpretar transcrição ao piano.)

Quando uma obra musical sofre adaptação para outro instrumento ou conjunto deles, chama-se essa transferência de transcrição. Poder-se-ia considerar a tradução literária como equivalente à transcrição musical. A prática é bem antiga e compositores do passado dela se utilizaram para transcrever obras originalmente escritas para determinada configuração, adaptando-as a outras. A terminologia fronteiriça ainda acoberta termos como arranjo, adaptação, versão, a depender do contexto. São famosas as transcrições de J.S. Bach (1685-1750) de obras de Antonio Vivaldi (1678-1741). Jean-Philippe Rameau (1683-1764) transcreveria para cravo segmentos de sua ópera-ballet Les Indes Galantes. Tantos outros exemplos evidenciam a prática rotineira, que atravessaria os séculos. As realizadas por Franz Liszt (1811-1886) das obras originais de J.S.Bach, Paganini, Wagner, Schubert, Beethoven (Sinfonias), apresentando-as em público, ou as transcritas por muitos de seus coetâneos bem atestam a popularidade dessa categoria de linguagem musical. Bem mais tarde, Ferrucio Busoni (1866-1924) transcreveria para piano obras de Bach compostas para órgão, assim como os expressivos corais do compositor alemão. Tornar-se-ia célebre a transcrição para orquestra que Maurice Ravel (1875-1937) empreenderia da famosa criação de Moussorgsky (1839-1881) Quadros de uma Exposição, original para piano. Após a aceitação dessa versão muito divulgada, compositores, entre eles Dmitri Shostakovich (1906-1975) e Francisco Mignone (1897-1986), orquestrariam igualmente a magistral criação de Moussorgsky. Enfim, são infindáveis os exemplos que chegam até a atualidade.
A história da humanidade evidencia sempre fluxos e contrafluxos. Faz parte das aspirações do homem fazer emergir teorias e práticas de conduta, relegar para plano secundário ou mesmo tentar suprimir o que estava estabelecido imediatamente antes. Acreditam os novéis emergentes que a eliminação do passado recente propulsiona caminhos definitivos. Assim acontece em todas as áreas, sendo que nem mesmo a religião escapa e, nas inúmeras existentes, há permanentemente tendências ou seitas interpretando diferentemente textos primitivos. Num sentido mais drástico, toda a revolução tende a eliminar regime anterior. Se a transcrição teve ampla guarida no romantismo, seria contudo mal vista pelos puristas de meados do século XX, que a consideravam, inclusive, uma corruptela do original. Houve até períodos de recuo, quando compositores hesitavam mais acentuadamente em transcrever obras com as quais mantinham afinidade.
Voltando-se ao século XIX, Liszt ao realizar monumentais versões pianísticas das sinfonias de Beethoven, ou segmentos das óperas de Wagner, buscava retirar do piano todas as suas potencialidades polifônicas. Num período em que o instrumento passa a reinar, e suas possibilidades timbrísticas e ampla sonoridade já causavam impacto devido inclusive à revolução industrial, que propiciaria chapas de metal resistentes às grandes tensões das cordas, o quadro mostrar-se-ia delineado. O autor das célebres Rapsódias Húngaras como exemplo, perceberia essa transição e uniria desde logo sua extrema competência pianística a serviço da busca sonora abrangente. Piano transformado em orquestra.
O piano será doravante o instrumento ideal para a transcrição, mercê da sua evolução em curso que lhe permitia possibilidades inimagináveis antes. Os compositores do século XIX e pianistas até meados do século XX familiarizar-se-iam com as características inéditas do instrumento. Como se não bastassem os extraordinários recursos do piano, a virtuosidade como meio de sedimentar intérpretes que se consagrariam até pelos excessos de “malabarismos” pianísticos, e a aura romântica do sonho e da expressividade como veículo à emoção levariam naturalmente a maior número de transcrições. Sergei Rachmaninoff (1873-1943), compositor e notável pianista, apreciava realizar arranjos ou versões apresentados em seus concertos. O mesmo fazia o extrordinário pianista russo radicado nos Estados Unidos, Vladimir Horowitz (1903-1989), ao fulgurar em pirotécnicas transcrições de obras de Georges Bizet, J.P. Souza e, inclusive, criando versão “dificultada” dos Quadros de uma Exposição , de Moussorgsky.
Transcrições, arranjos, versões de obras, mormente de Bach, eleito naturalmente paradigma para essa categoria de linguagem musical, frequentemente povoaram o ideário de compositores e pianistas. Se o Kantor foi propagador da transcrição, seria ele também um dos mais visados em termos de versões de suas obras realizadas por tantos compositores de qualidade diversa. Houve mesmo modismo quanto a transcrever Bach para piano, uma das características românticas, a propiciar a possibilidade da eclosão da virtuosidade para alguns, ou o pleno recolhimento para outros, ou até a fusão das duas expectativas para o público. A obra vasta de qualidade para órgão, assim como para coral despertaria por parte de instrumentistas essa curiosidade na busca de adaptações pianísticas, mas geralmente no trato das mais divulgadas. A eterna necessidade de agradar ouvidos de público ávido pelo já conhecido.
Entre tantos que transcreveram obras de J.S. Bach, três mereceriam igualmente destaque: Wilhelm Kempff, Myra Hess e Alexander Siloti. Dame Myra Hess (1890-1965) foi uma das grandes pianistas do século passado. Nascida na Inglaterra, notabilizou-se sobremaneira nas interpretações de D. Scarlatti, Mozart, Beethoven, Schumann. Possivelmente a mais conhecida transcrição do célebre coral Jesus bleibet meine Freude, (Jesus Alegria dos Homens) da cantata nº 147 de J.S. Bach, tenha sido a da ilustre intérprete. Tantos outros revisitaram o coral, mas a versão da pianista traduz a síntese de procedimentos, sem qualquer ênfase a mais. O célebre pianista e professor russo Alexander Siloti (1863-1945) realizou transcrições de obras de vários autores. Aquelas dedicadas aos Prelúdios para órgão do Kantor tiveram enorme guarida nas fronteiras da metade do século XX e inúmeros intérpretes gravaram o Prelúdio para órgão em sol menor.

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A ligação de Wilhelm Kempff (1895-1991) com J.S. Bach é atávica. Seu pai foi organista, seus familiares músicos. Cristão de fé intensa, desde miúdo Kempff conviveu com o universo bachiano em seus aspectos essenciais voltados ao culto religioso. Ainda criança, ficaria indelével o encontro mágico que teve com o grande músico do período, Ferrucio Busoni, pianista, compositor e pensador que realizaria revisões e transcrições de obras do Kantor. Do notável mestre italiano, o pequeno Wilhelm que fora com seu pai a fim de tocar e dele receber sábios conselhos, ouviria: “Você percebe, ‘nosso’ órgão (referindo-se ao piano) tem somente um teclado, mas na verdade tem muitos. Sou mesmo herético ao pretender que a maioria dos prelúdios e corais de Bach se exprimem melhor sobre nosso piano atual que sobre o órgão, bem mais possante e maciço para essas jóias musicais”. E Kempff comenta em suas memórias (Cette Note Grave – Les Années d’Apprentissage d’un Musicien, Paris, Plon,1955): “E suas mãos voavam sobre o teclado, a fazer ressoar o Prelúdio do coral ‘Regosijai-vos todos, irmãos cristãos’. Quando o mestre terminou, só consegui inclinar a cabeça, em completo silêncio”. O pai de Wilhelm, ao término da execução desse coral transcrito para o piano por Busoni, afirmaria: “Nunca ouvi Bach ao órgão como hoje ao piano. Se houvesse um dia mais homens dessa estirpe, os simples virtuosos e os autômatos do piano desapareceriam por completo”.
A tradição que levaria o excelso pianista Wilhelm Kempff a se notabilizar na interpretação de obras de J.S. Bach, Beethoven, Schubert e Liszt, fê-lo um dos sensíveis compositores a transcrever corais do Kantor. Um dos mais expressivos, Wachet auf, ruft uns die Stimme (Despertai, as Vozes Ordenam), adquire na transcrição de Kempff a aura da inefabilidade.
Felizmente, pouco a pouco pianistas voltaram a interpretar transcrições de mérito. Traduzem essas versões período fundamental da trajetória dos gêneros musicais e merecem, com toda a justiça, a revisitação. Enriquecem o repertório.

Clique nos links abaixo para ouvir as transcrições de obras de J.S. Bach, com J.E.M. ao piano. Gravações realizadas em Müllem, Bélgica.
Bach-Hess: Jesus Alegria dos Homens
Bach-Kempff: Prelúdio-Coral “Wachet auf, ruft uns die Stimme”
Bach-Siloti: Prelúdio para Órgão em Sol menor

Traditionally transcription is the musical counterpart of literary translation. It prevailed particularly during the Romantic period. Wilhelm Kempff, the renowned German pianist and composer of the XXth century, prepared a number of Bach transcriptions and wrote a captivating book on his own early years as a music student. In the book he describes how he listened in fascination to the great Italian pianist Ferruccio Busoni playing his piano transcription of a piece by J.S.Bach originally written for organ.