Horizontes Abertos às Gerações
Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
Eugénio de Andrade
Desde Março de 2007, rememorar o passado tem preenchido posts. Faz parte da existência olhar o presente, vislumbrar passos a serem dados, mas também revisitar mentalmente caminhos trilhados. O regresso às lembranças registradas e às leituras que permaneceram apenas dimensiona a apreensão do todo de uma vida. Somos forjados nesse gigantesco acúmulo que, ao final da trajetória, deverá resultar na interação completa dos tempos de maneira harmoniosa, ou demonstrar que certas sendas levaram a impasses, dependendo de nossa atitude frente à vida, ou até do imponderável.
A geração a que pertenço cresceu sob égides desconhecidas ou difíceis de serem entendidas pelas que a sucederam. No quesito leitura, a formação dos pais pode ter sido determinante à qualidade dos livros. Se interessados, sabiam como entusiasmar os filhos nessa mágica viagem que os volumes proporcionam. Não havia distrações ditadas pela tecnologia em veloz aceleração, o que permitia ao jovem concentração maior nas poucas alternativas existentes. E o livro preponderava.
Estou a me lembrar das coleções que ganhei de meus pais, mercê da evolução pianística paulatina a causar guarida no coração dos dois. Serviam de estímulo aos progressos alcançados pelo adolescente. Sabiam qual orientação dar, não se esquecendo contudo de preferências individuais de cada filho. Foi assim que recebi O Mundo Pitoresco em nove volumes, que me abriu a janela geográfica do planeta (vide Leituras sobre o Himalaia (I) – Origens do Fascínio, 07/12/07), Os Doze Trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato em doze fascículos e, nessa ampla visão enciclopédica, o Thesouro da Juventude em 18 substanciosos compêndios (Estados Unidos da América do Norte, The Colonial Press. Inc., s.d. Distribuído no Brasil pela W.M.Jackson, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, 5.904 págs.). À Introdução, o insigne Clóvis Bevilacqua escreve: “ É, portanto, o Thesouro da Juventude uma biblioteca apurada, escolhida e condensada, onde se acham as noções essenciais das ciências, os conhecimentos de utilidade geral, as artes e a moral, e que resume e substitui uma dispendiosa e vasta, que muito poucos podem adquirir, e menor número ainda consegue ler”.
A obra é realmente um tesouro. Atendia às mais variadas áreas do conhecimento, a possibilitar, inclusive, a precoce escolha de uma profissão pelo adolescente que frequentava a leitura dos compêndios ricamente encadernados. Cada um tratava harmoniosamente de várias categorias, prioritariamente denominadas livros. A fim de não se tornar cansativo, cada seção não se exauria de uma só vez, mas era intermediada por todas as outras. Dessa maneira, o retorno a segmento já apresentado pressupunha a visita progressiva a todos os outros “livros”, ou o encontro mais adiante com a categoria de interesse naquele momento. Estruturava-se a divisão nos seguintes compartimentos: O Livro da Terra, O Livro da Natureza, O Livro da Nossa Vida, Os Livros do Velho e do Novo Mundo, Cousas que Devemos Saber, O Livro dos “Porquês”, Homens e Mulheres Célebres, O Livro dos Contos, Cousas que Podemos Fazer, O Livro das Bellas Acções, O Livro da Poesia, Os Livros Famosos e O Livro das Licções Attrahentes. Todos os segmentos apresentavam-se em doses homeopáticas, distribuídos pelos 18 compêndios. Se as poesias escolhidas mantinham-se quase sempre na íntegra, o mesmo não acontecia com os Livros Famosos ou o dos Contos, apresentados resumidamente, mas a estimular o jovem leitor ao conhecimento da obra na sua abrangência. Nos títulos O Livro da Terra, O Livro da Natureza e O Livro da Nossa Vida, deparávamo-nos não apenas com o universo e seus mistérios, assim também com todas as implicações da origem, formação e sedimentação do planeta – mares, rios, águas subterrâneas, minérios, fauna, flora. O Thesouro… aguçava o conhecimento da história e da geografia através dos Livros do Velho e do Novo Mundo – apresentados separadamente. Exemplos dignificantes ficavam reservados aos Livro das Bellas Acções e Homens e Mulheres Célebres. Muitas das atitudes perante à vida não teriam sido influenciadas por exemplos representativos? Nos segmentos: O Livro das Licções Attrahentes, O Livro dos “Porquês” e Cousas que Podemos Fazer, aprendemos lições teóricas e práticas que serviriam para a vida. Estou a me lembrar que, nesse último compartimento, minha mãe disputava a leitura quando algo referia-se às prendas domésticas.
O ilustre economista Roberto Macedo escreveria uma sensível crônica com o título O “Thesouro da Juventude”, publicada em O Estado de São Paulo (30/12/1999, pg.2), a relembrar os efeitos duradouros que a obra teve sobre sua formação humanística. Comenta “Seja por interesse ou porque na época não havia muitas alternativas, particularmente as audiovisuais que hoje tanto atraem a juventude, devorei quase todos esses livros e devo muito a eles”. Creio que para todos aqueles que tiveram o grande privilégio de contar com essa extraordinária coletânea, lendo-a preferencialmente, marcas indeléveis permaneceram, mercê da diversidade das áreas abordadas em textos claros, objetivos, sintéticos, mas sempre a provocar o aprendiz da leitura.
Minhas filhas ainda chegaram a consultar os tomos, que estavam a conhecer outra geração. Entretando, a coleção não resistiu à geração das netas, pois a grafia e fatos tantos que perderam a atualidade desviaram suas atenções para as tecnologias virtuais em evidência. Possivelmente as conexões cerebrais dessa novíssima geração, voltada aos contextos multidisciplinares e suas cargas em constante mutação, provoquem uma outra apreensão do mundo, de tudo o que nos cerca. Muitos dos contos “pueris” do Thesouro da Juventude, lidos hoje para os miúdos, deixam até de ser compreendidos. Todavia, os temas que ficaram congelados perante o caminhar diário da humanidade tornam-se motivo de nostálgica alegria para aqueles que conviveram com a coleção. Mencionemos dois: “ O aeroplano moderno, capaz de desenvolver uma velocidade de 300 kilômetros à hora”, ou “Podemos affirmar desde já que é impossível para um carro ordinário marchar sobre um só rail, porque as suas rodas estão collocadas d’um lado e d’outro, duas a duas ou quatro a quatro, nas duas extremidades de cada carruagem, precisando pois de dois rails para se apoiarem”. Conceituações hoje “ingênuas”, mas que ajudaram gerações a entender transições que se processariam com o desenrolar do tempo.
Conservei intacto o meu Thesouro e é sempre com carinho que observo esses velhos tomos repetidamente visitados durante minha formação. Foi em momento de descontração que consultei-o e a idéia germinou. Lombadas amareladas pelo passar das décadas, afagadas pelas mãos do adolescente que eu fui, mas que não abalaram sua estrutura, tampouco apagaram as inscrições douradas. Enciclopédia envelhecida, mas a revelar que houve carinho a protegê-la. Como a obra redigida data de meados dos anos 30, os episódios da história, comprovadamente “atuais” do período, proporcionam-me, ao revisitá-los, prazer especial. Transmitir aos meus leitores esse afeto faz-me relembrar o passado, que abriu as portas para o desvelar do grande enigma que é a existência. A depender de nossa intenções, podemos, apesar de tantas distorções, entendê-la como maravilhamento.
Comentários