Interpretação de uma Charge
Se o acaso te fizer conhecer três homens das ruas,
certamente eles terão algo a te ensinar.
Confúcio
Luca Vitali é ouvinte paciente. Quando entendo determinado tema do interesse do amigo, comunicamo-nos e vamos ao Natural da Terra tomar um curto. Leio pausadamente o post da semana. Luca, atento, pensa por vezes em imagens e a criação vem, sem eu nada pedir, via e-mail. É uma alegria ter seus desenhos a ilustrar meus textos.
Desta vez, deu-se o contrário. Instigado por outro apelo, sugestão de uma nossa amiga virtual para possível ilustração de um livro, realizou um desenho daquilo que ele entende por Justiça. Vi seus traços firmes e disse-lhe apenas que se tratava de forte e irreverente interpretação. Poderia pensar num futuro post? Achou graça e concordou, pois generosidade faz parte de seu cotidiano. São tantos os deficientes físicos que se realizaram a partir de seus ensinamentos artísticos ! Tema futuro, sem dúvida.
Várias corridas pelas ruas levaram-me a pensar. O desenho não saía de minha mente. Escrevia posts após reflexões, mas a charge de Luca continuava acesa em meus pensamentos. Traduzia aquilo que também passei a aceitar como integrante de surdo clamor existente no cidadão comum, longe das pesquisas, tantas vezes comprovadamente falhas. Sob aspecto outro, refletiria o desenho uma quimera, pois o acesso à Justiça mostra-se para o homem do povo, aquele dos transportes coletivos abarrotados, das longas jornadas de trabalho, da ausência de assistência médica, da absoluta impossibilidade de ter segurança, uma lâmpada apagada num túnel sem fim. Comprovadamente sabe esse cidadão que transita pela cidade que, se cometer algum delito, ou buscar reivindicar direitos, terá não apenas imensas dificuldades para inteirar-se das tramitações pertinentes, como estará à mercê de advogados, nem sempre com méritos, e sem o prestígio de alguns luminares que conseguem, através de argumentações mais embasadas ou da aura imbatível, defesas sustentáveis para casos complexos.
Nos dias que se seguiram ao curto com Luca, indaguei a várias pessoas se acreditavam na Justiça brasileira. Diria que, de vinte e tantos questionamentos para uma classe média a obedecer nuances, a resposta veio sempre instantânea, o não sem titubeio. Apenas uma exceção, um a se dizer advogado que se limitou a sorrir ironicamente. O mais contundente entre os negativistas, rosto entre milhões d’outros, disse que o santo caíra do altar. Quis saber o que queria dizer. Respondeu-me que meses atrás assistira pela televisão a uma sessão do Supremo Tribunal Federal. Houve discussão de tão baixo nível entre ilustres Ministros da Suprema Corte que sentiu vergonha. Um filho seu que se preparava para vestibular de Direito, ao ver a cena disse ao pai que estava a desistir naquele instante e que buscaria outra opção. Perguntei-lhe se realmente desistira. Com sorriso que transparecia resignação, retrucou “Ele e eu. Fará Economia e eu desisti de acreditar na Justiça que chega a esse nível em nosso país”. Emudeci. Mais do que o lamentável episódio ocorrido entre dois respeitados representantes de nossa Corte Suprema, calou-me o fato de que possível vocação de um jovem lhano – a tudo indicar pela atitude – tenha sucumbido ao vislumbre de um destempero. Decisão sem retorno, pois a partir de exemplo extremo. Mais ainda apreendi a mensagem de meu dileto amigo desenhista e pintor.
Luca teria captado algo patétito. Compreendeu, como artista, a realidade que parece ser sedimentada, sem condições de melhora. Creio que a mídia, a denunciar tantos escândalos quase que todos os dias, sem a menor possibilidade de resultados que incriminem culpados, tenha propiciado àqueles com o mínimo de esclarecimento o descrédito pelo nosso Poder Judiciário. Escândalos do Congresso Nacional e crimes de toda ordem, amplamente divulgados, repercutem em todo o país, sem punições para as figuras conhecidas envolvidas. Se elas acontecem, são quase sempre tênues, ou a paliativa prisão domiciliar. Ratificam para o homem que transita pelas ruas a desconfiança e o desalento. A impunidade proclamada pelos meios de comunicação mostra-se acentuada para aqueles que têm recursos para pagar honorários a causídicos renomados e convincentes. Fiquei entristecido com o resultado da minha simples pergunta. E nossas doutas cortes, em todas as instâncias, têm muitos dos mais brilhantes cérebros jurídicos do país, que lá chegaram através de méritos, seja por difíceis concursos, ou indicações políticas a partir de serviços prestados ao país.
Numa outra visão, aquela de um pobre sentenciado que conheci em Prados, Minas Gerais, está a apontar a absoluta diferença quanto aos julgamentos. Participei, entre os anos 80-90, de alguns Festivais de Música nessa pequena e bonita cidade, perto de Tiradentes. Ao lado da casa onde fiquei hospedado há a prisão e um só preso ocupava a cela. Conheci-o, pois durante o dia deixavam-no lavar um ou outro carro, e o sentenciado angariava alguns trocados. Moradores diziam que o rapaz, realmente bem simples, tinha boa índole, daí esse afrouxamento durante algumas horas. Quando em um bar bem típico, onde fui tomar café requentado, perguntei a um pradense qual a causa da punição e qual a pena a ele infringida, recebi como respostas: “roubou um saco de batatas e foi condenado a cinco anos de reclusão”.
A ilustração de Luca Vitali alusiva à Justiça, uma charge a considerar diversos aspectos por ele interpretados em traços que fazem parte de seu idiomático, traduz muito do que se ouve nas ruas a respeito do Poder Judiciário. Luca auscultou-se. Esse ouvir interior não seriam seus acúmulos silenciosos frente ao que todo cidadão também ouve, lê e vê diariamente?
A Justiça é representada com venda nos olhos em estátua grega. Essa venda teria origem no século XVI e representaria a isenção necessária nos julgamentos. Simboliza a Justiça “cega”, sem mácula, imparcial. Contudo, venda nos olhos pode pressupor sua retirada, o que tornaria injusto qualquer juízo, pois doravante a pender para uma das partes. A interpretação da charge de Luca mostra-se transparente. Ele idealizou a Justiça realmente cega e a sua balança só teria um prato para aferição e a suportar um Código, daí ter utilizado velho medidor tão comum nas feiras de antigamente. Sequer pensou na balança de dois pratos, equilibrada, isenta. Cego tem geralmente a guiá-lo cão fiel, mas Luca preferiu pensar numa raposa também sem a visão como guia e um gato como “observador”. A cegueira conduzida pelo estranho instinto da raposa. A espada a simbolizar o poder da Justiça, que sem bainha pressupõe a presteza decisória na tradicional representação, estaria substituída pelo guia, a manter junto a si a raposa. Notório entender que o preceito latino suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu) estaria a sofrer tendências tergiversantes.
Os Poderes Executivo e Legislativo têm dado exemplos não dignificantes, mercê em parte da enorme diversidade de formação de seus integrantes eleitos pelo povo. Alguns bons governantes existem, assim como bons legisladores. Há quantidade deles que servem aos Municípios, Estados, União. Porém, quantos não são aqueles que, a exemplo das ervas daninhas, têm permanentemente escândalos divulgados? Tendem a macular nossas Instituições e, entre elas, o Poder Judiciário. Salvaguarda fundamental deste país, graças, inclusive às biografias de seus membros, o Poder Judiciário deveria, sine qua non, ser o baluarte da credibilidade para o cidadão. É o descrédito pela Justiça, assinalado nesse minúsculo questionamento que realizei, motivo de preocupação? É-o, na necessidade absoluta e imprescindível do respeito que todos nós deveríamos ter pelo Poder Judiciário em sua abrangência, a reforçar, inclusive, a auto-estima do brasileiro. Não podemos, sob qualquer pretexto, perder a confiança na Justiça, mas ela tem de apresentar resultados que levem o cidadão a acreditar.
Certamente, o polêmico desenho de Luca Vitali tenderá a suscitar as mais variadas interpretações em todas as direções. A charge do amigo tem a força expressiva e criativa do artista e seus mistérios insondáveis. Por mais que haja objetividade na ilustração, um conteúdo oculto está por trás. Não seria a forte diminuição da credibilidade de nossa Justiça junto ao cidadão comum fato para a mídia dimensionar, o povo criticar, o artista idealizar, e eu abordar neste post? Houvesse a total imparcialidade a considerar o preceito constitucional de que todos deveriam ser iguais perante a lei, existisse a presteza nos julgamentos, e certamente a charge poderia ser outra e o presente post não teria razão de ser escrito. Arte, Luca a tem nas veias e acredito eu, não fosse o seu desalento, que é o de parcela majoritária esclarecida da população do país frente à Justiça, haveria tantos outros caminhos criativos para a sua pena percorrer.
Looking at an illustration made by my friend and graphic designer Luca Vitali, portraying the symbol of Justice as he sees it, I was led to reflect on the issue of dispensation of justice in Brazil and on the reasons why the common man has always had a distrust of our judiciary, tending to regard it as an exclusive reserve of the elites.
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