A Pianista Zhu Xiao-Mei e os Segredos Desvelados

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Meus relacionamento com as pessoas eram puramente
animais, automáticos, maquinais…
Sim, eram de alguma maneira histórias de animais !
Que me compreendam hoje,
pois não me é mais possível contar todo o meu passado filosoficamente,
olhando do alto, com serenidade,
os bons velhos tempos de horror e de absurdos.
Agradeço ao céu ter-me tirado do inferno,
como se fosse o desenho indecifrável da Providência.

György Cziffra

Trabalha-se a argila para se fazer vasos,
mas é do vazio de seu interior
que depende o seu uso.

Lao-Tzé

Quantos não foram os artistas, escritores, intelectuais que viveram as situações as mais dramáticas em campos de concentração ou de “reeducação”. Os regimes dirigidos por títeres não têm clemência, e no intuito de sedimentar ideias totalitárias, tantas vezes proclamadas democráticas, impõem aos cidadãos as maiores agruras. Alexander Soljenítsin (1918-2008) denunciaria as repressões em campos de prisioneiros soviéticos, e o conjunto de sua obra, incluindo-se o Arquipélago Gulag, render-lhe-ia o Prêmio Nobel. Wladyslaw Spilman (1911-2000) escreveria a narrativa Morte de uma Cidade, décadas após reeditada com o título O Pianista. Conta a sua história nos guetos de Varsóvia durante a Segunda Grande Guerra e o seu instinto de sobrevivência. Roman Polansky dirigiria o premiado filme O Pianista a partir do dramático relato. György Cziffra (1921-1994), telúrico e extraordinário pianista húngaro conheceria durante longo período as maiores adversidades e o contato permanente com a morte em campos de prisioneiros nazistas e comunistas, relatando-os em livro (Des Canons et des Fleurs. Paris, Robert Laffont, 1977, 291 págs.). Lilly Krauss, notável pianista austríaca sofreria em campo de concentração nazista. O bailarino Li Cunxin narra também sua história plena de tribulações em Adeus, China – O Último Bailarino de Mao (Brasil, Fundamento, 2007, 400 págs.). Há uma tendência mórbida dos senhores da guerra nessa perseguição às artes, à liberdade de expressão, ao livre pensamento, às comunicações independentes, às ciências ou, paradoxalmente, ao incentivo ao desempenho excepcional de alguns como forma de propaganda política. Assim aconteceu no Terceiro Reich, na União Soviética, na China e em Cuba não apenas para intérpretes e bailarinos de exceção, como para atletas fantásticos. Entretanto nem todos tiveram a mesma sorte e sucumbiram aos horrores, como os músicos levados pelos nazistas ao campo de Terezin, ou os milhões deportados para a Sibéria, ou ainda aqueles destinados ao terrível paredón. Ditadores e seus acólitos estão sempre à espreita. Aguardam apenas a oportunidade. E, hélas, periodicamente ela reaparece. Todo um rancor que parecia extinto ressurge e cidadãos aparentemente normais tornam-se ferozes, a serviço dos títeres. Vítimas da Revolução Cultural na China de Mao Tsé-Tung pouco a pouco vão tendo a coragem de expor sofrimentos incomensuráveis.
Zhu Xiao-Mei é pianista chinesa. Há excepcionalidades em vários aspectos. Escreveu sua saga que vem somar às precedentes mencionadas (La Rivière et son secret. Paris, Robert Laffont, 2007, 330 págs.). Nascida em 1949, pertencia à família considerada de “má origem”, pois burguesa letrada. Já na infância, devido aos infortúnios provocados pelo regime comunista de Mao Tsé-Tung, sua família sofreria dificuldades. Pianista precoce, tem lá seus sucessos quando a estudar no Conservatório de Pequin. Aos 14 anos, já possui base sólida, mas uma brincadeira juvenil leva-a a júri coletivo. Vivia-se o período da terrível Revolução Cultural. As denúncias, estimuladas pelo regime, não perdoavam aqueles que se desviassem do Livro Vermelho de Mao, única leitura possível. Lavagem cerebral provoca uma sua carta em que se arrepende de ser indigna frente a Mao, traidora da Revolução, a entender serem seus pais de “má origem”. Zhu tinha apenas 14 anos! Incorpora a ideologia maoísta e torna-se, sempre temerosa, uma jovem revolucionária. Tem crises não reveladas publicamente, pois entendia que tudo teria de ser feito a seguir preceitos para que a Revolução Cultural vingasse, mas dúvidas quanto aos procedimentos a deixavam perturbada. Assiste a seus mestres – alguns deles idosos – serem humilhados e surrados no pátio do Conservatório pelos jovens da Guarda Vermelha. Entende, nesse turbilhão de incertezas e confusões interiores, que excessos estavam a ser perpetrados. Acusados de terem propagado a música ocidental, de J.S. Bach aos mais modernos, professores perderiam tudo e seriam desterrados para campos de reeducação. Outros suicidaram-se nesse período de desvario absoluto. Todas as partituras do Conservatório foram queimadas, pois traduziam a cultura ocidental decadente e, portanto, distante da classe proletária. Lembrar-se-ia “das execuções sumárias, dos cadáveres sobrepostos no anexo do Conservatório”. Com coragem, Zhu Xiao-Mei observa que houve longo tempo em que acreditou na Revolução, tão grande a pressão exercida. Encaminhada para campos de reeducação, permanece cerca de dez anos longe da família – dispersa em outros campos -, da prática da música e a passar as maiores agruras e humilhações, ainda a acreditar na Revolução. Colegas e outros estudantes partilharam momentos difíceis, onde não faltavam a denúncia coletiva diária e a leitura do Livro Vermelho de Mao, atividades realizadas após dura labuta nos campos agrícolas, quando imundos e fragilizados. Só após essas terríveis sessões o infortunado tinha direito à parca alimentação e à mínima higiene pessoal. E, numa declaração de amor à música, escreve “A Revolução Cultural estava a fim de nos tirar todo o sentido de humanidade e isso não foi possível. No fundo de nós mesmos existia um lampejo de humanidade, esse que os regimes totalitários que subestimam as potencialidades do homem, esquecem sempre, infelizmente para eles. É esse lampejo que a música trouxe de volta”. Comentaria: “Mao percebeu o poder da arte e principalmente da música sobre o povo. Ele sabia que os artistas eram perigosos, questionando sempre o real, querendo sempre mais liberdades. Esse o motivo para os atacar, a razão pela qual deixava sua esposa se apropriar da arte através de seus Yanbangxi. Na verdade, Mao considerava o saber em geral como perigoso: seu obscurantismo organizado, sistemático, extremista é testemunho.”
As vicissitudes sofridas pela pianista levaram-na a vários traumas que a acompanham. No último período em campo de reeducação conseguiu “burlar” incultos guardas e recebeu de sua mãe o seu velho piano da infância. Cordas quebradas eram substituídas por arames e J.S.Bach, Beethoven e outros, no dizer de Xiao-Mei, eram ouvidos pelas autoridades como se fossem música chinesa revolucionária. A ignorância deles, para resignado prazer da pianista, resultaria na possibilidade de estudar. Reiteradas vezes menciona a indecisão e a dúvida como integrantes de seu pensar. Ao sair da China para os Estados Unidos, depois de enormes tribulações, certezas em relação à música antagonizavam-se às dúvidas quanto à sobrevivência. Nesse país trabalhou como doméstica, faxineira em restaurante e mais outras atividades, a habitar em tantas casas de imigrantes que a acolhiam. A fim de obter o green card, casa-se por conveniência. Estuda em Boston, mas seu instinto leva-a a Paris. Obteria mais tarde, após difíceis tramitações, o passaporte francês. Hoje é reconhecida internacionalmente como pianista e professora do Conservatório Superior de Música e Dança de Paris. Seus pais e suas irmãs estão sempre em sua mente, nesses constantes deslocamentos. Retornaria à China mais de uma vez, mas com as salvaguardas da diplomacia internacional.
Quantos não são os momentos em que sente insegurança frente à vida prática? Num outro contexto, em muitas oportunidades comenta com ênfase que apenas a música livrou-a do naufrágio absoluto. O livro tem como epicentro repertorial as Variações Goldberg de J.S. Bach. A grande revelação. No entender de Zhu Xiao-Mei, trata-se da maior criação para teclado. Percorre o mundo a interpretá-la, entre tantas obras do repertório consagrado. Tão grande a empatia da artista frente à monumental composição, que se torna dignificante lê-la descrever emocionalmente da Ária às variações. Pormenoriza-se na última, Quodlibet e na reprise da Ária, quando Bach finaliza a obra. Dir-se-ia que Xiao-Mei percorre seu próprio caminho ideal, sem máculas ao descrever as Goldberg-Variationen. No Youtube-vídeos pode-se ouvir a grande criação do Kantor interpretada pela pianista chinesa. A partir da Ária, apresentada de maneira singular, pois imbuída da maior reflexão, capta-se parcela da profunda identidade de Zhu Xiao-Mei com as Goldberg… e com a vida. O gestual da pianista é econômico. Observa, a partir de conto chinês a respeito de um pintor e sua obra, a fim de exemplificar a inocuidade do gesto exagerado ao interpretar uma composição: “…ele pintou sobre o solo uma serpente de um realismo tal que o réptil parecia vivo. Uma pessoa ao passar pela rua, pisou na pintura e começou a gritar: ‘fui picado pela cobra!’ Os transeuntes se aproximaram para ver o que acontecera. Todos também pisaram exclamando: ‘Jamais vimos uma serpente tão bem pintada’! Logo, o povo conheceu a criação do artista. A fim de torná-la mais bela, o pintor colocou patas na cobra, mas ao perceberem a serpente assim configurada, os cidadãos disseram: ‘Que animal ridículo’! E o pintor caiu no esquecimento”. Em outra imagem significativa, a sugerir a introspecção frente à composição: “Para se ver o fundo de um lago, é necessário que a superfície da água esteja lisa e calma. Mais ela é tranquila, mais transparente é o fundo”.
A leitura de La Rivière et ses Secrets, ao revelar a perene insatistação da artista frente à perfeição e ao gestual inócuo refletido pelos holofotes, vem apresentar a essência essencial do que deveria ser entendido por interpretação sincera. Escreve: “Sinto-me incapaz de atingir a perfeição que eu sonho. Como tantos outros intérpretes, estou impregnada por essa impotência. Como Richter, que no final da vida diria ‘Eu não me amo’. A sabedoria seria certamente reconhecer que a perfeição não existe. Os chineses entendem bem esse axioma, quando introduzem um defeito num bordado ou na caligrafia, considerando que o defeito tornará a obra mais bela ainda. Os iranianos fazem o mesmo em seus tapetes para testemunharem que apenas Deus é perfeito”.
Zhu Xiao-Mei lega-nos um testemunho de fidelidade à música, sem jamais traí-la. Seu livro merece ser lido. O conteúdo de La Rivière et son Secret faz melhor compreender a força criativa da artista, a lutar no desespero, mas na confiança, contra a bestialidade humana. A obra foi traduzida para o português: O Rio e o seu Segredo (Guerra & Paz).

In this post I give my view of the book “La Rivière et Son Secret”, the amazing and true story of the Chinese pianist Zhu Xiao-Mei. We follow her as a young girl in China, her efforts to go on with her piano practice during the Cultural Revolution, the years in a working camp. In 1979 she managed to leave China for the US and today lives in Paris. Now internationally acclaimed, she is an example of a strong female character who never gave up her dream.