Artista da Hiper-Super-Ação
Você não se sente livre sendo filho,
você não se sente livre sendo mãe.
Livre é um caminho crítico,
por felicidade na liberdade.
Luca Vitali
Em posts anteriores, referi-me ao emprego inadequado de certos termos. Outros mais, à força da reiteração, banalizam-se e não mais correspondem à sua real acepção. Incluiria nessa categoria a palavra superação. Igualmente mencionada ad nauseam em propagandas e nos meios de comunicação, raras vezes adequa-se ao verdadeiro sentido que deveria ter. É um fato com que nos deparamos a todo instante. Em qualquer das atividades humanas há aqueles que conseguiram a superação após vicissitudes de toda a ordem, assim como há a sua “aparência” em tantas mais figuras divulgadas pela mídia. Todavia, legião de verdadeiros heróis poderia ser citada. Felizmente esta existe, a fim de que exemplos dignificantes sirvam como faróis para a trajetória do homem. Já mencionei no post anterior Edson Dantas, bi-campeão da Maratona de Nova York na categoria amputados, como cidadão forjado no destemor e que soube superar o que poderia parecer impossível.
Há contudo uns poucos, raríssimos, que ultrapassam a aplicação do termo superação. Incapacitados para a vida e dependendo inteiramente de ajuda diuturna, representam esses seres extraordinários exemplos para todos aqueles que, pelos mais variados pretextos, tendem a viver na lamentação. Quando a fé inabalável – a que remove montanhas – tem a alimentá-la a força criativa sedimentada pelo tempo, surge o herói verdadeiro, o demiurgo que encontrará seu espaço e será paradigma para todos os mortais. Ergue-se sob a égide da Hiper-Super-Ação, figura acima das tão decantadas superações, válidas, inquestionáveis, mas apenas superações.
Através de relatos pungentes de Luca Vitali, habituara-me a ouvir a saga de Evilásio Luiz Cândido, um vitimado pela paralisia cerebral. No inícío dos anos 90, o adolescente, assistido pela Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), com extrema dificuldade externou a Luca Vitali o seu desejo de pintar, de mostrar ao mundo as aspirações acalentadas às quais o destino parecia opor-se. Foi Luca que, ao conhecer o drama de Evilásio, indicou-lhe a senda da luz, aquela que, ao ser percorrida, pode explicar a passagem do homem pelo planeta. Torná-lo exemplo. Apreendeu o mestre que a vocação de Evilásio seria a de pintar, sonho aparentemente irrealizável. Mas como ajudar alguém que em cadeira de rodas, sem poder fazer uso dos membros superiores e inferiores, com sérios problemas de coordenação da fala e de outros movimentos corporais, inclusive da cabeça e da boca, a encontrar realização na pintura? A AACD já adaptara uma tiara, a fim de que Evilásio pudesse escrever. Luca adaptou à tiara um pincel. Isso se deu em 1992. Magia. Tiara do desvelamento, possibilidade única para que o imaginário rico de Evilásio pudesse vir à superfície. Tiara da esperança, da concretização da luz. Pincel, instrumento a fixar os mistérios da mente. Houve momentos de desalento por parte do discípulo, não relacionados ao desejo final, mas às próprias dificuldades sobre-humanas do aprendizado. A técnica lhe foi ensinada com paciência e relação de afeto: planos, cor, perspectiva a partir dos tons claros aos escuros, entrada da luz e das sombras, a noção das distâncias, harmonia, dimensões dos quadros, do pequeno à grande tela, misturas, limpeza de pincéis. Evilásio dedicou-se com afinco, aprendeu o métier e hoje, amparado pela dedicadíssima mãe Dilza – entre outras tarefas, é ela que diariamente carrega o filho ao subir os 12 degraus que levam ao quarto de dormir -, pela irmã Juliana e a ter como verdadeiro anjo protetor Eliana Pereira Bento, carinhosa especialista a cuidar dessa difícil comunicação de Evilásio com o mundo que o circunda. Eliana é fonoaudióloga e tem acompanhado o desenvolvimento de Evilásio há longos anos, não apenas a solucionar problemas do cotidiano, mas também estabelecendo contatos com os que se interessam por arte. Frise-se o apoio que o artista recebe até o presente do Núcleo Assistencial Irmão Alfredo.
Luca confessou-me que jamais interveio nos desideratos do discípulo. Ele é o mestre a guiá-lo, tão somente. A temática criativa de Evilásio passaria a brotar como o magma das profundezas da terra, e o interior singular do pintor tem emergido em deslumbramento da cor, em apelo à vida e à compaixão. Como não pensar no Douanier Rousseau (1844-1910) e suas florestas tropicais, fauna e flora, oriundas da imaginação?
Impressionaram-me pinturas brotadas não apenas do espírito criador, mas de uma reflexão concernente à vida, seus embates e conflitos, mas igualmente dessa incessante busca da pureza do espírito e da luz como almejo final. Se pinturas como Flora e Primavera traduzem um universo que o homem teima em extinguir; se Recanto leva-o a pensar num abrigo tranquilo para um Evilásio morador em casa simples e prestes a vê-la demolida pelas máquinas impiedosas da modernidade; se Israel, representado pela árvore enroscada por galhos que a sufocam, estaria a lembrar um país sem paz duradoura, mercê de intolerâncias; uma outra árvore, aquela que conduz o olhar à luz em Iluminada, não seria a confissão desse artista que tem como fim único a aspiração do bem e do belo? Não representaria a Ponte, a transição do “impossível” a almejar a plena humanidade?
Quis conhecer Evilásio. Sua figura, constantemente exaltada com emoção por Luca, contagiou-me. O amigo agendou esse encontro. Ao leitor diria que Evilásio é um ato de fervor. Entrevistei-o, a questionar-lhe os porquês da opção, a relação com a vida, possíveis desencantos pelo impedimento quase que absoluto de participar do cotidiano de todos. Suas necessidades básicas têm de ser acompanhadas. Tem alma pura e seus sentimentos revelam grandeza de espírito. Evilásio ultrapassa qualquer julgamento a respeito da superação. É ele essa encarnação da Hiper-Super-Ação, pois as vicissitudes imprimiram em seus 33 anos de existência o sentido do espírito solidário, do amor vertido nesse pincel preso à tiara que pouco a pouco traduz o que sente em cores vivas, a natureza em festa ou em paz, os miúdos em seus folguedos. Deles participa na imaginação e no olhar, sem jamais ter tido a oportunidade de fazê-lo fisicamente. Sente ternura pelas crianças. Ama a vida e a humanidade, sem quaisquer barreiras. Um iluminado.
Fiz-lhe muitas perguntas. Respondeu a todas, apesar da complexidade da fala. Pergunta: O que é liberdade para você? Resposta: É poder ir a qualquer lugar sem sair de minha cadeira de rodas. Apesar de todas as dificuldades, sou livre e viajo quando estou pintando e procurando as cores, que são a minha luz. P: Luz, indaguei? R: Sim, luz é coisa de Deus e eu me sinto um iluminado ao fazer o que mais amo. Realizar tudo sem medo de ser feliz e de poder sonhar. P: O Evilásio gosta da natureza e das crianças. Qual a razão dessas preferências? R: Amo a natureza, pois os grandes espaços me dão o sentido da vida e da liberdade. Amo as crianças, pois participo interiormente de suas brincadeiras. P: A natureza parece estar sempre em harmonia nos seus traços. Como você a recria? R: Eu sei que ela está lá. Televisão e livros mostram imagens que nunca conhecerei. A natureza que eu pinto, árvores, campos, é aquela que está dentro de mim. P: Há uma quase fixação em cenas do Natal, como demonstram seus cartões postais, que propiciam parte de sua subsistência. Seria fruto de sua infância difícil? R: Jesus e Natal representam uma coisa só. Sem o menino Jesus o que seria do Natal? P: E Luca em sua vida? R: Não tenho o que falar, só a agradecer pelo fato de ter acreditado em mim. Incentivou-me a ser o que sou. Mesmo quando está longe, ouço a sua voz me aconselhando. P: Sei que você gostaria de conhecer a França e que estuda não apenas francês, como português. R: Estudo para estar preparado. Francês com a professora Maria Lúcia Vaz Guimarães, mas também português, pois tenciono escrever um livro.
Eliana Bento Pereira ratifica as palavras de Luca Vitali. Para a fonoaudióloga, tudo é extremamente difícil para Evilásio, mas jamais o artista desiste. “Há uma força descomunal nesse ser humano que não conseguiria sobreviver sem atenção diuturna. Procura retribuir carinhos com o amor que suas pinturas traduzem.”
Observa-se que, para aqueles que superaram adversidades, geralmente a compensação acabará dando alento novo à vida. Para Evilásio, o impasse permanente está sempre a apontar ou para o naufrágio à espreita, ou para a absoluta impossibilidade física, com exceções da mente criativa e da tiara-pincel redentora. Para Evilásio, a hercúlea vontade de expor ao mundo a vocação artística, apesar dessa sofrida dependência, é inequívoca. A arte não trouxe a restauração física, tampouco a possibilidade do ir e vir. A pintura é para Evilásio a própria mensagem divina, a revelar ao homem a sua fraqueza ao lamentar-se seja qual for a situação. A paralisia de Evilásio que, paradoxalmente, tornou-o pintor e até digitador de um computador, é o sinal Superior dado a todos nós de que se amor e esperança houver, a redenção se dá. Evilásio não é apenas o ato de amor, mas também o estímulo vivo para os incapacitados físicos, a lição permanente para os que têm o privilégio de conhecê-lo.
Através do site www.projetoevi.org e do e-mail evicandido@gmail.com, pode o leitor ter acesso aos seus cartões de festas natalinas, aos calendários por ele idealizados e a sua pintura singular. Cenas do Youtube revelam parcela desse universo desconhecido por nós, razão de viver de Evilásio Cândido:
http://www.youtube.com/watch?v=dBBjr2SAeFU
Evilásio Cândido is a 33-year-old painter. What sets him apart from other artists is that he was born with brain paralysis and can only move his head and eyes. His severe disabilities make communication difficult, but he managed to express to the painter and graphic designer Luca Vitali his wish of learning to paint. It was so that Luca began to instruct him in the techniques of artistic painting, which he has learned with gigantic determination, working with the paintbrush attached to his forehead. This post tells a little of the story of this extraordinary human being, his thoughts, his art, his efforts to make something of his life, his refusal to give up, his permanent lesson of encouragement for those who have the privilege of knowing him.