Como não pensar em Santa Cecília?

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O santo se constrói sobre o homem.
D. Henrique Golland Trindade (Matt Talbot)

Minha fé inquebrantável
espera ainda muito…
muito mais.

Norberto de Moraes Alves (Quintal de Sonhos)

Era uma tarde de primavera em Lisboa neste último Maio. Estava a conversar com minha amiga de tantas décadas, Idalete Giga, em um café no Chiado. A certa altura, já lá não me lembro a razão, o tema abordado relacionou-se aos contos de nossa juventude. A puerilidade de tantos deles, que as ávidas leituras transformavam em maravilhamento. Chegamos à nova geração formada pela internet. Temáticas outras fizeram estiolar determinado gênero de conto. Aquele que acalentou sonhos, a partir de nosso imaginário, permanecia em nossa conversa como tênue luz a ser vislumbrada com afeto. Nem questionamos valores, apenas, nostalgicamente, constatamos fatos. Ao cair da noite deveria dar o primeiro dos dois recitais consagrados à música portuguesa na lendária Academia de Amadores de Música. Nem sei bem como surgiu o nome de Santa Cecília nessa conversa informal. Bastou a lembrança, e Idalete prometeu-me um conto que estava a ser amorosamente germinado em sua mente privilegiada. Lembrei à amiga que mantive sempre sobre meu piano de estudos uma estampa de Santa Cecília que me foi oferecida pelo saudoso D. Henrique Golland Trindade em 1954. O ilustre prelado, arcebispo de Botucatu, era meu padrinho de crisma. Gostaria Idalete que minhas netas sentissem esse clima perdido em histórias outras que não contos de nossa geração. Serenamente o texto chegou, mas apenas alguns dias antes de 22 de Novembro, dia consagrado à Santa Cecília, padroeira da música. Como outros temas armazenados em meu baú mental aguardavam o vir a ser, pois igualmente cronológicos, não foi possível inserí-lo na oportunidade. Sob outra égide, Natal sem música perde um rito de fundamento. Daí ter associado o conto de Santa Cecília à efeméride natalina. Ao frequentador assíduo de meus posts, apresento a singeleza que é o conto de Idalete Giga. Aqueles de minha geração poderão associar, através do texto da amiga, lembranças de infinidade de contos cristãos que povoaram nossa imaginação. E segue o meu voto profundo de paz, a todos os leitores, para essa que é a mais expressiva celebração da cristandade.

O sonho de Santa Cecília

Para o meu querido Amigo José Eduardo

“Roma. Corria o ano 222 da era cristã. As incontáveis loucuras, devassidão e crueldades do imperador Heliogábalo tinham chegado ao fim. Mas a este ser cruel sucedeu outro igualmente cruel e sanguinário – Alexandre Severo. O maior divertimento deste facínora era assistir ao martírio dos cristãos lançados aos tigres e leões no sinistro e malcheiroso circo de Roma. Sempre que os arautos espalhavam pela cidade a notícia do espetáculo preferido do imperador, de todos os lados surgia gente estranha correndo para o mesmo local – o circo. Alguns vestiam túnicas negras e usavam tatuagens diabólicas espalhadas pelo corpo, especialmente na cara e nos braços. Quando o imperador entrava, triunfante, no circo, ia sempre acompanhado pelas suas concubinas e escravas. O circo ficava a abarrotar de povo sedento do sangue de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes que eram devorados brutalmente pelas feras, enquanto o mesmo povo lançava gritos a exigir mais mortes e mais sangue de cristãos.

Cecília era uma jovem romana muito bela que pertencia à nobre família dos Soletem. Vivia na cidade de Roma com seus pais. Era cristã desde a infância e desde muito cedo revelou dons extraordinários. Conseguia ler na memória da Natureza. Via através de tudo o que era opaco. Entrava facilmente noutras dimensões e mundos paralelos. Tinha frequentes visões de Anjos e de outros seres misteriosos que a acompanhavam sempre que se juntava com os seus amigos nas catacumbas da cidade. Aqui rezavam todos, cantando os mais belos hinos e salmos de louvor a Deus, acompanhados com harpas, cítaras e liras. Também recolhiam bens entre todos e depois, na calada da noite, distribuíam-nos pelos mendigos espalhados por toda a cidade. Cecília era a mais forte. Nada temia. Cobria-se com uma túnica esfarrapada para poder passar por mendiga e não se cansava de percorrer as ruas mais sujas e sombrias de Roma, levando alimentos , palavras de carinho e curando as chagas aos mendigos e crianças abandonadas. Quando a noite caía, todos ansiavam por ela. Todos a amavam, mas ninguém sabia donde vinha e quem era esta jovem tão bela que parecia vir do céu. Por isso, uns chamavam-na ‘a deusa misteriosa’ e outros ‘o lírio branco’, por aparecer sempre com uma túnica branca.

Numa noite fria e chuvosa de inverno, quando Cecília regressava das suas caminhadas, os pais esperavam-na, ansiosos. Depois de a saudarem amorosamente, o pai dirigiu-se-lhe, um pouco receoso:
- Cecília, nossa querida filha, tua mãe e eu temos uma surpresa para ti. O nobre soldado Valeriano ama-te muito e deseja desposar-te. Por isso, prometemos preparar o vosso casamento na Primavera, quando os campos começarem a florir.

Cecília estremeceu ao ouvir as palavras do pai, pois já tinha prometido ao seu Anjo Shealiah que se manteria virgem. Porém, não querendo entristecer os pais, embora contrariada, aceitou casar com Valeriano. Casou numa tarde perfumada de Maio. Valeriano não cabia em si de contente. Estava muito feliz por desposar uma jovem tão bela e tão bondosa. No fim da festa, Cecília e Valeriano foram transportados numa pequena liteira até à sua villa situada na via Ápia. Ficaram ambos sentados no jardim da casa, silenciosos e contemplando as flores durante algum tempo. Foi então que Cecília, caindo de joelhos aos pés de Valeriano, falou-lhe de Shealiah:
- O Anjo Shealiah apareceu-me no próprio dia em que nasci, dizendo que vinha de outro Universo, de outra dimensão, mandado por Deus para me proteger da maldade das criaturas humanas.

Valeriano, ao ouvir Cecília, pensou que ela tivesse enlouquecido, pois não compreendia aquela estranha linguagem. Pensou tratar-se de outro homem e quis, de imediato, enfrentá-lo. Mas Cecília tranquilizou-o, dizendo-lhe que Shealiah não tardaria a aparecer a ambos. Antes que a noite descesse, Shealiah surgiu num raio de luz intensíssimo trazendo consigo duas coroas, uma de lírios e outra de rosas. Envolveu os noivos com a sua luz e disse-lhes:
- Cecília, recebe esta coroa de lírios brancos perfumados. E tu, Valeriano, recebe esta coroa de rosas perfumadas. Enquanto permanecerem sobre a vossa cabeça, nunca hão-de murchar e a vossa fé jamais perecerá. Os vossos corações são puros, por isso verão a Deus.

Depois de pronunciar estas palavras, o Anjo desapareceu. Valeriano ficou tão emocionado que caiu, chorando, aos pés de Cecília e converteu-se à fé cristã nessa mesma noite.
Quando Tibúrcio, irmão de Valeriano, soube da sua conversão, quis procurá-lo na sua casa para o humilhar e troçar dele. Antes, porém, de entrar no jardim de Cecília, viu uma luz muito brilhante vinda do céu que o envolveu e o fez parar. Então ouviu uma voz suavíssima que lhe disse:
-Tibúrcio, porque queres humilhar e perseguir o teu irmão? Toma esta coroa de lírios e rosas e vai para junto de Cecília e Valeriano, que te esperam.

Tibúrcio não queria acreditar no que estava a acontecer com ele, mas logo que a luz desapareceu, entrou, já completamente transfigurado, na casa de Cecília. Ao chegar, encontrou Cecília e o irmão, de joelhos, rezando. Abraçou-os com grande ternura, relatando-lhes o seu encontro com a luz que o envolveu e a voz misteriosa que acabara de transfigurá-lo.

Passaram-se alguns dias. A notícia da conversão dos dois irmãos chegou rapidamente aos ouvidos do imperador, que ordenou de imediato que os acorrentassem e os obrigassem a adorar a estátua de Júpiter. Como ambos recusassem, foram presos e decapitados no mesmo dia.
Cecília sabia que o imperador não a pouparia. Por isso, estava pronta para morrer. Acabou por ser presa por ter dado sepultura, no seu jardim, a Valeriano e Tibúrcio, abandonados na prisão onde foram decapitados. Na noite em que foi presa, o carrasco Almáquio, enviado pelo imperador, tentou tirar-lhe a vida, por asfixia, com vapor de água a ferver no Caldarium da sua própria casa. Mas Cecília resistiu a todo este tormento. Por fim, caiu exausta e adormeceu. Foi durante a mesma noite que teve um sonho extraordinário. Viu surgir do céu uma pequenina luz que, pouco a pouco, foi crescendo até se transformar numa lira de cristal. Cecília ouvia sons belíssimos, como se alguém, invisível, estivesse tocando este instrumento que lhe era tão querido, tão familiar e que aprendera a tocar na sua infância. De repente, ouviu pronunciar o seu nome :
- Cecília, Cecília, coração puro, lírio abençoado do céu, eu sou o Mensageiro da Música Divina. Deus transformou-me numa lira de cristal e enviou-me a ti para que me guardes no teu coração e na tua alma. Serás para sempre, a inspiradora dos músicos cristãos.

Quando acordou, Cecília viu diante de si Shealiah segurando a lira que aparecera no seu sonho. Mas a sua visão durou pouco tempo. Começou a ouvir pesados passos e pancadas brutais na porta da sua casa. Era de novo Almáquio e dois guardas, que vinham decapitá-la por ordem do imperador. Cecília ainda resistiu a vários suplícios. Nenhum dos três carrascos conseguiu decapitá-la, apesar dos golpes desferidos. Morreu a cantar o Salmo 91 (Salmo de louvor a Deus que governa o destino dos homens com Sabedoria e Justiça). Quando a ouviram cantar o Salmo, Almáquio e os dois guardas ficaram tão impressionados com a sua coragem e resistência que caíram de joelhos, pedindo-lhe perdão. Cecília ainda levantou a mão para os abençoar e exalou, pouco depois, o último suspiro. Os três homens, já convertidos, choraram junto do seu corpo transfigurado.

No momento da sua morte , passava junto do jardim de Cecília um grupo de crianças que andavam a mendigar pela cidade. Eram as mesmas que Cecília amara e das quais cuidara com tanto carinho. Ao olhar para o céu, as crianças viram três Anjos levando Cecília. O Anjo da Morte segurava-lhe a mão direita. Shealiah sustentava a coroa de lírios brancos sobre a sua cabeça transfigurada e o Anjo Mensageiro da Música segurava a lira que se unia e confundia com o coração de Cecília. Só as crianças puderam ver os Anjos e a alma de Cecília elevando-se suavemente nos céus. Só as crianças puderam ver a sua coroa de lírios e a sua túnica branca esvoaçando, iluminada como um sol. Só as crianças puderam ouvir os sons da lira que o Mensageiro da Música tocava, cantando ao mesmo tempo este hino:

Cecília, coração puro
Lírio do céu perfumado
Tu és o porto seguro
Deste mundo conturbado

Quando o Anjo ficou silencioso, as crianças reconheceram a sua ‘deusa misteriosa’ que agora partia deixando-os sós. Então, começaram a chorar e choraram tanto que os três Anjos vieram consolá-las, dizendo-lhes:
-Não chorem, queridos pequeninos. Cecília não morreu. A sua alma viverá eternamente. As crianças pararam de chorar e para seu grande espanto começaram a ver uma chuva de pequeninas estrelas brilhantes que Cecília lhes mandava dos céus. Ao pousarem suavemente nas suas cabeças, transformaram as crianças nas mais belas flores que ficaram para sempre no jardim de Cecília.

Hoje, quem visitar Roma e for à Igreja onde era a casa de Santa Cecília, se tiver o coração puro sentirá o suave perfume de lírios e de rosas e ouvirá os sons da lira de cristal que ficaram suspensos para todo o sempre na memória invisível, mas real, da Natureza.”

Idalete Giga
17/Novembro/2009

Clique para ouvir “Christus Natus Est”, com o Coro Capela Gregoriana Laus Deo, sob a direção de Idalete Giga.