Navegando Posts publicados em fevereiro, 2010

Quando mensagem tem guarida

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Na estrada por que vou
Não fujo do meu norte.

Edmundo Bettencourt

A carta ao jovem pianista (vide post de 13/02/10) propiciou número inusitado de acessos. Muitos leitores se interessaram pela problemática do amadurecimento artístico. Friso sempre que a idade não significa aprioristicamente status mais adequado para que a compreensão se dê. Se vícios adquiridos em quaisquer atividades artísticas se enraizarem, natural supor que eles recrudesçam com o decorrer do tempo, o que compromete o aprimoramento. Não obstante, se houver equilíbrio no todo de um desenvolvimento, certamente o amadurecer será fato real.
Após a publicação do blog, o jovem respondeu-me e, dias após, inseri no post a missiva eletrônica por ele enviada. Outras mensagens chegaram ao meu correio eletrônico e seis, entre inúmeras significativas considerações de leitores, transcrevo a seguir.
Um dos maiores músicos brasileiros, Roberto Duarte, regente e pesquisador, gravou inúmeros CDs no Leste da Europa contendo a obra sinfônica de Villa-Lobos. Escreveu-me a relatar sua arguta compreenção desse ato mágico, a gravação competente: “Notas na pauta, ritmos assinalados, sinais de agógica, indicações de dinâmica e instruções para a execução não bastam para que uma música exista. Falta o elemento básico: o som. Sem ele tudo aquilo que está ali escrito será apenas um lembrete, uma representação muda e sem vida do que aquela obra de arte poderá ser. Para produzir o som é necessária a figura, a presença do intérprete cantor, instrumentista ou regente. É o mediador. Sua posição, extremamente importante, entre o compositor, através da partitura (texto musical escrito), e o ouvinte (público) é difícil e delicada. Torna-se cada vez mais complexa à medida que o autor e o intérprete se distanciam no espaço e no tempo. O significado dos sinais gráficos vai se alterando com o passar das décadas e aos poucos esses sinais vão perdendo o sentido original. O artista é obrigado a um estudo cada vez mais profundo sobre a maneira de escrever dos diferentes compositores e das diversas épocas em que as obras foram criadas.
As coisas se complicam ainda mais quando o intérprete moderno (dos últimos 50 anos, pelo menos) entra em um estúdio de gravação para perpetuar as suas interpretações. É uma enorme responsabilidade, mesmo para um artista experiente. Hoje, com a fantástica difusão da internet em todas as camadas da sociedade, ouve-se de tudo: desde os grande mestres do passado até aos inconsequentes jovens talentosos, mas sem o devido preparo que se lançam ao mundo de forma completamente impensada”.
Da Califórnia (U.S.A), o leitor Paulo de Matos Machado demonstra a extensão do tema. Escreve: “Soube dos blogs do senhor professor através de um amigo que vive em São Miguel nos Açores. Dizia-me lá ele que está a ler seus textos desde o ano que passou. Acompanhei o conselho e tenho seguido semanalmente a diversidade dos posts do senhor professor. Calou-me muito ‘Carta a um Jovem Pianista’, pois o senhor professor transmite ao novel artista toda a experiência vivida, inclusive a comentar ocorrências não muito alvissareiras. Reporto-me à investida dos mosquitos durante gravações e a ganância de colega que não teve a decantação que se faz necessária para um amadurecer, a trocar a exatidão pela pressa em ‘aprender’ material para registo de Lp em apenas três dias ! O texto acabou por ser a resposta ao questionamento interior que me faço ultimamente sobre a decantada ‘idade madura.’ Acompanho integralmente o posicionamento do senhor professor quando pormenoriza a qualidade como meta maior a ser atingida, a única na verdade. Numa visão mais pragmática, ao mencionar gravações sem zelo, talvez mais não pretendesse o senhor professor do que alertar gerações em todas as áreas do conhecer. Quero parabenizar o senhor professor Martins pelos ensinamentos transmitidos”.
Idalete Giga, professora e regente coral, especialista em canto gregoriano envia-me e-mail de Lisboa, a pormenorizar a qualidade da epígrafe escolhida e a problemática do YouTube: “Quanto à ‘Carta a um Jovem Pianista – A qualidade como Destino’ a quadra do querido e saudoso Prof. Agostinho da Silva, a coroar o texto, é a síntese das sínteses do maior Tratado de Filosofia ! Que lucidez, que sabedoria ela contém ! Olhe esta, também de Agostinho da Silva, que é um hino à humildade: Descobri um novo título/ E espero que o céu mo assuma/ É ser Honoris Causa/ Em coisa nenhuma. A pintura de Deleener vem completar a quadra de Agostinho da Silva: mas vejo mais do que via/ E sonho mais que sonhava… Infelizmente, o YouTube transformou-se numa espécie de Feira da Ladra, onde aparecem pequenas preciosidades ao lado de montes de lixo. Para os jovens que ainda pulam muito e saltam muito, mas pouco vêem e menos sonham, o YouTube é uma miragem”.
De Belo Horizonte escreve-me a professora e juíza Mônica Sette Lopes: “Meu caro amigo, gostei imenso do post de hoje, por várias razões. Porque fala do tempo e de como ele nos constrói, porque fala do que é importante, dos rastros que se deve deixar, porque fala da nossa relação com os mais jovens.”
Rosana Costa, de São Paulo, comenta: “Quando você diz: A vaidade humana é incomensurável; toca-me profundamente, pois tenho notado o quanto uns se julgam superiores ao outros, a mania de subjulgar a capacidade alheia. Sua delicadeza em dizer ao Jovem Pianista que não podemos ‘atropelar’ o tempo, há sabores que necessitam do processo de maturação, o tempo sempre sábio, embora a nossa impaciência teime em querer burlar a sabedoria do mesmo”.
José Bezerra Medeiros, de Pernambuco, tem visão cética, e considera que as: “… atividades culturais dependem de um complexo envolvendo economia, estágio da sociedade, saúde e formação do povo. A cada dia, crescentemente, a massa dirigida perde o contato com o passado. Discutir qualidade não seria elitismo? Muitos dos jovens que ouvem ‘música’ imediata, mas esquecida depois de nova gritaria de sucesso, tomam sua água de coco, fumam sua maconha, fazem sexo livre, cobrem o corpo com tatuagens extravagantes e se vestem como maus palhaços. O cidadão que vê notícias sobre manifestações coletivas desse tipo de música percebe a total alienação desse povo. Professor, esse povo que vai a todo show com a participação de ‘cantores’ berrantes não pensa nem no passado e nem na qualidade. É só o presente alienado que provoca adrenalina nesse mundão de gente, e parte do povão alucinado saiu da universidade ou ainda continua nela. O Professor luta e acredita. Eu não creio em mais nada. Estamos indo para o caos dos costumes. Essa é a realidade”.
Outros mais abordaram o fulcral amadurecimento; a incógnita quanto ao tempo em que ele ocorre e se sedimenta; as cargas de toda ordem que acompanham o amadurecer; os frutos consequentes; o aprimoramento espiritual que pode surgir, a levar ao recolhimento individual sem contato com o exterior. Neste último caso, foram citados eremitas, anacoretas, carmelitas, trapistas, budistas e tantos outros, que intensificam a prática do auto conhecimento e a comunicação por meio da prece com o Poder Maior. Tornou-se evidente que as mensagens concentraram-se preferencialmente nessa busca incessante do aprofundamento, e a gravação, que foi motivo central, motivou tantas interessantes observações dela derivadas.

Many readers of my last post (Letter to a Young Pianist) deemed it noteworthy and wrote me to share their thoughts on the subject. I selected only a few of such messages – for space reasons – and they are the post of this week.

Abrir a Mente para Poder Compreendê-lo

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Desenho de Luca Vitali a partir do livro Ultime Lettere di Jacopo Ortis de Ugo Foscolo. Clique para ampliar.

Le tombe non giovane ai morti,
perché non restituiscono la vita.
L’aldilà non esiste….

Ugo Foscolo (I Sepolcri)

Estava a tomar um curto com velho e dileto amigo. Cláudio Giordano é editor. Presidente da Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, doou toda a coleção, constituída de livros, jornais e revistas (circa 30.000), à UNICAMP, que a acolheu em sua Biblioteca Central. Generosidade, altruísmo e amor à atividade marcam a sua existência. Editou três de meus livros. Na conversa sempre enriquecedora com Giordano surgiu o nome do escritor italiano Edmondo de Amicis (1846-1908), o célebre autor de Cuore, que encantou gerações. Na juventude, ambos lemos a preciosa obra e nunca mais a esquecemos. Igualmente perdemos o contato com o livro primeiro, percorrido com quase devoção. Extravios ou destruições? Não soubemos dizer. A permanência de um livro pode ter motivos tão díspares…
Giordano, em suas andanças por alfarrábicos da cidade, encontrara edições da obra em italiano e em português, e presenteou o amigo. Já estou a reler, movido por nostálgico prazer, após mais de meio século de uma primeira visita. Será motivo de blog futuro. Regalou-me ainda Giordano com A Voz de um Livro, do autor de Cuore, em que de Amicis narra a saga de um livro e as inúmeras mãos por que passou ao longo de sua existência. Causou o artigo profundo impacto em Giordano, que o traduziu para o português (Revista Bibliográfica e Cultural, Julho 2000, nº 2, pgs. 20-25). Tive a mesma reação frente às elucubrações contidas na narrativa. Escrevi o post a comentar o hipnótico, longo e instigante A Voz de um Livro. Em curto posterior, no mesmo lugar, li o presente texto ao amigo e artista plástico Luca Vitali, que igualmente emocionou-se. E surgiria em sua mente criativa a imagem a ilustrar o post da semana.
De Amicis, ao ter em mãos um exemplar da 1ª edição de Ultime Lettere di Jacopo Ortis, romance epistolar do escritor e poeta italiano Ugo Foscolo (1778-1827), cria um interessantíssimo texto a partir daquilo que ele denomina “singularíssima alucinação”. O livro ganha nesse devaneio estranhas formas, e aparências humanas de expressão, como rosto, olhos, boca, dimensionam-se na imaginação de De Amicis. Adquire vida e o exemplar, agora personagem, conta sua saga. O autor escreve, a anteceder o resultado da alucinação: “Existe coisa inanimada – afora a foto de nossos semelhantes – que nos possa dar tal ilusão melhor do que um livro?” O calvário se inicia em 1802, logo após o nascimento da edição de Foscolo, e prosseguirá décadas após a morte do criador de Jacopo Ortis. O autor de Cuore segue os caminhos tortuosos a que foi submetido o livro nas suas mais variadas moradas. A sua permanência, essa “coisa inanimada”, pode merecer carinho ou desprezo daquele que o possui, mas tantas vezes desconhecemos sua trajetória. Penetrar nesse mundo imaginário, mas a conviver conosco, sugere outras elucubrações.
No desenrolar da narrativa, o exemplar passa pela leitura de amigas de senhora piemontesa que o adquirira. Prossegue, mais tarde, nas mãos de Comissário austríaco que fazia inspeção na casa da adquirente e viverá, após, sete anos em estante. Ao morrer a senhora, seu irmão leva o espólio, e o livro sentirá a censura de um padre, permanecendo recluso “com outros livros excomungados, em um cubículo morto”. Lido, posteriormente, por soldados na Guerra da Criméia. A seguir “ fui molhado pelas águas do Mar Egeu, a bordo do navio inglês que transportou o 4º Regimento Provisório da Divisão de Alexandre Lamarmora”; esteve em tendas turcas onde grassava a cólera; amargaria em hospital; um dono seu foi morto na batalha de Cernaia. Seria vendido posteriormente a “revendedor que tinha banca na Praça Castelo. Lá fiquei vários meses, exposto ao sol e ao vento, banhado às vezes por chuvas inesperadas, aberto e manuseado por centenas de ociosos”. O drama continua e um comprador “jovem, pobre e triste” o leva, mas o infortunado teria como destino o suicídio, e gotas de sangue respingaram sobre o exemplar. Foi ter a seguir a um Gabinete de Leitura “com taxa de dez soldos mensais e eu, marcado com um número como objeto de bazar, passei de sócio a sócio; no bolso de um deles, que fugia, fui desmantelado por uma bala dos carabineiros, no funesto tumulto da Praça Castelo pela Convenção de Setembro”. Em 1864 vai ter às mãos de açougueiro, que o mantém durante sete anos em caixote. O que segue tem aguçado humor: “Em 1871, soando na boca de todos o nome de Foscolo, por causa da remoção de suas cinzas para Santa Cruz, o açougueiro me retirou do sepulcro e me deu de presente ao dono de sua casa, que era um velho bibliófilo. Este me dedicou grandes cuidados, fazendo crer aos amigos que as marcações de algumas frases minhas eram do punho do meu autor. Depois de sua morte, por uma série de empréstimos, presenteamentos e trocas, passei de um professor a um advogado, a um estudante, a um dono de pensão, a uma atriz dramática e, por fim, a uma criada romântica, que me trocou por Mon voisin Raymond, de Paul de Kock, com um revendedor da Porta Palazzo, onde você me encontrou sobre uma esteira estendida no chão, entre uma antiga espada da Guarda Nacional e um São Roque de terracota. Eis a minha história de cento e cinco anos, desde o Consulado de Napoleão até o Reinado de Vitor Emanuel III. Meu autor tinha 28 anos quando vim à luz e há oitenta anos está sepultado! Mas, o meu fim também se aproxima, como você vê.”
Após a exposição da saga geográfica, De Amicis percebe a boca aludida reabrir-se, e uma segunda etapa, introspectiva, a penetrar o âmago das percepções, é revelada: “Quantas coisas não vi ! Nada há mais respeitado e mais maltratado no mundo do que um livro”. O exemplar narra essas apreensões, que se estendem desde estar presente em bibliotecas arrumadas e envidraçadas até aquelas onde os escaninhos imundos fizeram-no estar misturado a trapos e teias de aranha. Se pessoas respeitadas trataram-no bem, outros o usaram para apagar velas, espantar insetos, pregar tachinhas, cobrir cafeteira e até servir como raquete em folguedo infantil. Torna-se de vivo interesse a descrição do autor a respeito de marcadores. O exemplar do livro Jacopo Ortis revelaria que fitas douradas, espátulas artísticas, chaves enferrujadas e palha de cigarro serviram de sinalizadores para o estágio da leitura, assim como lágrimas vertidas, fios de barba, rapé de nariz caíram sobre páginas indefesas de maneira aleatória. A contrapor, cabelos de belas jovens permaneceram “e adormeci na tepidez perfumada de seus travesseiros”.
Descreve conformado a qualidade de outros leitores. Daqueles interessados que chegavam à emoção, aos que percorriam o livro sem quaisquer reações fisionômicas, aos indiferentes que abandonam a leitura, ou até aos que o lêem para provocar o sono deixando-o cair, o que o obrigou a dormir ao lado de chinelos e sapatos. Bilhetes e fotos tantas e tantas vezes estiveram entre suas páginas. Nesse passar de mãos em mãos, o exemplar fala dos “carregadores que me encaixotaram para mudanças; encadernadores que me deram vestes novas. Três vezes mudei de revestimento; três vezes fui desfeito, refeito, costurado, colado, dourado e devolvido rejuvenescido aos meus donos.”
O exemplar não deixa de comentar sua vizinhança em tantas estantes: “Quantos e quão diversos vizinhos tive ao longo da vida! Em estantes organizadas por ordem alfabética, estive entre Fedro e Franklin” e outros mais com a letra F. Em outra organização, essa familiar, cercou-se de diversas outras obras de Foscoli, “outros filhos de meu pai”. Sob contexto diferente, esteve ao lado de “grossos volumes austeros, revestidos de pergaminho, tratados de moral e teologia com mais de cem anos de idade, os quais, percebendo quem eu era e as aventuras que vivera, trataram-me como malfeitor e vagabundo. Tinham mais de um século, mas estavam mais conservados do que eu; há tempos imemoriais ninguém os abrira, eu vivera, vira e conhecera mais mundos em cinquenta anos do que eles em trezentos, e sentia-me mais velho, mais cansado, mais próximo da morte do que eles”.
Um outro aspecto curioso nesse segmento refere-se ao tratamento dado às páginas, antes imaculadas. O exemplar, através de seu escriba De Amicis, considera que ninguém ousava escrever sobre suas páginas nos primeiros anos. Com o tempo, passaram a fazer anotações a lápis ou a caneta e todo tipo de comentário surgiu, dos elogiosos às injúrias contra a obra. E profeticamente “Serão estes os juízos definitivos do porvir? Não posso acreditar nisso. Mudou o coração humano ou a linguagem da paixão? Que língua se fala hoje aos homens para comovê-los? Que estranha reviravolta ocorreu nos ânimos e nas idéias para que aquilo que comovia profundamente a geração em que nasci deixe frios ou faça sorrir ou irrite os leitores dos novos tempos? Pode então estar sujeita uma obra de talento, em sua beleza e em sua eficácia, à mesma decadência a que estão condenadas a substância e a forma em que essa obra se materializou? Vede a que estou reduzido ! Que miséria e que tristeza !”
É o autor que, ao sair temporariamento do devaneio, considera o estado do exemplar de Jacopo Ortis de Ugo Foscoli: “De fato, nenhuma coisa inanimada é mais triste de se ver do que um livro estragado pelo tempo e pelo abandono…”. Com amargor menciona as vicissitudes a que foi submetido o livro, no mais profundo estado valetudinário. Moscas, traças e ratos, pó e umidade deixaram suas marcas. Manchas de toda ordem, “páginas inteiramente amareladas como faces de ictéricos”, dobras em outras folhas, furos provocados por cigarros, tintas várias, remendos grotescos por todo o livro e páginas “que se soltaram, foram enquadradas em papel mais branco, de sorte que têm a aparência de rostos de feridos, enfaixados com uma tira de pano, que cobre o crânio e ata-se sob o queixo”. E continua: “A capa de papelão soltou-se do volume como couraça desprendida; há páginas pela metade: alguns cadernos não se prendem aos demais senão por um fio frouxo, como se prende ainda ao tronco por um nervo um braço amputado”.
No epílogo do texto, um diálogo sombrio se produz entre De Amicis e o exemplar. “Estou no fim – suspirou”. A cada alento do autor de Cuore, o livro responde ceticamente. Não acredita na perenidade e à afirmação de De Amicis “Mas existem irmãos imortais. As odes, os sonetos, I sepolcri renascerão eternamente”, a voz do livro responde “Não. Também esses acabarão destruídos um dia, sem deixar sucessores, e os últimos não serão mais compreendidos”. À insistência do autor em buscar uma luz de esperança, “Que seja para os teus irmãos, mas os filhos dos supremos entre os supremos, pouquíssimos ao longo dos séculos, apenas os que se possam nomear num só fôlego, salvar-se-ão”, combalido, o livro responde com voz ainda mais distante “Nenhum”. E, com ironia e compaixão, ainda diria “Só resta resignar-se, meu caro”. A servir de reflexão, De Amicis ouve voz bem fraca que advém de uma livraria “À infinita vaidade de tudo”.
O texto de Edmundo De Amicis ultrapassa gerações. A tecnologia que levou às fotocópias e à internet, que tudo revela instantaneamente, não teria provocado abalo crucial no culto ao livro? Perdurariam o afeto mantido pelos livros e suas moradas, as estantes a abrigá-los, perpetrado por gerações precedentes e o entusiamo evidente a cada novo tomo ou compêndio que vinha somar ao que era percorrido avidamente pelos olhos? Parcela imensa dos que nasceram nessas últimas décadas não estaria fixada na rica informação que a internet oferece, mas geralmente esquecida após consultas feitas? A biblioteca física, amorosa, que permanece e que um dia é transferida para destinos vários, não teria perdido para legiões a aura do conhecimento a ser retido pela razão, coração e fisicamente? Não perde o homem uma raiz essencial? Àqueles que ainda acreditam, o texto sombrio e profético de De Amicis apenas ratifica afeições. Para tantos outros, um texto perdido no tempo. Prefiro ainda ter lá minhas nostálgicas esperanças, à la manière do cronista português António Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios”.

A Qualidade como Destino

H.Deleener. Técnica mista. Clique para ampliar

Não corro como corria
nem salto como saltava
mas vejo mais do que via
e sonho mais que sonhava

Agostinho da Silva

Estava para colocar o post da semana, a abordar o instigante texto A Voz de um Livro, de Edmundo De Amicis, quando respondi a um e-mail de promissor pianista que ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente. Ao reler o que acabara de escrever, optei por publicar os comentários sobre A Voz… na semana vindoura. Torno pública a carta eletrônica endereçada ao jovem, guardando o anonimato do remetente que estará a ler via blog.
O pianista em formação escreveu-me a dizer que colocara no YouTube gravações a apresentar suas performances. Dias após, dele recebi nova mensagem: “Quero informar que retirei do ar os clipes que havia postado no youtube.com. Decidi esperar mais um tempo e postar vídeos com qualidade mais perfeita.” A notícia fez-me lembrar situações que diariamente afligem jovens aspirantes idealistas, mas também outros, estes, irresponsáveis.

Meu jovem pianista,
O seu e-mail levou-me à reflexão. Inicialmente, acredito que você agiu bem ao retirar os vídeos do YouTube. Tem o amigo consciência do que deve ser preservado. É sinal evidente de que o jovem pianista promete ser um músico que não desmerecerá a atividade. Se de um lado há gravações extraordinárias e históricas de tantos intérpretes que permanecem como parâmetros, há também muito entulho nesse veículo de tão grande acesso. Tudo lá está. O bem e o mal sem fronteiras. O bem lá está a causar admiração, o mal também, mas a desvelar o encantamento único do irresponsável que se permitiu auto promover. Com que fim? A vaidade humana é incomensurável, meu jovem. Sob outra égide, para muitos daqueles que vêm e ouvem, público tantas vezes sem convicções precisas, essa mistura sem amálgama possível entre o que tem valor e o absoluto amadorismo passa desapercebida. E todo o mal está feito. O YouTube presta serviço inestimável ao ter em sua listagem interpretações extraordinárias, mas também um desserviço abominável quando permite a inclusão de qualquer “produto” voltado à “performance”.
O fato de deixar registros de áudio ou imagem pode camuflar um tipo comportamental que nem sempre é salutar. Li inúmeros relatos de grandes intérpretes que se arrependeram de gravações realizadas na juventude. Entenda o meu jovem amigo que nem sempre isso acontece. Há precocidades, e aí estão tantos compositores que produziram na mocidade obras definitivas, ou intérpretes que não conseguiram mais tarde as performances impecáveis do início da carreira. Mas também há incontáveis músicos que gravaram extraordinariamente do começo da atividade às fronteiras da desativação. Existem, pois, nuances quanto ao tema. Contudo, frise-se, não por outro motivo, a idade madura – seja em qual período, a abranger aproximadamente uma ou duas décadas após os quarenta anos – leva à conscientização do que deve ser levado à definitiva captação dos sons representada pela gravação. Lembre-se, ela não permite o retorno, pois representa aquilo que o intérprete transmite e deverá permanecer assim.
Estou a me lembrar dos anos 80. Gravei “historicamente” alguns LPs para a Funarte, Basf e Studio, a preservar a obra camerística e para piano solo de Henrique Oswald que estava a estudar. Momento até heróico, em que aceitei pianos em condições razoáveis, tecnologia difícil, estúdios ou salas com problemas – em um deles, durante gravações, fui devorado por pernilongos. Fez parte de minha vida. Diria que aconteceu na juventude da idade madura, pois estava lá eu com os meus quarenta e poucos anos e as gravações atendiam a período preciso, quando não faltava a determinação de apreender esse aspecto de resgate histórico.
O tempo passou. Dessas gravações não tenho saudades e nem mais as ouço, apesar de históricas, mercê das importantes obras. Deixei o tempo passar e apenas na fronteira dos sessenta anos comecei a deixar as pegadas que, entendo, mereceriam ficar registradas. O Diretor da De Rode Pomp da Bélgica, após um recital meu em Gent, disse-me que deveria começar a fixar a minha herança musical. A casa tem selo seletivo com pouquíssima tiragem, mas muito conceituada em meio específico musical. Entre gravações na Bélgica e outras na Bulgária e Portugal, lá estão 20 CDs.
Em que condições aconteceram as gravações, poderia meu jovem amigo questionar? Responderia em compartimentos. Possivelmente, a idade madura tenha proporcionado um tipo de aferição quanto à necessidade da impecabilidade em todos os sentidos – perfeição é sempre inatingível –, a obedecer os limites individuais. Há que se ter consciência plena do estágio em que as obras se situam, do repertório escolhido e das condições as melhores, a fim de que a comunhão se dê. Torna-se evidente que nem sempre o ambiente ideal de gravação é obtido. Não obstante o fato, algo deve ser preciso, ou seja, a busca pela qualidade. Essa se consegue através de denodo, disciplina e afeto em relação às obras que serão gravadas.
Estou a me lembrar de colega, pianista de méritos incontestáveis, que na década de 70 me disse que estudara três dias obras que seriam gravadas na manhã seguinte à nossa conversa. Possuidor de uma leitura absoluta, questionado por mim, respondeu-me que interesses financeiros obrigaram-no a tal façanha. Torna-se evidente que o pianista, que gravou no Exterior CDs referenciais, cedera às pressões. É aí que reside uma das encruzilhadas da atividade pianística. A concessão tem seu preço, e este é amargo ao longo da trajetória. Se você pingar uma gota de material líquido agressivo no mais requintado vinho em envelhecimento num tonel de carvalho, ele estará estragado por completo. Devemos ter sempre em mente a qualidade, pois o trigo não pode confundir-se com o joio.
De minha parte, meu jovem colega, encontrei o lugar de meus sonhos, que poderá muito bem não ser aquele de outros intérpretes. Temos de ter empatias. Um estúdio será sempre um estúdio, um teatro igualmente permanecerá a cena onde o espetáculo se dá. O local onde gravo, perdido na planura flamenga, é uma capela do século XI. Já escrevi vários textos sobre Sint-Hilarius ao longo destes três anos . O piano Steinway, vindo diretamente de Hamburgo, representa o que uma Ferrari Fórmula 1 pode significar para um corredor. Colocado em baixo da torre de pedra, sob as lápides de eclesiásticos e nobres sepultados desde o início do milênio anterior, funde-se nesse amálgama físico e espiritual com as milenares pedras irregulares. Desde o cantochão até as gravações atuais, Sint-Hilarius lá está a abrigar sons dos intérpretes. Nós passaremos, mas a capela deverá continuar a ouvir tantos outros instrumentisatas e generosamente oferecer-lhe as ressonâncias. Serve para reflexão sobre a temporalidade do intérprete. A ilusão do canto das sereias. Num aspecto outro, Johan Kennivé, engenheiro de som e psiquiatra, é um dos mais importantes da Europa e sabe cuidar de maneira impecável de toda a tomada de som. Nosso relacionamento estende-se para lá de uma década, e cada projeto recebe o carinho necessário. Tornou-se amigo diletíssimo, a captar sons e reações que surgem durante as gravações.
Cada músico tem seus propósitos. Por eles será responsável. Cabe ao indivíduo encontrar o seu caminho. A única coisa que não se pode trair é a essência essencial da música. E nela, só a qualidade importa. Tenha fé em seu trabalho. Certamente resultará, pois você, além do talento, tem orientação segura. Coragem, disciplina, concentração, dedicação, humildade, gratidão aos mestres são qualidades que o ajudarão a vencer barreiras. Vá em frente, meu jovem.

No dia seguinte à publicação do post recebi e-mail do jovem pianista. Transcrevo-o:

Prezado José Eduardo Martins,
sinto-me muito honrado com suas palavras e atenção em dedicar tempo para escrever-me tão longamente uma resposta. Muito obrigado.
Concordo com tudo o que escreveu.
Realmente, o registro é algo “eterno”, que deve ser pensado e repensado, com responsabilidade. Com certeza, o Youtube está repleto de exemplos de falta de profissionalismo.
Alguns são exemplos de pura vaidade, a qual, em minha opinião, constitui a principal armadilha para um artista, pois a soberba precede a queda (como, aliás, está escrito na Bíblia Sagrada). Isso, para mim, é algo que literalmente “afeta” os artistas comprometendo a dignidade intelectual, a honestidade e a seriedade do trabalho.
Enfim, concordo com exatamente tudo o que escreveu.
Mais uma vez agradeço pela consideração e atenção.
Forte abraço.

I received an e-mail from a young pianist saying he had posted videos of his performances on YouTube, but chose to remove them a few days later and wait until the quality of his playing improves. His message was the starting point of this post, a reflection on how difficult it is to sift the wheat from the tares on a video sharing website and on how strong for an interpreter is the temptation of posting amateur videos – or even professionally made ones – of doubtful quality that potentially could be watched by a worldwide audience within a few minutes.