Quando há irmanação no pensar
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Só sei chorar em português.
Heitor Aghá Silva
Reiteradas vezes comentei com o leitor sobre minhas escutas matinais de noticiários transmitidos pelas emissoras de rádio. Ouço-os do despertar ao início de meus estudos musicais. Geralmente visito quatro delas, pois sei que, em determinado momento, comentaristas de minha preferência emitem suas opiniões. Ultimamente, uma das rádios, de enorme audiência, em reiteradas e insistentes inserções tem feito crítica ao conteúdo das novelas e de determinado reality show, em aspectos tangentes à moralidade e à deturpação dos costumes. Insiste na necessidade de haver um controle sobre conteúdos que estão a tender para uma alteração comportamental de crianças, jovens e adultos, mercê de exemplos não dignificantes, expostos em forte crescimento, a demonstrar a absoluta permissividade, perigoso caminho para a derrocada do mínimo de moralidade ainda existente nesses programas exibidos pelas telas de todo o Brasil.
Após tournée pianística pelo Arquipélago dos Açores em 1992, fui convidado pelo poeta e ensaísta Heitor Aghá Silva, da cidade da Horta, capital do Faial, uma das nove ilhas que compõem essa parte bonita do território português no Atlântico norte, para ser correspondente do Suplemento Cultural Antília, do jornal O Telégrafo. Aquiesci com muito gosto e enviei vários artigos. Ao ler pungente matéria redigida e publicada por Heitor Silva, coordenador do Antília, a respeito dos efeitos nefastos produzidos pelas novelas brasileiras em solo açoriano, escrevi dois artigos a concordar com o articulista, mas tendo ingredientes que o valoroso povo dos Açores desconhecia. Coloco-os em meu blog, pois evidenciam, quase vinte anos após, aspectos que estão em processo aumentativo e denunciados ultimamente por emissora AM de São Paulo. Transcreverei em duas etapas, pois sequenciais, a manter o texto tal qual publicado, com a ortografia configurada pelo Antília. O primeiro data de 9-10 de Janeiro de 1993.
A “Voz e o Eco” Captados Além-Mar
“Publicado no Antília de Novembro último, ‘A Voz e o Eco’ torna-se um texto que, pela lucidez de seu autor, põe à mostra uma preocupação com esse lamentável proliferar das novelas no Arquipélago. A quantidade destas é grande, o prejuízo à identidade de um povo de riquíssima tradição cultural, proporcional ao número elevado a se processar em acelerado caminhar rumo ao impasse, pelo que se depreende do artigo em questão.
Realisticamente, o coordenador de Antília evidencia o alerta – talvez tardio – e denuncia a deteriorização advinda de um vício que, de há muito, uma minoria consciente está a apontar, sem ser ouvida, nas terras por Cabral descobertas. Contudo, Heitor Aghá Silva, ao trazer ao público faialense o conteúdo de ‘telenovelas tão pobres, tão estupidamente supérfluas, tão assustadoramente embrutecedoras (…)’, talvez desconheça – é possível – que, no Brasil, o cancro instaurado nessa espécie televisiva, hoje espalhada além das fronteiras da língua portuguesa, tem, ano após ano, corroborado o desmonte de uma cultura erigida durante séculos, a criar artificialmente valores, modismos que, longe de serem naturais – do povo à autêntica assimilação -, surgem obedecendo tantas vezes a interesses escusos de uma média manipuladora, representante de um poder incomensurável neste imenso país. Sob outro aspecto, no Brasil, quantidade de livros, ensaios e artigos, assim como teses acadêmicas, discutem a problemática da telenovela, em análises multidirecionadas.
É de se prantear receberem Portugal continental e os Açores os ‘enlatados’ prontos para o consumo, sem quaisquer interferências das mentes portuguesas. Refiro-me à deformação de um texto básico que, em vez de ter a sequência lógica do autor obedecida, sofre os impactos da pesquisa que atende aos interesses confessos e que modifica a trajectória de uma novela, a sacrificar ou não os personagens fictícios. O autor, previamente, torna-se partícipe de um circunstancial desvio, a resultar o texto final desvirtuado, descaracterizado, anacrónico e desprovido de qualquer valor literário; sendo que a ideia, essa antecâmara da criação, perde totalmente o rumo.
Frise-se, sempre, o manipular personagens novelescas é prática brasileira, a atender aspectos já distorcidos de outras categorias de distorções que o apelo frenético ao consumo estabelece. O desvio de um enredo considera, pois, a ‘realidade’ brasileira, preferencialmente de uma sociedade urbana, jovem e fácil de ser fisgada pelo anzol do capitalismo, que no Brasil é sempre nomeado de selvagem, mas que se mostra particularmente irracional, nos últimos anos.
A ‘colcha de retalhos’ que se torna a novela brasileira forma-se a partir de revistas ‘especializadas’, de altíssimas vendagens, que contam com um tipo de leitor que, basicamente, agarra-se ao novelesco a fim de se refugiar num ‘paraíso ideal’. Esses periódicos informam das tramas do estúdio de gravações à vida íntima de actores e actrizes, e os personagens fictícios se misturam ao real. O leitor dessas publicações descartáveis, de insípido amontoado de palavras, sente-se prestigiado, identifica-se com toda essa irrealidade, dá seus palpites e chega a ‘interferir’ !!! Resulta que Portugal e os Açores tombam numa grande armadilha forjada numa cultura que não lhes pertence, mas que, paradoxalmente, não é, no cerne, brasileira – entenda-se cultura de um povo -, pois urbana, básica de duas cidades, Rio de Janeiro – matriz novelesca – e São Paulo, e profundamente manipulada pelo interesse comercial dos poderosos.
Quando o arguto coordenador e sensível poeta diz que ‘os povos é que criam e recriam a própria língua’, baseia-se num axioma legitimado. O ‘linguajar’ dos personagens jovens nas novelas é urbano, pertence a uma classe não popular, mas influente em todo o território brasileiro e, infelizmente em Portugal e nos Açores. Sem possibilidade de interferir, o Arquipélago recebe ‘em cheio’ o impacto do equívoco, da história manipulada, da língua portuguesa ultrajada e plena de inconsistentes e circunstanciais ‘neologismos’, do mais amplo absurdo. E o pior é que muitos desses termos temporários, que vivem à mercê do modismo, por motivos de complexa explicação igualmente entram em certo tipo de dicionário da língua portuguesa editado e reverenciado no Brasil !!!
Sob o ângulo da fala, novelas que se passam em regiões com acentuações diferenciadas apresentam, na essência, a aparência da realidade, pois o habitante dessas regiões entende errônea a pronúncia dos actores, sem as características regionais.
As trilhas sonoras atém-se ao entulho repertorial oriundo basicamente dos E.U.A. e parte musical produzida no Brasil. Para ambos os casos, discos são lançados e realizam-se apresentações dos intérpretes pelo vasto território brasileiro. É toda uma máquina de facturar.
Some-se aos desacertos um primordial, estranho, soturno retrato de uma sociedade brasileira onde a impunidade, essa mater de todos os desmandos e corrupções, impera. Frise-se, jamais compactuado pela imensa maioria do povo brasileiro, ordeira, honesta e trabalhadora – haja vista o processo de impeachment do presidente Collor de Mello, quando as massas saíram às ruas contra o descalabro e pressionaram o Congresso Nacional. Para o ‘batedor de carteiras’, denominado igualmente ‘trombadinha’, e para aquele que comete o ‘crime do colarinho branco’ (corrupção nos mais altos níveis sócio-económico-políticos), o tratamento é rigorosamente diferenciado, jamais vendo este as barras paralelas, amontoando-se o primeiro e muitos outros em prisões superlotadas.
Perguntaria: o que os açorianos têm a ver com o lamentável cotidiano desse imenso país, pleno de tantas esperanças, mas perdido nos interesses de uma minoria? É que a realidade do dia a dia penetra o vídeo, entusiasma directores comprometidos com esse surrealismo todo; e o que se vê em muitos dos finais de novelas, hoje, é o triunfo do corrompedor, a vitória dos trapaceiros, estelionatários ou mandantes da contravenção, algumas vezes fugindo descontraidamente do país na mais absoluta tranquilidade e ‘paz’. Numa dessas fugas, num avião, um personagem dirige-se ao Brasil como um todo, sorrindo pelo êxito de suas tramas sórdidas, através de gesto manual considerado, sabidamente, ofensivo. Exemplo vivo para quem assiste desprotegido, modelo ‘infinito’ para as gerações que surgem.
A indumentar toda essa parafernália, a moda dos que nas novelas actuam, representada pelas roupas informais ou esportivas, assim como bijouterias, penteados, tudo se transforma na mercadoria do day after.
‘A Voz e o Eco’ do poeta cá chegaram. Para quem os entendeu, a constatação do estrago maior, que diariamente a grande maioria das novelas brasileiras causa aos Açores. Torna-se quase impossível modificar esse estado absurdo. É necessário, contudo, persistir, denunciar o equívoco. A dificuldade é incomensurável frente à média onipotente e onipresente. Apesar dos versos de Almeida Firmino, ‘Falta-nos a voz com que protestar’, tenhamos ao menos a pena para escrever o desencanto.”
Não é de se lamentar que, após tantos anos – uma quase maioridade –, a situação continue em ascensão geometricamente sombria?
Brazilian soap operas and reality shows with questionable content have been running on Portuguese television channels for ages. This post – the transcription of an article I wrote for an Azorean newspaper in 1993 – discusses their potential for influencing the indigenous culture for the worse, since the values imbedded in such TV programs are those of the society that produced them, not those of the local audience.