Quando a Morte é Espelho da Realidade

Horta, capital do Faial. Arquipélago dos Açores. Panorâmica da cidade. Foto J.E.M. 1992. Clique para ampliar.

Mortos ao chão,
vivos ao pão.

Adágio Açoriano

Faz-se necessária a colocação no blog de meu segundo artigo (vide post anterior) sobre o tema novela, publicado no Suplemento Antília de O Telégrafo, da cidade da Horta, capital do Faial, uma das nove ilhas do Arquipélago dos Açores. Só vieram à superfície mercê de comentários incisivos de emissora AM de São Paulo a respeito de conteúdos de novelas e reality shows, a desvirtuarem costumes. A divulgação de Um Trágico Amalgamar deu-se aos 12 de Março de 1993, após infausto acontecimento que levou a vida de jovem atriz de novela em morte violenta. Consubstanciavam-se os elementos que envolvem parte do processo de elaboração desses gênero televisivo, acrescidos dos patrocínios necessários, dos índices de audiência seguidos a cada momento e da recepção pública de um povo que assiste a essa programação movido por motivos os mais díspares. Impressionou-me, naqueles dias tormentosos, um fato relevante, que ficará em todos os compêndios de História do Brasil : o impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello e a consequente cassação de seus direitos políticos por dez anos. Pois a tragédia a envolver a jovem atriz teve repercussão tão grande ou maior do que aquela de episódio que permanecerá seculo seculorum. O esquecimento já se abateu quase que por completo sobre o brutal assassinato. É o real tout court. Como no post anterior, mantive a ortografia da publicação em Antília.

Um Trágico Amalgamar

“Heitor Aghá Silva, em artigo a constatar a realidade das novelas brasileiras exibidas no Arquipélago, e o comentário d’além mar deste correspondente sobre aspectos de um todo a abranger os bastidores das novelas, possivelmente desconhecidos pelo povo açoriano, tiveram a exemplificá-los um infausto acontecimento, ocorrido no dia 28 de Dezembro último na cidade do Rio de Janeiro. Uma das actrizes da novela em exibição foi brutalmente assassinada, após os ensaios, pelo personagem que com ela contracenava.
Ficção e realidade colidiram, a resultarem n’uma tragédia inédita no Brasil, colocando a nu o deplorável estado do gênero e evidenciando o alcance a beirar o surrealismo que a telenovela atinge junto à população, que avidamente a consome. A falência moral e ética do gênero telenovela é a consequência da incúria da escolha de um tema e do texto mutuamente fragilizados, da seleção dos ‘artistas’, da necessidade de se atingir índices de audiência, negligenciando-se quaisquer objetivos educativos, da recepção angustiada por telespectador desesperançado nessa crise permanente por que passa o país e que vê na telenovela o ‘bálsamo’ – aparência da fuga -, o refúgio para as angústias do cotidiano.
Denunciávamos, em artigo anterior, que parte dos ‘artistas’ das telenovelas pertencente a uma classe média é recrutada nos ambientes urbanos e, muito mais que a qualidade do ‘actor’ ou da ‘actriz’ a ser erigida, conta a presença física, que deve causar impacto. Despreparadas, muitas das ‘actrizes’ brevemente estarão a estampar seus corpos nus em revistas específicas.
Os ‘artistas’, mitificados pela presença diária nos lares, confundem-se no ideário do espectador com os seus próprios personagens, familiares e de convívio. A tragédia que existe no cotidiano adquire dimensões amplas quando ocorre na realidade com um dos personagens fictícios das telenovelas. Presentemente, milhões de brasileiros assistem a mais uma dessas produções, onde, novamente, o precário texto, sempre manipulável ao sabor das oscilações dos gostos, está de mãos dadas com o todo absurdo. Lamentavelmente a novela atual deverá um dia entrar nos lares açorianos.
Voltemos ao acontecido. Dois dos personagens jovens que integram o elenco perpetuam-se em discussões corriqueiras e emocionais. Na ficção, o rapaz tem ciúmes doentios da jovem, bonita, que representa papel descontraído. Na vida real, ele é casado e a sua mulher, recém saída da adolescência em seus 18 anos, está grávida de quatro meses. Os ciúmes desta pelo marido, que vive personagem na ficção televisiva, somados à anormalidade psíquica do mesmo, compõem a antecâmara do crime. Após gravação de um capítulo em que a jovem encerra o namoro, este chora, frise-se, na ficção. Algumas horas após, na realidade, marido e mulher estarão a golpear fatalmente, com dezoito perfurações, a actriz de 22 anos.
O Brasil, na manhã do dia 29 de Dezembro, assistia à declaração do impeachment do Presidente Collor de Mello pelo Senado Federal e, em longa sessão posterior, que se prolongaria até a madrugada de 30 de Dezembro último, à cassação dos direitos políticos do então ex-presidente até o ano 2000. A tragédia ficção-realidade que se abatera sobre o país conseguiu paralelismo em todos os meios de comunicação, com o desdobramento político inédito no Brasil, para o qual, durante quase um ano, a população voltara as atenções.
Horas após o brutal crime, milhares de pessoas saíram às ruas do Rio de Janeiro e o que se viu foi absoluta identificação. Choravam pela vítima e pediam vingança, como se a personagem imolada fosse a mãe, a irmã, a namorada, a mulher, a filha. Outra simbiose se processava. No cemitério ou junto à Delegacia de Polícia, durante dias, um público absurdo buscava vaticinar o veredicto para os réus e, na histeria, idolatrar os mitos vivos que visitavam os lugares citados.
A maior rede de televisão que produz novelas no Brasil, por sua vez, aproveitou-se da tragédia para ampliar os seus índices de audiência com a maciça divulgação dos pormenores da tragédia. A morbidez, o desrespeito, a culpabilidade não entendida como culpa, mas como um processo acidental, tudo a evidenciar a profunda e abissal amoralidade, a ausência de qualquer ética.
Anteriormente escrevíamos sobre as modificações que os textos sofrem no decorrer de uma novela, motivadas por pesquisas sucessivas, o que corrobora a literatura de sofrível qualidade. A morte real não impede, contudo – antes, é audiência -, que a personagem continue a desfilar juventude, graça e alegria durante os capítulos que gravou bem antecipadamente, até o derradeiro, na noite de seu destino fatal. Suprimir esses capítulos? Nem esse respeito foi prestado à memória da vítima. Incita-se o telespectador ao convívio com o peristilo da fatalidade. E, a agravar, a autora do texto, na vida real, é a mãe da jovem assassinada, o que, no imbroglio, dimensiona o equívoco.
Contra a força dos media, temos poucos instrumentos de defesa. Contudo, de um último não podemos abdicar, o da denúncia. A receptividade ficaria a cargo das consciências”.

Horta, capital do Faial. Arquipélago dos Açores. Conservatório Regional. Foto J.E M. 1992. Clique para ampliar.

Dezessete anos se passaram. O que mudou? Basicamente nada. Antes, houve recrudescimento. Continua o desfile de aviltes aos costumes. A acrescer, os reality shows escabrosos em exibição e o desrespeito à lhaneza de um povo. Se o homem simples ou o letrado assiste a essas programações não seria pela intensidade da mídia e pela falta de opções na TV aberta? Dezessete anos em que o vernáculo também tem sido sacrificado por modismos que sucumbem à força de outros modismos. E de pensar que o jovem pode votar aos dezesseis, um ano a menos do que a redação do artigo em pauta ! Hélas, indefeso, o cidadão espera. As forças controladoras são muito poderosas. Fica-se à mercê.

Este post tem a exemplificá-lo, no caso específico da tragédia em si, o affaire Nardoni – mais um reality show - que monopolizou a mídia nesta semana. Quantidade enorme de crimes são julgados diariamente neste país, sem que tenhamos conhecimento, pois não divulgados. A trágica morte da menina Nardoni teve repercussão nacional. Nesta semana em que o caso está a ser julgado, os meios de comunicação colocaram dezenas de profissionais a serviço do julgamento Nardoni. Seguiram o casal desde a saída dos presídios, no interior do Estado e continuaram a segui-los, até com tomadas aéreas, durante toda a semana, no percurso penitenciária-fórum e seu inverso. O que se vê, ouve-se ou lê-se nesse período, escancara com pormenores, a beirar a histeria, a tragédia. Perpassam pela mídia as possibilidades do veredicto e as entrevistas com os vários segmentos da sociedade: multidão, membros do poder judiciário, psicanalistas, advogados, peritos e a acrescer, outras situações do imaginário. Denotam os meios de comunicação, sem qualquer escolha movida pela ética – infindável a lista de julgamentos não divulgados !!! – essa busca compulsiva pela audiência e pelos leitores. Tantas notícias da maior importância na semana ficaram relegadas como apêndices ! Todavia, as inserções nos noticiários televisivos e radiofônicos dão bem a medida de que se chegou ao absurdo. Infelizmente, nestes casos, nada mais a fazer. Como no Um Trágico Amalgamar do início dos anos 90. Quousque tandem abutere Catilina patientia nostra, a célebre frase do famoso orador romano Marcus Tullius Cicero em 63 A.C., continua pela eternidade…

Resuming the subject of the Brazilian soap operas and their impact on the audience, I transcribe another article written for an Azorean newspaper in 1993. In an example of life imitating art, a soap opera actress was murdered by the co-star who played her boyfriend. Her death caused a huge commotion in Brazil and was a commercial success largely exploited by newspapers and TV news, pushing aside the coverage of President Fernando Collor’s scandals and resignation.