Um Longo Entendimento

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Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?

Eugénio de Andrade

O lançamento de CD pela Academia Brasileira de Música (ABM) deixa-me bem feliz, mormente por tratar-se de homenagem ao nosso maior compositor romântico, Henrique Oswald (1852-1931). Trata-se do terceiro CD dedicado inteiramente ao autor gravado na planura flamenga, sendo que os dois primeiros privilegiaram a obra de câmara com piano e o presente contempla unicamente criações para piano solo (vide site, item Recordings). Gravei-o, como o faço nestes últimos quinze anos, na mágica capela de Sint-Hilarius em Mullem, na Bélgica. Foi registrado em dois anos (Fevereiro 2006-2007), pois após o terceiro ou quarto dia de gravação de CD, previsto para lançamento em ano posterior pelo selo De Rode Pomp, aproveitava a disposição sempre solidária de meu dileto amigo, o engenheiro de som Johan Kennivé, e, projeto concluso, deixava serenamente fixadas as mensagens oswaldianas. Denominei a junção dessas peças, que penetraram os microfones instalados em Sint-Hilarius, de O Piano Intimista de Henrique Oswald. Se algumas delas contêm arroubo característico do período, seria contudo o intimismo um dos fundamentos essenciais de Henrique Oswald. No texto que segue, encarte do CD, dedico a gravação à amiga e irmã em tantas intenções, Maria Isabel Oswald Monteiro. Foi ela que, desde o primeiro encontro em 1978, quando iniciei as pesquisas, abriu-me o universo por vezes velado, mas extremamente sensível, de seu avô Henrique (vide Henrique Oswald – Nosso Grande Músico Romântico, 19/10/07). Diários, cartas e manuscritos foram amorosamente percorridos por nossos olhares e captados por nossas mentes e nossos corações. Mensalmente visitava-a no Rio de Janeiro e permanecia em seu apartamento durante dois ou três dias. Foram momentos inefáveis que vivi no convívio do casal Oswald Monteiro. O telefonema que recebi da amiga nonagenária após a recepção do CD ficará gravado em meu de profundis.
O texto que segue acompanha o encarte do CD ora lançado que pode ser encontrado na Academia Brasileira de Música, (www.abmusica.gov.br) e na Loja Clássicos (www.classicos.com.br).

O Piano Intimista de Henrique Oswald

Em seu diário de 1906 e em cartas diversas, Henrique Oswald deixa registrado desencantos motivados pela burocracia à qual sua índole era avessa. Quando em Munique para apresentação camerística, é-Ihe doloroso vislumbrar o retorno à direção do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, onde ambiente inóspito o aguardava. Aos 54 anos, a maior parte a viver em Florença com a família, a compor e a lecionar, comungando austeridade e sonhos, Oswald evidencia seu distanciamento do aspecto prático do cotidiano. Em relatos pungentes, o compositor faz referência à criação de curto fôlego para piano, refúgio incondicional que encontra para revelar estados de alma.
A segunda metade do século XIX abrigaria com inusitada frequência um gênero musical para piano bem próximo à suíte barroca para teclado praticada entre os séculos XVII e XVIII na Europa. Seria possível supor que uma das causas tenha sido o silêncio do cravo, instrumento banido do currículo do Conservatório de Paris anos após a Revolução Francesa, o que determinaria com naturalidade a transferência de todo um repertório cravístico para o pianoforte e, consequentemente, para o piano moderno. Ter permanecido doravante no repertório dos pianistas e nas salas de aula, mesmo com a soberana forma Sonata a dominar parte do cenário musical, possibilitaria a esse repertório cravístico, praticado unicamente por pianistas, influenciar a criação da pequena peça, a formar coletâneas na primeira metade do século XIX. Talvez tenha havido, como saudosismo, a revisitação à forma suíte na segunda metade do século XIX por compositores de todos os níveis; modificada em sua estrutura, mas a fazer reviver danças e outras categorias de peças frequentadas pelos compositores do século XVIII. Mantinha-se, entretanto, a alternância entre os movimentos rápidos e os mais moderados.
Se a forma Sonata foi utilizada com plena competência por Henrique Oswald e sua obra camerística, orquestral e a destinada a instrumento solista e orquestra comprovam a maestria escritural, se a música sacro-vocal revelaria consistência criativa, se três óperas apresentam-no como um cultor do gênero, seria contudo nas composições para piano solo que o Oswald mais intimista se faria sentir. De sua pena fluem mais de duas centenas de criações para piano, da mais pueril à austeridade das Variações sobre um tema de Barrozo Netto, à virtuosidade dos seis Estudos, do Impromptu op 19 ou da Polonaise op. 34 n° 1, como exemplos. Contudo, seria em duas categorias precisas que o autor de Il Neige mais confessaria musicalmente intenções íntimas. Aquelas destinadas aos primeiros anos de aprendizado pianístico, como Machiette, Bluettes, Miniaturas, às coletâneas em forma de suítes que receberam diversas denominações: Fogli d’album, Feuilles d’album, Álbuns, ou simplesmente conjunto de peças constituindo pequenas coletâneas de três, quatro ou mais composições. Oswald presta tributo ao passado e revisita, tantas vezes, danças caras aos cravistas: Gavota, Minueto, Sarabanda. Se o século XVIII privilegiou para o teclado – mormente em França – titulações descritivas, nem por isso o compositor brasileiro deixa de lembrar-se de imagens que lhe são caras. Oswald sabe introduzir conteúdos românticos essenciais quando está a descrever musicalmente. O Eu que persiste na segunda metade do século XIX, a revelar sentimentos que podem ser exacerbados em outros compositores, tem em Oswald o comedimento, a não impedir a presença do sensível estereotipado, mas sempre intenso. Se pratica amadoristicamente o desenho, o olhar diferenciado transforma o que observa ou sente em sons ou traços.
O domínio da arte de compor é completo. Não há segredo escritural para o romântico Henrique Oswald. Ter vivido na Itália em plena efusão da ópera e das melodias contagiantes teria influenciado o compositor, pois sua inclinação para a melodia que penetra corações é imensa. Sabe o limite dessa comunicação direta, pois em nenhuma de suas criações atinge a banalidade de expressão.

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A escolha do repertório do presente CD obedeceu a critérios que possibilitam a percepção de Henrique Oswald nas várias destinações pianísticas, da simples à complexa. Sob aspecto outro, ao iniciar as pesquisas sobre o compositor em 1978, mercê do apoio incondicional da neta do compositor, Maria Isabel Oswald Monteiro, durante nossos primeiros encontros presenteou-me a dileta amiga com alguns manuscritos autógrafos. Algumas dessas obras constam do CD: Tre Piccoli Pezzi, Berceuse – a mia carissima Madre, Menuetto de Machhiette, Polonaise op. 34 n° 1 e o Estudo-Scherzo de 1902. Bem posteriormente, em 1994, Maria Isabel doaria seu acervo particular à Universidade de São Paulo.
Quando em Florença, Henrique Oswald sente-se atraído pela composição da pequena peça, que viria a atender desideratos precisos. Serviria como material didático, assim como figuraria nas audições de alunos ou serões familiares. Na pena de Oswald flui a peça de curto fôlego com maestria escritural, senso absoluto das proporções nas várias formas e sensibilidade aguda para o melodismo. Machiette (12 Piccoli Pezzi), dividida em quatro cadernos, revela a proximidade com obras primas como Cenas Infantis op. 15, de Schumann. Ambas economizam nos meios, a fim de propósitos específicos. Macchiette não apresenta ênfase a mais, multum in minimo, e tudo lá está, destinado ao encantamento. Os fascículos foram escritos nas fronteiras dos anos 70-80 do século XIX e editados.
As Variações sobre um tema de Barroso Netto datam de 1919. O compositor presta tributo ao amigo, pianista e professor, e constrói uma de suas mais significativas criações para piano. Na maturidade dos 67 anos, Oswald revela rara austeridade, e o sóbrio tema de Barroso Netto conduz a criação oswaldiana a outra possibilidade de reflexão, pois as variações já possibilitam vislumbrar o autor em direção à síntese de procedimentos.
Tre Piccoli Pezzi foram escritas em começos de Junho de 1885. Mais tarde, integrariam a pequena coletânea de seis peças Fogli d’Album op. 3, por mim gravadas em LP lançado pela Funarte em 1982. A presente opção pelas três peças vem do frescor do traço que caracteriza a reunião primeira de Oswald. A segunda miniatura, denominada Romance, terá em Fogli d’Album o título Sognando, e dela o compositor ainda realizaria uma versão para violoncelo e piano.
A pequena Berceuse dedicada à “Mia carissima Madre” data de 22 de Setembro de 1886, data cara à progenitora de Henrique. A singeleza e o mínimo material empregado revelam um profundo sentido expressivo.
Dois dos seis Estudos para piano de Oswald constam do CD. Bem diversificados, apresentam a familiaridade do autor com gênero amplamente sedimentado no século XIX. Terminado aos 23 de Janeiro de 1902, o Scherzo-Étude, verdadeiro perpetuum mobile, foi dedicado à então Mlle. Antonieta Rudge, que se tornaria uma das maiores pianistas de sua época. Obra virtuosística, contrasta com o sóbrio Étude pour la main gauche escrito em fins de Junho 1921 e dedicado à filha do compositor Alberto Nepomuceno, Mlle. Sigried. Após recital que apresentei em Lisboa (26/02/82), inteiramente dedicado a Henrique Oswald, o crítico e musicólogo Humberto d’Ávila, do Diário de Notícias, assim escreve sobre o Estudo: “Se algum dos números em programa fosse de distinguir, bastaria citar o ‘Étude pour Ia main gauche’, de 1921, para se ter a certeza da garra dum compositor capaz de escrever uma das melhores páginas da literatura do gênero.”
Das coletâneas oswaldianas para piano, uma das mais expressivas é a que reúne as Six Pièces. O compositor, em suas obras de curto fôlego destinadas ao instrumento, emprega titulação francesa, italiana ou portuguesa, a partir de fixação geográfica, múltiplas afinidades em determinados períodos, ou mesmo a origem de amigos a quem as peças foram dedicadas. Six Morceux tem todos os títulos em francês. Se Valse, Menuet e Impromptu são mais estereotipadas, o intimismo maior estaria reservado às três peças centrais – Revêrie, Berceuse e Barcarolle. Vladimir Jankélévitch, ao se debruçar sobre as criações de Gabriel Fauré, defende uma posição absolutamente aplicável a Henrique Oswald, “o Fauré brasileiro”, no entender do grande pianista Arthur Rubinstein. Berceuses, Barcarolas e Noturnos pertencem, segundo o filósofo-músico, ao universo do doce ondular. O balanço do berço ou da gôndola e a magia do sonho do Noturno pressupõem inalienável identidade. Oswald, em cada peça do álbum, revela seus segredos sonoros.
Finalizando o CD, a Polonaise op.34 n° 1, cujo manuscrito autógrafo data de 5 de Fevereiro de 1901. Igualmente dedicada à Mlle. Antonieta Rudge, a obra difere das anteriores desta gravação, pois contém elementos pomposos caracterizando a dança tão habitualmente frequentada por compositores, mormente Chopin.
Claude Debussy escreveria sobre seus Études, a dizer que não se pode abordar a maiúscula obra apenas com os dedos preparados. Diria que o mesmo se aplica à obra para piano de Henrique Oswald nesse outro conteúdo essencial, a anima. Sem a relação amorosa com esse piano intimista, tantas vezes coloquial, uma lacuna existirá. O absoluto domínio escritural e a não vinculação com o nacionalismo que emergia deram a Oswald a possibilidade de transferir integralmente para o papel pautado o seu interior, a sua noção do belo pelo belo, sem se importar com a possibilidade da plena divulgação.
Dedico este CD à Maria Isabel Oswald Monteiro, neta do compositor e filha do grande pintor Carlos Oswald. Foi ela que, desde 1978, acreditou nesse resgate que amorosamente nós ambos estivemos a realizar. É com alegria que verificamos que lentamente, uma década após, trabalhos acadêmicos foram surgindo a partir de nosso pioneirismo, o que nos dá a certeza de que Henrique Oswald permanecerá e a execução de sua obra no Brasil e no Exterior tem revelado um dos mais sensíveis compositores do caudaloso movimento romântico.

Clique para ouvir as faixas 2, 23 e 26 do CD “O Piano Intimista de Henrique Oswald”, com José Eduardo Martins ao piano.
Scherzo – Machiette Op.02
Berceuse Op.04 No.04
Polonaise Op.34