Quando o Excesso Provoca a Desatenção
Descobri um novo dia
E espero que o céu mo assuma
É o dia mundial
De coisa nenhuma
Idalete Giga
Recebi um substancioso e-mail de minha querida amiga Idalete Giga, competente professora de Canto Gregoriano em Portugal, acompanhado de duas quadras a partir de versos do grande poeta português Agostinho da Silva (vide A Lembrança do Honoris Causa – Encontro Prazeroso com Ilustre Colega, 13/03/10). Vieram a propósito dessa necessidade imperiosa que o homem tem de buscar sustentação em datas comemorativas que saúdam movimentos sociais, membros da família, profissões, e tudo o mais. O calendário contempla por tradição efemérides religiosas e históricas. Em posts anteriores o tema já foi tratado de maneira focalizada. Entretanto, o primeiro quarteto de Idalete levou-me à reflexão. Após a redação li o texto ao amigo Luca Vitali, que sem dizer nada, enviou-me dias após charge instigante.
No Brasil, tudo é reverenciado em dia específico, mas imediatamente esquecido, mercê de outra efeméride a ser festejada. Faz lembrar o fluxo das vagas do mar, pois a cada onda esquecemo-nos da anterior. Nessas datas, há congraçamento e os meios de comunicação tecem comentários, anunciando-as com certa antecedência. Quando categorias profissionais ou sociais, o contingente que tem seu dia realiza aparatosas reuniões em locais públicos ou privados, premiações ocasionalmente, e seria possível supor que o país é lider mundial em homenagear profissionais e políticos em dias específicos, alguns, frise-se a bem da verdade, comemorados mundialmente. Quando bem planejadas, organizadores aproveitam o “seu dia” para ofertar prêmios, diplomas, placas e medalhas que fazem parte da cultura brasileira, pois habituamo-nos a entendê-las como integrantes das trajetórias e os agraciados são considerados merecedores. As inúmeras entidades buscam, em princípio, prestar justas ou não tão justas reverências. Se certo ou errado, não teríamos parâmetros para emitir juízo de valor, apenas para constatar essa provável liderança de nosso país nesse mister.
Fiquei atento à tão anunciada hora mundial da conscientização de economia de energia, um apagão mundial entre 20,30 e 21,30 horas de um certo dia de Abril. Divulgado profusamente, o tema levou-me às ruas em minha cidade bairro àquela hora, pois fui a pé com minha mulher a um restaurante próximo. Rigorosamente nada aconteceu, a ratificar os dois últimos versos da epígrafe. Quantos não são os dias mundiais ventilados antecipadamente e esquecidos no day after ? Efêmeros como as gotas do orvalho. Estiolam-se no calendário a partir do infinitesimal milionésimo de segundo do dia que está a nascer. E o homem tende a repetir as festividades com a convicção – ou nem tanta – de que valeram as intenções. Há toda uma engrenagem oculta por trás dessas comemorações. Seria impossível para um leigo tentar descrevê-la. Interesses os mais diversos, forças de determinadas tendências que abrigam ideologias ou os mais variados propósitos. O fato é que os mais comemorados dias mundiais ou nacionais fenecem de imediato, mas prolongam-se ainda na mídia por poucas horas, pela necessidade da menção ao acontecido. Logo serão definitivamente esquecidos.
Sob aspecto outro, não seria o Dia Mundial ou Nacional uma fuga da solidão? As pessoas têm essa necessidade de perpetuação, de não se sentirem excluídas, de se congraçarem. A exclusão não acentuaria a solidão? Mesmo nas mais conhecidas entidades de classe, o indivíduo é insondável e a solidão pessoal pode lá estar. O alívio proporcionado pela efêmera festividade de classe ou de ideologia, ao resultar no esquecimento no dia posterior, não seria a certeza de que penetramos cada vez mais acentuadamente no disfarce do ser, uma necessidade de não conhecer o nosso interior, que pode ser até desastroso? Esses dias especiais, ao não terem na grande maioria consequências a seguir, não favorecem ainda mais a debilidade do cidadão? Há beneficiados movidos por outros interesses, pois comemorações requerem planejamento. Firmas especializadas encarregam-se de tornar o todo agradável aos participantes envolvidos no evento privado ou destinado às grandes coletividades. Mas, saliente-se, fugazes horas. Tão logo findas, equipes já estão a desmontar toda a parafernália. Sinto isso durante as corridas de rua. Quando trajetos contêm retornos nas avenidas, para regresso ao marco largada-chegada, passamos por contingente de outros atletas que ainda não contornaram. Quando esse grupo finda, pois já estamos em direção ao final da prova, verdadeiro batalhão de limpadores de rua está a recolher quantidade inusitada de copos de plástico espalhados pelas vias públicas. Uma ou duas horas após, ao se passar pelos locais, não há mais vestígios da corrida da qual participaram milhares de entusiastas atletas, profissionais e amadores. Assim também nos Dias Mundiais. Nada persiste, desaparecem os sinais. Outro Dia Mundial ou Nacional está por vir… Alegremo-nos, mesmo que no lampejo. Apesar do efêmero, Idalete, espiritualista, não deixa de ter lá suas esperanças, e a segunda quadra de seu curto poema trazuziria essa intenção:
Mas o Dia Universal
Aquele a que DEUS assiste
É o Dia Mundial
De Tudo quanto existe
A short poem written by my friend Idalete Giga about the “nothing day” was the origin of this post, a reflection upon the human need to celebrate world days proposed by national and international organizations. People gather together feeling they belong to a group and promote activities intended as fodder for stories and photos that will be forgotten the following day.