Questão de Estilo
Et quand on pense que le désert n’a été créé qu’en vue de l’oasis…
Henry de Montherlant
O tema recorrente veio a propósito. Estando a me preparar para nova digressão à Bélgica e Portugal para o próximo Maio, referi-me, em pronunciamento em data festiva na Casa de Portugal em Março último, aos objetivos da viagem que tudo tem a ver com a criação em terras lusíadas. Falava eu do grande compositor Fernando Lopes Graça (1906-1994), uma das maiores figuras da cultura luso-brasileira em toda a sua história e um dos mais importantes músicos do século XX em termos mundiais. Dizia da grande importância de sua produção composicional e literária, de seu engajamento ideológico, que o fez recluso em várias oportunidades no regime salazarista, e de sua força de expressão extraordinária.
Cerca de um mês após conversava com o bom amigo Fernando Gouveia, jovem e ativo membro das comunidades luso brasileiras em São Paulo. Queria saber mais sobre Lopes Graça e deste meu interesse confesso em relação à sua obra que será, durante Maio, várias vezes mencionada neste espaço.
Considero realmente vergonhoso o desconhecimento que se tem no Brasil da chamada música clássica, de concerto ou erudita portuguesa. Existem correntes “intelectuais” brasileiras, nem sempre claramente expressas, que à força de uma aproximação mais intensa com outros países europeus, economica e estruturalmente em posição de maior destaque, minimizam expressamente o que vem de Portugal. Seria possível até supor que séculos de colonialismo e de imigração – no caso, referia-me à da primeira metade do século XX, que mais sensível e pejorativamente marcou mentes brasileiras – tenham estabelecido um tipo de couraça à criação portuguesa e proporcionado a minimização de muito conteúdo que vem de Portugal. Diminuem ainda expressamente a inteligência de um povo, mercê dessa imigração que se fazia necessária à altura e que, no seu todo foi uma das responsáveis pelo desenvolvimento de tantas áreas, sobretudo da economia brasileira.
Num outro enfoque, musicalmente teimamos no Brasil em repetir fórmulas atávicas, repetitivas ad nauseam, e nada se faz a respeito. Antes, ratificam-se tendências à maneira de um realejo e ficamos a ouvir sempre as mesmas obras, executadas basicamente pelos mesmos intérpretes. Trata-se de um forte empobrecimento. Uma grande musicista nascida em terras lusíadas já me escrevia recentemente de Lisboa, a afirmar que “A doença de Chopin é incurável”, ao referir-se à verdadeira histeria hoje reinante em torno do segundo centenário de Fréderic Chopin (1810-1849), grande compositor, mas não o único. Legião de pianistas, pátrios ou não, estão a inundar repertório chopiniano em nossas salas onde a música se faz ouvir, com composições que já desfilaram incontáveis vezes por seus dedos nessas últimas décadas. Sob outro contexto, assim como na música pop, idolatra-se o que é conhecido. Se Chopin é extraordinário, Robert Schumann também o é, tendo sido, inclusive, compositor extremamente mais diversificado ao escrever para piano, conjunto de câmara, canto e piano, orquestra… Frise-se, o centenário do tão imenso Robert Schumann (1810-1856), está a ser comemorado até discretamente.
No que tange à riquíssima produção composicional em Portugal, intérpretes portugueses bem ventilados fora de seu país preferem sedimentar-se no repertório sacro santo perpetrado per omnia saecula saeculorum nas salas de concerto de tantos países. Logicamente, Chopin será foco de seus interesses. Ignoram a existência da composição musical em Portugal. Felizmente, alguns outros notáveis mestres da interpretação em solo português têm buscado o resgate, e essa atitude é salutar e louvável.
Voltando ao tema fulcral, dizia a Fernando que a massacrante maioria de nossos músicos desconhece a criação portuguesa, do gregoriano à contemporaneidade. Nada se faz. Culpa existe, igualmente, das comunidades portuguesas, que não incentivaram ao longo de décadas a divulgação do repertório português, clássico ou erudito. É um fato. Todavia, louve-se em contrapartida a perpetuação dos conjuntos folclóricos de dança e música autênticos existentes em São Paulo, que preservam com dignidade costumes das várias regiões do belo Portugal, contrariamente a outras atividades pretensamente de raiz, que podem beirar o caricato e que ainda são acalentadas. Pouco a fazer nessa área, pois mentes têm de ser estimuladas para que o crescimento aconteça. Tem a comunidade de se penitenciar. Mas há esperanças quanto ao resgate. Importa, no que tange à música de concerto, que partituras eruditas cheguem às mãos de mestres pátrios conscientes. Haveria a necessidade de uma vontade luso-brasileira nesse sentido. Urge acrescentar que o fascínio por concursos de interpretação, com resultados muitas vezes estranhos, seduz definitivamente músicos em torno de repertório por demais executado, o que provoca a pouca oxigenação das mentes, pois o jovem já se atira à mesmice desde cedo. Importante esse repertório sacralizado? Reiteradas vezes afirmei que sim. Importante e fundamental, mas não único. Eu próprio percorri, durante decênios, incontáveis obras do repertório sacralizado, fazendo-o ainda hoje, homeopaticamente. Não visito com maior assiduidade a obra dos mais frequentados compositores, devido à massacrante perpetuação por parte da maioria dos intérpretes nesse segmento. Há outros fantásticos autores não visitados. Valeria uma comparação. Não houvesse existido no século XV o infante D. Henrique, que buscou antever o desconhecido a partir da Escola de Sagres, aspiração seguida por D. João II e o sucessor, D. Manuel I, teria Portugal permanecido sem sonhos voltados às terras desconhecidas intermediadas por mares assustadores.
De Portugal, compositores como Carlos Seixas (1704-1742); Marcos Portugal (1762-1930), que viveu cerca de 20 anos no Brasil e autor de significativa expressão, mas pouco estudado pelos músicos brasileiros; Francisco de Lacerda (1869-1934); José Viana da Mota (1868-1948); Luís de Freitas Branco (1890-1955) ); Jorge Peixinho (1940-1995) aguardam divulgação. Tantos outros autores sequer conhecemos. Quanto a Fernando Lopes Graça, acredito ter sido uma das expressões maiores do século XX em termos mundiais. O que dele se sabe no Brasil? Praticamente nada. O que dele se ouve em salas de concerto? Uma fração infinitesimal, mercê de pouquíssimos músicos que à sua produção têm um olhar atencioso. Em Portugal, o resgate para o mundo da grande produção composicional já se faz sentir através de inúmeras edições de suas obras e gravações significativas. Louve-se a publicação crítico-literária do autor, que está a merecer uma edição mais atualizada. Grava-se a sua criação e intérpretes portugueses de sensível expressão dedicam-se a apresentar as principais obras do grande compositor nascido em Tomar. Perguntou-me Fernando a respeito da música brasileira em Portugal. Mercê da absoluta diferença populacional, é natural que intérpretes do Brasil, toquem o repertório brasileiro quando no país de Camões. Contudo, não nos iludamos. Basicamente quase todo esse manancial concentra-se em Villa-Lobos, ficando reservado pequeno espaço a outros compositores aqui nascidos.
Se a literatura portuguesa sempre teve guarida entre nós, mercê de viagens constantes de nossos estudantes, durante séculos, à tradicionalíssima Universidade de Coimbra em especial, o mesmo não se deu com a música, pois nossos músicos, mais acentuadamente a partir da segunda metade do século XIX, buscaram o aperfeiçoamento na Itália, França e Alemanha, o que provoca, em certa medida, uma desproporção quanto ao conhecimento, no Brasil, das áreas literária e musical portuguesas.
O tema é fascinante. Merecerá outros posts, na medida em que sintamos a continuação dicotômica. Temos de persistir, e sociedades de concerto necessitariam tomar consciência de uma rica produção musical em terras lusíadas. É questão de vontade e bom senso.
On the eve of a new concert tour in Portugal, where I will perform works of the Portuguese composer Fernando Lopes Graça, I can’t help considering how shameful it is for us, Brazilians, to ignore the works of this outstanding artist and the Portuguese classical music in general. The reasons for this, I believe, are our tendency to think much of everything that comes from European core countries – like France, Italy and Germany – and the stubborn insistence of Brazilian performers on exploring basically a handful of celebrated artist so as to win the hearts of the audience, ignoring those that are little known. Before Portugal I will go to Belgium in order to record a double album entirely devoted to works by Lopes-Graça, some of them world premiere recordings.