Agradável Surpresa em Horário Escolhido

Av. Santo Amaro vista de um ônibus. Traços de John Howard, 1981. Clique para ampliar.

Um dia nossas ruas e avenidas
se tornarão depósito de carros sem destino.

Francisco Osório de Oliveira Freitas Guimarães

O transporte urbano sempre me despertou interesse. É nele que se capta o estágio de um povo. O humor traduzido através das feições. Se majoritários os semblantes descontraídos, tristes, felizes ou resignados, pode-se aferir o momento social daquela população. Estou a me lembrar de comboio entre Potsdam e Berlin, seis meses antes da queda do muro. Nestas duas cidades dei recitais de piano àquela altura. Era visível o desalento, assim como em Sófia no ano de 1996, pois o país, saído há pouco do regime comunista, ainda não se encontrara. Nem por ser Democracia plena observam-se descontração ou alegria em semblantes. Existem índoles de determinados povos. Clima, religião, costumes enraizados favorecem esse estampar nas fisionomias parte do que vai no de profundis. É só querer observar e o livro se abre.
No longínquo 1981, percorria de ônibus o trajeto de minha cidade bairro ao centro, com um amigo, o grafiteiro Johan Howard, e passei a apreender atento seus traços que estavam a brotar em folha de papel durante o percurso. Dizia-me ele que seus olhos fixavam o que lhe causava impacto ou curiosidade, pois jamais uma viagem era igual à qualquer outra precedente.
Reiteradas vezes abordei o tema do transporte coletivo. Nos poucos horários diurnos em que o trânsito flui, é alternativa bem plausível. Nos outros, verdadeiro caos. Quando entendo viável prefiro o transporte urbano à utilização do carro. Evita o aborrecimento dos longos períodos a mudar as marchas em baixa velocidade e dos estacionamentos nem sempre confiáveis. Sob aspecto outro, possibilita a observação do povo e seu humor, do trânsito travado para os veículos particulares e incita-me à leitura. Enfim, tem lá seus prazeres.
Nesses últimos dias tive dois apontamentos em locais diversos. Seriam quatro trajetos em transporte urbano. Resolvi fazê-los. Primeiramente iria ao Shopping Eldorado, na Eusébio Matoso, a fim de retirar o kit da Corrida Circuito das Estações (21 de Março, 10km), e à Polícia Federal na Xavier de Toledo receber meu passaporte. Na minha cidade bairro, às 10hs, peguei um ônibus que percorre a Rua Guararapes e faz a curva à esquerda na Av. Berrini. Lá desci e fui até o comboio que vai do Grajaú a Osasco. Fiquei na terceira parada, Hebráica-Eldorado. Desconhecia esse trajeto. Limpeza na estação, vagão confortável com ar condicionado, verdadeiramente primeiro mundo. Entre as informações transmitidas pelo alto-falante, uma delas insistia na proibição da venda de produtos nas vias e nos comboios. Garantia de ausência de detritos. Disseram-me que nos momentos de pico o transtorno intenso faz esquecer a passividade de horários amenos, pois os comboios vão abarrotados. Apesar de ser exceção, cometeria ledo engano aquele que acreditar ser toda a malha ferroviária urbana dessa qualidade. Problemas que se arrastam há décadas apontam até para o descaso das autoridades. Aplica-se a mesma fórmula para os ônibus da cidade. Em ambos os casos, a agravar a situação, a insegurança, mormente nos transportes da periferia, leva o passageiro a temer diariamente pela vida, tanto pelo estado dos veículos como pela ação de meliantes.

Poucos metros antes do término do Circuito das Estações, 21/03/10 (10km). Foto: MidiaSport. Clique para ampliar.

Ao sair do Shopping peguei o ônibus que leva à Praça Ramos de Azevedo. Passarela a contento, e o veículo bem cheio, o que fez com que viajasse em pé. Jovens sentados ignoram a terceira idade. A um deles, que aparentava boa índole, solicitei que cedesse o lugar a uma senhora idosa. Aquiesceu, felizmente. Curiosamente fiquei a observar nesse longo trajeto as fisionomias das pessoas, pois em pé não é possível a leitura. Havia uma certa descontração e, por vezes, sorrisos dos ocupantes. O motorista, um negro extremamente simpático, era falante. Nomeava cada parada. Aos que entravam com carteiras a exibir fotos, sempre tinha uma resposta pronta. Tudo dito em voz alta. Para as senhoras idosas dizia sempre que, se não estivessem na terceira idade, assim mesmo as deixaria descer pela porta da frente, por serem bonitas. A lisonja servia como alisamento do ego das referidas mulheres e de motivo de risos descontraídos dos outros passageiros. A senhora sentada à minha frente olhou-me a dizer: “O senhor já imaginou se todos fossem assim? Como a vida seria melhor !” Ao chegar no ponto final, o motorista, figura realmente especial, levantou-se e desejou um bom dia a todos, esperando rever seus passageiros. Fiquei a pensar que encontrara um cidadão realmente amante de sua profissão, fato bem raro neste país.
Na Polícia Federal foi tudo muito rápido. A seguir desci as escadas rolantes do metrô Anhangabaú e fui ao terminal de ônibus. Impressionou-me a organização. Um povo enorme e as coisas a funcionarem com certa regularidade. Peguei o Terminal Santo Amaro, previsto para às 11:45. Saiu pontualmente. Sentado, aproveitei finalmente para ler, o que fiz até a chegada em minha parada, às 12:05. Ao todo realizei esse longo trajeto em duas horas e cinco minutos, rigorosamente impossível se tivesse usado meu carro.
Contudo, mercê do rush diário, fizera dias antes de ônibus, a mesma distância Anhangabaú-Campo Belo, com meu amigo maratonista Elson Otake, em duas horas. A todo o momento Elson dizia: “Se estivéssemos correndo já teríamos chegado”. E é a pura verdade, pois o percurso tem 10km. Poucos dias após, realizei essa distância, no Circuito já mencionado, em 01:06:28. Tornou-se cultural, e jovens não cedem seus lugares aos idosos ou mulheres grávidas. Observei que, quando “ameaçados”, fingem dormir. Como partimos do ponto inicial viemos sentados; mas, tão logo cheio o ônibus, Elson cedeu seu lugar a uma senhora da chamada terceira idade. De minha parte tentei por duas vezes fazer o mesmo, mas as passageiras disseram que desceriam logo após.
Todo esse trânsito enlouquecido não seria culpa do desvario da indústria automobilística, a despejar “com euforia” 1000 veículos-dia em São Paulo, e da não preocupação das autoridades com o aumento e alargamento das vias públicas principais? Fatalmente seremos levados ao grande impasse. A nossa malha urbana permanece basicamente a mesma. A indústria automobilística, contudo, só imagina o aumento da produção e do lucro. Não ouço um dirigente de empresa automotiva comentar as dificuldades à vista. Inacreditável ! Orgulham-se dos números crescentes, antecâmara do caos. Mentes esclarecidas, que pregam no deserto, afirmam que, em mais cinco anos São Paulo, trava. Há o metrô, mas em horários de pico pode representar a descida aos infernos. Capitalismo sem freios. Batalhas perdidas por cidadãos que ainda têm vãs ilusões.
Finalizava o post da semana quando se deu a inauguração de mais um extenso segmento do Rodoanel, monumental obra do governo estadual. Há que se louvar esse empreendimento. Desafogará – por quanto tempo? – região adensada de São Paulo. Oxalá, um dia, tenhamos governantes e empresários que entendam célebre frase proferida no início dos anos 70 pelo notável prefeito, engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, que preconizava que São Paulo “precisava parar de crescer”. Chegará esse tempo? As esperanças são mínimas.

On the good and the bad of public transport, its role as a good indicator of a nation’s socioeconomic development, and on the insane increase in the number of private vehicles in São Paulo, a city where the demand for space is already greater than the available road capacity.