Visita não programada
É sempre pelas igrejas que eu começo o inventário das terras onde chego.
Miguel Torga
Somos semelhantes a viajantes, penetrando, em nossa longa jornada, por um país novo e desconhecido, onde fados estranhos e estranhas aventuras nos esperam.
J. Krishnamurti
As religiões históricas têm a acompanhá-las tradições que não perdem intensidades. Meca para os muçulmanos, Jerusalém para judeus, cristãos e árabes, cidades do Himalaia para budistas tibetanos, a comunidade ecumênica de Taizé na França… A cristandade tem seus locais de peregrinações. Ungidos, permanecem como faróis para centenas de milhares de fiéis que acorrem às cidades eleitas e professam a identificação. Causas tantas levam romeiros às capelas, igrejas, basílicas e catedrais católicas espalhadas pela Europa e América Latina. Localizadas nas mais diversas latitudes relembram aparições ou passagens de figuras santificadas.
Se Fátima em Portugal e Lourdes em França têm afluxo, se Aparecida no Brasil recebe habitualmente quantidade expressiva de fiéis, seria contudo Santiago de Compostela, na Galiza, Espanha, um caso sui generis. Facilmente o leitor tem acesso, via internet, aos pormenores históricos e lendários referentes a Santiago de Compostela, povoada outrora por várias raças antes dos romanos. Para a cristandade, o provável encontro, no século IX, dos restos mortais de Tiago, um dos 12 apóstolos de Cristo, motivaria a crescente projeção da cidade. Provável igualmente a composição da palavra, que partiria dos termos Campus Stella, campo das estrelas. Teorias existem quanto à história da cidade e a etimologia da palavra Compostela. Ainda hoje provocam polêmicas.
Sem ser prioritário até certa data, um interesse pelo Caminho de Santiago surgiu quando visitei a Igreja Românica São Pedro de Rates, em Rates, Portugal, no ano de 2007, atenciosamente guiado pelo dileto amigo e competente professor de música José Abel Carriço, de Póvoa do Varzim, cidade próxima à Igreja. Apreendi, através da segura interpretação de José Abel, enigmas que envolvem, ainda hoje, toda a riquíssima arte escultural da Igreja, assim como a importância do local como estágio nas longas peregrinações a Santiago de Compostela, pois Rates fez parte de caminhos medievais portugueses que conduziam romeiros ao desiderato final. O templo de Rates teria sido edificado sob a égide dos monges beneditinos de Cluny – o mais importante mosteiro românico em França, fundado em 910, hoje bem minimizado, sobretudo devido à revolução francesa. De uma igreja construída entre os séculos IX e X, reconstruiu-se no período afonsino, em 1150, a Igreja de São Pedro de Rates, concluída no século XIII. Trata-se de um exemplo magnífico e sintetizado da arte românica em Portugal. Foi pois o histórico do templo em Rates, voltado às peregrinações a Santiago de Compostela, que despertou àquela altura, em 2007, a atenção do intérprete.
Finda a extensa tournée, tive os dois únicos dias de descanso antes do regresso ao Brasil, depois da intensa atividade de um mês, a compreender Bélgica e Portugal. Teotónio dos Santos e Maria Teresa, atávicos amigos que me hospedaram ao pé do Bom Jesus de Braga, onde têm bela morada, convidaram-me a conhecer Santiago de Compostela. Aquiesci imediatamente e para lá nos dirigimos, numa distância de cerca de 200km da Bracara Augusta.
Os propósitos que levam o visitante a estar em Santiago de Compostela podem ser os mais variados. Há aqueles que percorrem centenas de quilômetros, vindos das mais distintas regiões da Europa, empreendendo com fé e determinação a longa jornada. Desde a Idade Média caminhos foram traçados, oriundos preferencialmente da Espanha, França, Portugal… e ainda na atualidade inúmeras sendas se mantêm. Todas levam ao epicentro. As distâncias podem ser pequenas ou enormes, percorridas na maior parte a pé pelos peregrinos mais preparados. Pousadas ao longo dos trajetos, orientações oferecidas a grupos ou solitários viajantes, tudo a integrar uma dedicação que causa espanto ao simples turista. O fato é que, desde a Idade Média, os caminhos de Santiago representam no Ocidente fonte perene de peregrinação, elevação espiritual e relacionamentos culturais. Solitariamente ou em grupos, romeiros estabelecem critérios durante os percursos. A prece íntima ou comunitária, o canto como expressão da religiosidade e o caminhar a pé por longas sendas, são ingredientes que corroboram a magia de Santiago de Compostela. Impossível, mesmo ao leigo, simples turista, não ficar impactado pelo espetáculo. Milhares de peregrinos com o cajado a servir de apoio à longa caminhada, a concha – vieira -, a significar a purificação, o cantil para a água ou o vinho e mais o chapéu constituem objetos indispensáveis que identificam o peregrino.
Seriam levianas de minha parte quaisquer considerações a respeito do que representaram para a Idade Média as peregrinações a Santiago de Compostela. Mistérios persistem. Compêndios competentes escritos ao longo dos séculos, assim como literatura duvidosa, que serviria à auto-ajuda para milhões que dela necessitam e ao enriquecimento de espertos autores, corroboraram as implicações controvertidas quanto ao real significado das peregrinações desde a Idade Média. Fé e superstições. Como observa Arlindo de Magalhães, autor de A Caminho de Santiago (1992): “hoje há muita gente a falar de Santiago sem fazer a mínima ideia do que isso é ou foi”.
Confesso que lá chegar sem a prévia peregrinação a pé não causa o efeito acalentado por fiéis que perfazem longa jornada imbuídos de único propósito, a fé que conduz à Basílica. Mas, para o observador que viajou, em trajeto realizado no conforto, pode haver impacto. O gigantesco templo impõe-se, e os milhares de peregrinos a transitarem pela enorme praça frente à Igreja, pelas escadarias que saem do Portal Central da edificação sacra e pelas ruelas do entorno causam forte impressão. No interior imenso do templo, romeiros e outros fiéis rezam compenetrados. Neste 2010, Ano Santo Compostelano, a denominada Porta Santa fica aberta aos fiéis, que, em fila interminável, por ela adentram. Reza a tradição que graças são obtidas se o fiel passar pela Porta Santa e visitar o altar mór pela parte posterior, chegando a tocar a imagem do Santo. A obedecer calendário, ela é aberta no dia 31 de Dezembro de um ano, fechando-se no mesmo dia do ano seguinte.
A impressão foi forte. No regresso, comentava com os amigos a respeito dessa fé a mover peregrinos rumo a Santiago. Quantos enigmas nessas epopéias na Idade Média, a conduzir fiéis ! Ainda pudemos visitar Pontevedra, Vigo e a lindíssima Baiona antes de transpor as lendárias muralhas de Valença, já em solo português.
Encerrava-se a longa tournée com essa visita, que ficará na memória. Esforços conjuntos para a parcial edificação interpretativa de obras capitais de Lopes-Graça surtiram efeito. Ouvintes competentes estimularam o intérprete nesta nova peregrinação musical. Permaneço a contemplar a vida como um maravilhamento. Oxalá perdure.
I had two days off during my recent concert tour in Belgium and Portugal, devoted to visiting the cathedral of Santiago de Compostela, in Spain, destination of pilgrimages from starting points all over Europe and other parts of the world. Legend holds that the church was built on the spot where the remains of the apostle James have been found. I was strongly impressed by the great number of travelers in town, for religious or non-religious reasons. My interest in the historical cathedral was arisen after a visit, in 2007, to the Church of St. Peter of Rates in Portugal, one of the medieval pilgrimage routes to Santiago de Compostela.