Navegando Posts publicados em julho, 2010

José Maria Pedrosa Cardoso

 Clique para ampliar.

Assim como uma pedra sólida não é abalada pelo vento,
do mesmo modo o sábio
não é abalado pela censura ou pelo elogio.

Dhammapada

Aos meu alunos,
esta síntese máxima,
do que disse e deixei de dizer.

José Maria Pedrosa Cardoso (dedicatória)

Reiteradas vezes abordei a problemática do livro de determinada área escrito por especialista ou por leigo. No primeiro caso, pode-se ter, em princípio, a garantia do conhecimento da matéria. Quem escreve, a ter sob controle tema determinado, geralmente o faz com competência. Impossível não se captar a intimidade do autor com o roteiro traçado. Em senso inverso, todo aquele que escreve sobre área da qual desconhece fundamentos básicos, o que o levaria a ser entendido como amador ou soi disant, em determinado momento da narrativa evidencia a falha estrutural, mesmo que o discurso possa ter certa sedução. Infelizmente, a literatura sobre música de concerto, erudita ou clássica no Brasil tem apresentado acentuados exemplos dessas visitações não competentes, que se contrapõem a outras, felizmente de músicos os musicólogos. Se os primeiros chegam a ter guarida junto a meios de comunicação não protegidos pela visão crítica autêntica, sob aspecto outro não servem de referência, pois conceitos ou são “extraídos” de tantas obras consagradas, ou derivam de considerações arbitrárias. E todo o mal está feito. Frise-se, autores da área musical, nem sempre escrevem livros confiáveis. Todavia, obras competentes sobre Música, invariavelmente são escritas por músicos ou musicólogos de valor. E todo mérito se faz presente.
Saudara em 2009 o excelente livro de Júlio Medaglia (vide Música Maestro – Do Canto Gregoriano ao Sintetizador, 18/04/09) em que o autor, com pleno conhecimento da História da Música, percorre prazerosamente os vários períodos, explicando, a partir da experiência pessoal junto a uma infinidade de partituras, os muitos meandros que levaram a arte dos sons à contemporaneidade. Igualmente é o caso de uma nova visita à História da Música, desta vez empreendida por professor e musicólogo da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso (História Breve da Música Ocidental. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010). Poderíamos citar obras referenciais recentes de Pedrosa Cardoso, como O Canto da Paixão nos Séculos XVI e XVII: A Singularidade Portuguesa (Coimbra, IUC, 2006, 560 pgs.) e Cerimonial da Capela Real: Um Manual Litúrgico de D.Maria de Portugal (1538-1577) – Princesa de Parma (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda / Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, 157 pgs.) No livro em pauta, Pedrosa Cardoso, latinista impecável, ratifica a premissa do presente blog: “Não se pode entender e apreciar correctamente uma peça gregoriana sem conhecer o seu texto e reconhecer a funcionalidade da mesma dentro da liturgia cristã”. Afirmação que leva o leitor a confiar na competência, conditio sine qua non para a referência, pois estamos diante de um emérito conhecedor da música da cristandade, do gregoriano aos dias atuais. Já mencionara anteriormente que, no capítulo Nasce um Maestro, do livro de Medaglia, o polivalente músico dá uma verdadeira aula, mercê de acúmulos de rica experiência ao longo das décadas. Pedrosa Cardoso realiza trajetória paralela embasada no conhecimento, e faz o leitor viajar até a Renascença com leveza. Enfatiza a música desse período através dos três fatores básicos: o mecenas, o compositor e os executantes, e comenta a importância da Música Sacra e da Profana no Renascimento. Período rico na descoberta instrumental, que se expande às várias camadas sociais, e no emprego de sistemas de escrita musical que facilitariam a compreensão e divulgação da música.
Divide-se o livro em quatro capítulos e inúmeros sub-capítulos, tendo o som como epicentro: O Som Místico da Época Medieval, O Som Humano da Época Moderna, O Som Livre da Época Contemporânea e, o mais longo, O Som Plural da Época Atual. Nesses breves capítulos, Pedrosa Cardoso caminha com o leitor, ilustrando-o, sem ser enfático. As 159 páginas da História Breve da Música Ocidental tem o mérito da síntese. Não se trata de um resumo, mas de sementes fecundas plantadas, pois esses capítulos fornecem farto material – no caso, multum in minimo – destilado de maneira sequencial, sem quaisquer obliterações. Pequenos textos que podem propiciar ao leitor olhares outros, a visar ao aprofundamento. Se as tantas Histórias da Música, das caudalosas às mais concentradas, percorrem os períodos, muitas delas a evidenciar o conhecimento do autor ou autores, não poucas vezes tem-se o conteúdo doutoral. Tornam-se referência, mas dificilmente o leigo poderá compreender.
Se do barroco, passando-se pelo classicismo e pelo período romântico – que na realidade não tem interrupção do início do século XIX a meados do século XX, mas sim vertentes agregadoras ou diferenciadas, mas românticas sempre – às fronteiras do século XXI, naquilo que Pedrosa bem define em subcapítulo como “pluralismo cultural”, seria todavia a música do último cento que atrai um olhar ainda mais pormenorizado do autor. Dir-se-ia que as múltiplas tendências surgidas após a desagregação da tonalidade fascinam Pedrosa Cardoso, pelo multidirecionamento a envolver técnicas composicionais, convivência do erudito com o popular, tecnologia, sintetizador, o concerto democratizado a abrigar tendências divergentes e, paradoxalmente, em situações de congraçamento, sob um mesmo teto. E como fonte viva e até “independente”, a presença da música de raiz, o folclorismo que pulsa e que teria um olhar diferenciado sobre a sua autêntica manifestação, mais acentuadamente a partir da segunda metade do século XIX.
O fato de a música até o século XX ter sido extremamente ventilada em infindáveis compêndios propiciaria a Pedrosa Cardoso – provável suposição – um debruçamento maior em nomes da criação musical, sobretudo da segunda metade do século XX, não se alongando sobre determinadas figuras basilares dos séculos precedentes. Seria possível aventar a falta de recuo histórico para a avaliação de inúmeros compositores pormenorizados por Pedrosa Cardoso e pertencentes ao século XX. Entende, contudo, ter sido Debussy “o grande nome da charneira dos séculos XIX-XX, tal como Monteverdi foi para os séculos XVI-XVII e Beethoven para os séculos XVIII-XIX”. Agregaria o autor, no decurso da História, Schöenberg.
A facilidade com que os vários temas são tratados por Pedrosa Cardoso, assim como a sua capacidade em tornar segmentos complexos ou controvertidos da História da Música palatáveis ao estudante e ao leigo, já bastariam para a recomendação da obra. Uma pequena observação apenas, que deveria ser entendida como um desafio. Teria faltado no significativo livro, capítulo reservado à música em Portugal. Aguarda-se sempre a sua inserção definitiva nos repertórios internacionais. Nesse cenário global irreversível, em que a música se coloca como uma das mais importantes fontes do sentir e do pensar, urge o esforço coletivo nesse desiderato de divulgação mais ampla, interna e externamente, da música criada em terras lusíadas. E Pedrosa Cardoso tem-se mostrado, através de obras anteriores, um grande defensor da música portuguesa. Quem sabe não dedique a sua pena a uma próxima História Breve da Música em Portugal?
Instigante a frase final de História Breve da Música Ocidental: “Não se sabe como será a música do futuro. Talvez esta ignorância, humildemente assumida, explique o mistério do som, que mudará, ou não, à justa medida do ser humano”.

A few comments on the book “História Breve da Música Ocidental” (A Brief History of Western Music), written by José Maria Pedrosa, musicologist and Professor at the University of Coimbra. The book gives an overview of different stylistic periods in music history from the Medieval days to the present, with a particular focus on the 20th century and the multiple tendencies that emerged as music progressed towards atonalism. Pedrosa Cardoso has a gift to express the most using the least and his short chapters are seeds inviting readers – music students and the general reader as well – to investigate further the subjects covered by the book.

Nuances e Percepção

Charge de Luca Vitali. Clique para ampliar.

Seria preciso não viver para negar que o mundo seja mau;
mas é nessa mesma maldade que devemos procurar
o apoio em que nos firmamos
para sermos nós próprios melhores
e, como tal, melhorarmos os outros.

Agostinho da Silva

Estava a conversar com Júlio, motorista de táxi. Tem ponto fixo não longe de minha casa. A série de descompassos, neste cotidiano que deveria ser menos amargo, fez com que o bom profissional, que encontro praticamente todos os dias, me questionasse: “o homem está se tornando de pior índole”? O tema surgiu como última gota em um copo, após o infausto acontecimento em torno de mulher desaparecida a envolver uma série de personagens, inclusive um esportista renomado. Sentei-me no banco dos motoristas e iniciamos boa troca de conceitos, ele a me propor perguntas inteligentes e eu, na medida do possível a tentar respondê-las. E assim permanecemos por um bom quarto de hora, sempre a comentar fatos últimos em que a tragédia foi epílogo, ou em que a corrupção teve mais um capítulo. Ao chegar diante do computador, a essência da conversa desfilou com dados complementares.
Desde a antiguidade discutiu-se a respeito de caráter, gênio, predisposição a ânimos. Nasce o homem já configurado em suas inclinações aos denominados bem ou mal, ou a sociedade que o circunda interfere, a modificar tendências? É como a história da origem, ovo ou galinha? Inclina-se o ser humano a apontar índoles ascendentes, generosas ou nocivas, assim como meio estável ou desestabilidade absoluta, a fim de explicações. Seria compreensível a existência de interpretações as mais díspares em defesa de uma vertente ou a conclamar as duas, ou outras mais ainda.
A sociedade atual tende, em quase todos os setores, à anestesia parcial, mas intensa, que faz vislumbrar apenas uma parte da consciência. Políticos têm o verbo mentir como verdade absoluta; a corrupção é endêmica; a máquina pública sempre em expansão é o Leviatã, o monstro que tudo devora; os impostos batem recordes a todo instante; empresários rotulam produtos com peso menor, sem contrapartida no preço, e nada acontece; a indústria automobilística alardeia aumento da produção, mesmo a saber que já não há mais espaços nas vias públicas das grandes cidades e que, celeremente, caminhamos em direção ao caos viário; o boom imobiliário chega a ser insano numa urbe sufocada como São Paulo; bancos fazem propaganda de balanços sempre ascendentes “geometricamente”; Saúde, Educação e Segurança estão sucateadas; a Justiça é lentíssima e grassa a impunidade como uma das consequências; a grande chaga da droga; a desarticulação da família. Perguntou-me Júlio se tudo isso poderia influir na índole do jovem. Claro que sim, respondi-lhe. Na medida em que células mestras da sociedade se decompõem, toda uma cadeia degenerativa se acentua. As fronteiras entre o bem e o mal já não se mostrariam precisas, mas envoltas em nuances e, ao brotar a permissividade como erva daninha, dificilmente haverá retorno. Conceitos foram alterados, a maneira de viver transformou-se. Todos os nossos sentidos têm sofrido o impacto dessas metamorfoses.
A certa altura passa diante de nós um casal de jovens com roupas estranhas, piercings e tatuagens. Júlio observa: “é isso?”. Sim, meu amigo, eis mutantes diante de nós. Tudo o que estão a evidenciar diante de nossos olhos é uma forma de auto-afirmação ou provocação. Uma mistura total. Tantas vezes essa aparência, a ser mostrada diante de seus pares nas intenções, leva o jovem aos chamados megashows, aos bailes funk, às estranhas reuniões de “tribos” ou mesmo – tênue linha a separar – à droga.
No ambiente com oxigenação mental quase nula, em que o pensar individual desaparece, inclusive pelo excesso de decibéis, haverá sempre aqueles que, visando ao lucro a partir de rebanho cada vez maior, terão influência no comportamento desse jovem. Derrubadas quaisquer barreiras que levem a juventude a pensar, ela será presa fácil. Desapareceria a noção da responsabilidade, não mais existiria a aferição de valores. Daí para o gesto premeditado e tresloucado tem-se um caminho pequeno. O cidadão assiste passivamente, nos noticiários televisivos, à apresentação de assassinatos e desvarios cometidos, sendo que as fisionomias dos autores permanecem gélidas, hirtas e sem a menor emoção. O esportista sob suspeita, treinaria a aparentar descontração, poucos dias após ter-lhe sido imputada a possibilidade de mandante de um crime cujos pormenores se afiguram como bárbaros, mas ainda envolto em névoa. A banalidade quanto a esse possível assassinato e os outros 137 que ocorrem diariamente no país – sim, 137 é a média – estarrece ! A mídia tem farta “munição” e, paradoxalmente, vive, em parte, todo esse surrealismo até coletivo. Você, meu caro Júlio, já presenciou no campo ou no mato os abutres a rondarem animal morto? Não se sabe como e nem de onde, mas horas após lá estão eles a sobrevoar o local para a faxina a seguir. Quando acontece um mal absoluto, logo depois a mídia lá está em número enorme. Se uma nave alienígena sobrevoasse ambas as situações não faria diferenças, creio eu. A suposta naturalidade é presença constante, tanto nos hodiendos crimes, como naqueles que inundam os meios de comunicação e concernentes ao colarinho branco, igualmente sórdidos. Toda essa exposição causa impacto e neuroses de várias intensidades. Acredito, Júlio, que estamos diante de tsunamis diários e crescentes. Se você verificar a percentagem altíssima de tempo televisivo que os canais dedicam em seus noticiários ao crime seguido de morte, ao estelionato, à corrupção, à tragédia imposta pela mãe natureza, ficará pasmo. E as boas ações que acontecem todos os dias, ou às culturas? Dedicam espaço reduzido como se estivessem a mostrar a generosidade da rede de televisão. Caminhando pelas ruas de Ghent a conversar com um amigo belga, mostrou-se meu interlocutor abismado quando lhe falei de assaltos seguidos de morte no Brasil. Disse-me que entende inadmissível essa situação, banal e rotineira entre nós. E de pensar, segundo o amigo da região da Flandres, que na Bélgica há cerca de 7 a 10 assassinatos por ano, número considerado altíssimo segundo ele ! Passeávamos em bairro residencial sem grades, situação rigorosamente impossível em nossa megalópole. Chamou-me a atenção por ocasião do deplorável Mensalão, em que todos se auto declararam inocentes, alto mandatário conclamar que ninguém era mais honesto do que ele. Mais recentemente, a seguir a mesma cartilha, um outro político a dizer que não há neste país alguém com ficha mais limpa do que a sua. Faces “afirmativas” de moedas diferentes, mas moedas…
Exemplos incontáveis existem na triste senda do crime. O que me parece preocupante é a aceleração desse degenerar dos costumes. O cidadão pode sofrer os impactos e, pouco a pouco, passar pela metamorfose que forjará outra possível índole. Seria a verdadeira que estava adormecida? Leviano afirmar a respeito. Apesar de avanços, sabemos ainda pouco a respeito da mente humana. De qualquer maneira, ainda há salvaguardas. Famílias bem estruturadas em todas as camadas sociais; noções de solidariedade, respeito e generosidade incutidas desde o nascer; formação cultural como um todo a abranger valores, independentemente das classes, ainda existem. Sim, existem.
Júlio mostrou-se atento e preocupado. Bom cidadão, apregoou que espera continuar a ser o motorista que sempre foi. Que ele é atencioso e educado, eu já sabia desde há muito tempo. A sua índole é das boas. Que permaneça assim, a granjear a admiração de seus amigos e clientes.

A reflection upon the excess of violence and offensive material in the media and its negative consequences on the way people act: numbness in face of human suffering, acceptance of violence as a way to solve problems, antisocial behavior, lack of critical thinking, incivility. It seems the correlation between violent media and aggressive behavior is strong. Our only hope to reverse this trend is the existence in all social classes of families still able to lay a strong foundation for their children, teaching them good values and attitudes that will enable them to interact in a positive way with their environment.

Mario Benedetti

 Clique para ampliar.

Estão em mim as estações
como se fossem uma só as quatro
sempre estão em mim
são quatro faixas de um abismo
da aurora até o ocaso…

Mario Benedetti

O espírito de síntese seria talvez uma das maiores dificuldades de um escritor. Romances caudalosos ou não, mesmo que granjeiem reputação, tantas vezes se perdem nos meandros das histórias e dos personagens. Poder-se-ia afirmar que, seja qual for a dimensão de um texto, ter um norte como meta torna-se relevante. Entendido sob esse prisma, a literatura novelesca, como exemplo, que frequenta os televisores em tantos horários, perde um sentido básico, pois estaria a depender das marés representadas pela opinião pública. O autor do texto estaria sempre sob a tensão que o alterar enredo provoca.
Recebi de minha dileta amiga Jenny Aisenberg o livro Correio do Tempo, de Mario Benedetti (Rio de Janeiro, Alfaguara, 2007. Tradução Rubia Prates Goldoni), acompanhado de referências elogiosas da também colega acadêmica. Esperei o meu tempo e Correio do Tempo acompanhou-me em minha recente viagem. À medida em que os contos curtos e as missivas ficcionais vão sendo percorridos, um tipo de sedução contagia o leitor.
Mario Benedetti (1920-2009), nascido no Uruguai, é um dos grandes escritores latino americanos. De origem simples, desempenhou várias atividades antes de se tornar jornalista. Suas convicções o levariam ao exílio em 1973. Permaneceria durante doze anos “migrando” para Argentina, Peru, Cuba e Espanha. A Trégua é seu romance mais ventilado no vasto repertório de suas obras.
Transitar pela livro de Benedetti é percorrer o universo do conceitual simples e de conteúdo. Não tergiversa ao abordar o cotidiano. Amor, desalento, sarcasmo, solidão, humor em várias roupagens, velhice inexorável, contos e cartas ficcionais vislumbram a rotina, a lembrança ou o passado que traz amarguras, mormente quando a temática é o regime político ditatorial que, à medida que lança tentáculos, mais cruento se torna. A preponderar, possivelmente, uma explícita nostalgia que passeia pelo livro em muitas tonalidades. Se o humor emerge, não se descarte uma dose desse nostálgico sentir. Um passado pleno de incontáveis experiências possibilita ao autor, um agudíssimo observador, metamorfoseá-las ao sabor das circunstâncias. Não seria Benedetti a recordar ficcionalmente cenas vividas em muitas narrativas de Correio do Tempo?
O escritor e poeta tem o dom da metáfora decodificada. Como flash, ela surge e ao leitor captar instigantes mensagens. Pormenoriza partidas e chegadas. Dir-se-ia que, aos que ficam, restaria um conformismo surdo; aos que partem, a incógnita, em situações marcadas por resultados, ideológicos ou não.
Mencionar algumas das imagens criadas pelo literato uruguaio torna-se necessário, pois frases metafóricas ou associativas corroboram a qualidade insofismável do autor nesses breves contos e cartas. Os anos de repressão permanecem em seu pensar: “Ou você não sabe que a democracia não chegou aos cemitérios? Só os vencedores têm túmulos”. Àquele que viu desaparecer nos difíceis tempos a amiga querida “Causava-lhe amargura e assombro ver que as dele eram mãos que não tocavam, não apalpavam, não acariciavam. Mãos solitárias, abandonadas, viúvas”. Outro personagem deixa mensagem gravada ao seu algoz do passado no breve Secretária Eletrônica: “Não sei se algum outro de teus cadáveres vai aparecer, como eu agora, nesta secretária eletrônica. E se não sei é porque aqui não comunicamos. Somos uma congregação de solitários. Sabia que a morte é uma interminável planície cinzenta? Garanto que não voltarei a te incomodar. Isso mesmo, a morte é uma interminável planície cinzenta. Uma planície cinzenta. Sem aleluias. Cinzenta”. Em Bolsa de viagens curtas, mais desalento da parte de quem viveu o período da repressão: “… porque já não mais conseguia viver com os antídotos do medo, e sentia que aos poucos começava a odiar minhas esquinas prediletas e as árvores encurvadas, e já não tinha tempo nem vontade de me refugiar no caramanchão do bairro das Flores, e os amigos de sempre começaram a ser do nunca, e havia mais cadáveres nos lixões que nas funerárias, então abri a bolsa das viagens curtas (embora soubesse que essa ia ser longa) e comecei a enfiar nela lembranças ao acaso…”. Foto antiga leva personagem a recordar grupo que fazia parte de sua vida: “… outros dois se tornaram, com o tempo, finos, elegantes delatores, e hoje gozam do respeito da amnésia pública. O último sou eu, mas também sou outro, quase não me reconheço, talvez porque se me enfrento ao espelho não estou em sépia”. Primavera dos outros traz à superfície o grito dos que não mais creem, o hodierno sem esperanças, mas em processo de progressiva deterioração: “Hoje quando você enfrentar o noticiário na televisão e vir mais negrinhos esqueléticos do Sudão, jangadas com marroquinos naufragando em Gibraltar, índios do Amazonas empurrados para o próprio fim, cursos básicos de violência juvenil, além da desenfreada e programada destruição da natureza, e depois, no mesmo canal ou no seguinte, a arrogância dos governantes, demo ou autocráticos, dá quase na mesma, exibindo sem pudor sua fome de poder; sua indiferença pelo próximo, singular ou plural, e também os grandes salões da Bolsa, com a histeria milionária dos apostadores; quando vir tudo isso, talvez entenda por que não suporto mais o mundo”. Em Não há sombra no espelho, a instigante frase “A sombra é dos corpos, não das imagens”.
Seria engano acreditar que apenas plúmbeos quadros percorrem Correio do Tempo. Impossível para Mario Benedetti não resgatá-los, pois fizeram parte de seu viver. Quando o humor ou o irônico aflora, uma fina camada de sarcasmo pode ser observada. O autor sabe dosar suas emoções. Jamais chega ao humor banal ou insólito, mas sim àquele que leva à reflexão. Perpassa esse despojado humor em contos como Jacinto, Cambalache, Conversa, O dezenove, Assalto à noite. Nostálgico, O Velho Tupi, café tradicional de Montevidéu, fez lembrar O Ponto Chic (vide Frederico Branco (1927-2001) – A revisitação das imagens perdidas, 09/03/07).
Em O inverno próprio, é o professor aos oitenta anos que, “Da sua cadeira de balanço, não consegue ler as letras de cada lombada, mas reconhece a maioria dos livros pela cor, pelo formato, pela encadernação ou pelo logotipo, ou então (e nisso é especialista) por suas marcas de velhice.” Precedentemente citei o autor português António Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo, e quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide “Crônicas contra o Esquecimento” – A Profissão e o Olhar Diferenciado, 20/07/07).
Correio do Tempo seduz. A noção desse tempo, século recém findo, pode ser apreendida em espírito de síntese em seu poema O Acabou-se, que conclui a coletânea de contos e cartas reunidos:

“Eu trago os pés descalços para entrar no século
E o coração despido e a sorte sem asas
Vamos não estreá-lo com quimeras exangues
E sim com a dor da alegria”

The Uruguayan writer Mario Benedetti (1920-2009) is one of the greatest names of the Latin American literature. I’ve just read his book Correio do Tempo (El Buzón del Tiempo in the original), a collection of short stories and poems about love, death, distress, solitude, growing old. The author lived his life fully an was a keen observer, conveying the impression that part of his own experiences have been turned into fiction. A very interesting book, inviting readers to ponder on the theme of the passage of time.