Quando Renovar tem Implicações
O que é verdadeiramente tradicional é a invenção do futuro.
Agostinho da Silva.
Retorno à minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo. A certeza de que a tournée pela Bélgica e Portugal teve guarida, mormente se considerada for a programação, pois dois recitais inteiramente dedicados à criação do notável compositor português Fernando Lopes-Graça. Se gravação durante três madrugadas na Bélgica, oito recitais em Portugal, três conferências e mais três masterclasses preencheram o mês inteiro, salientaria que há público e público. Para repertórios especiais há sempre tributo a pagar, pois, devido ao desvio do sacralizado, a grande maioria dos frequentadores de concertos volta-se ao que é conhecido, a não se interessar pelo diferente. Sente-se segura, não há choques ou impressões novas a serem convertidos pelas mentes e a “aparência” da sapientia se referenda.
O público do inusitado é particularmente consciente. Tem ele a perspectiva histórica. Sabe decodificar mensagens pouco visitadas ou inéditas. O impacto o tornará mais crítico quanto à criação musical, pois o comodismo auditivo não é de sua alçada. Participa da apresentação, interessa-se por comentários que introduzam o repertório novo à sua apreciação. Essas reações foram sentidas pelo intérprete, ao entender bem previamente que as obras apresentadas tinham imenso valor, apesar de ainda ignotas. Canto de Amor e de Morte, assim como as Músicas Fúnebres, essas últimas apresentadas integralmente e a ter cerca de 45 minutos de duração, tiveram recepção surpreendente, tão grande a força que emana dessas criações. Se o público que acorreu aos recitais foi seletivo, ficou-me o grato diálogo que mantive com músicos competentes e ouvintes a respeito das obras. Isso permanece.
A premissa se mostra necessária. É esse ouvinte atento e voltado ao pouco frequentado ou inédito, que já apreciara anteriormente o repertório sacralizado, continuando a fazê-lo quando oportuno, que estará a divulgar a outros interessados essas composições qualitativas. Diferente do majoritário, que compreende que se tem de ouvir quase que exclusivamente o que a tradição manteve. Este o público que se desloca para apreciar dezenas de vezes as mesmas composições, fartando-se de um prazer da escuta que lhe garanta a comunicação com seus pares, o incenso aos mesmos intérpretes e a convivência com a sua consciência acomodada. Nada a fazer. A realidade tem-se mostrado, hélas, a cada temporada mais apegada ao consagrado.
Foi pois positivo o balanço. As gravações na mágica capela de Sint-Hilarius, na Bélgica Flamenga, correram em clima de tranquilidade. A planura da região estimula a imaginação. Após, percorrendo Portugal para os recitais, ouvi comentários preciosos no sentido da certeza de que criações extraordinárias foram apresentadas. Em todas as récitas dizia conceitos que apregoo desde a década de 80 (vide As Mortes do Intérprete no item Essays do site). Nós, intérpretes, somos apenas corredores de revezamento, sendo o compositor qualitativo o maratonista que percorre um caminho sem fim. Um dia, nós findamos a trajetória, mesmo que gravações façam perdurar durante decênios a nossa passagem pelo planeta. Nada além disso. Temos a incumbência essencial da transmissão, sem a qual a obra de arte musical corre o risco de se ver estagnada, esquecida ou sepultada. A qualidade permanece na partitura, e o intérprete que nos sucede será o novo estafeta, já a saber que seu antecessor cumpriu sua missão e a entender que, um dia, haverá o seu término igualmente nesse perene revezamento. Essa é a única certeza rigorosamente precisa. Quanto à obra excelsa, esta permanece, a independer se durante décadas ou mais mantiver-se oculta por desconhecimento ou até descaso. Daí ter enfatizado a audição que se faria de criações basilares do grande Lopes-Graça. Estas, a partir dessas primeiras audições, estarão a ser frequentadas por outras mentes, corações e dedos. E a saga continuará, a depender da apreensão de outras gerações de ouvintes. No programa ao vivo da RTP – Antena 2, às 9h do dia 20 de Maio, bem conduzido pelo experiente Paulo Guerra, comentei a qualidade ímpar das obras apresentadas de Lopes-Graça e a origem de meu envolvimento e consequente entusiasmo em divulgá-las. Voltei a elogiar intérpretes portugueses mais dedicados ao país, nesse grande esforço na divulgação da música qualitativa de Portugal de méritos incontestáveis, mas frisei enfaticamente o descaso quase que pleno de outros, sobejamente conhecidos fora das terras lusitanas, que se negam, quando em tournées alhures, a tocar a criação portuguesa. Tendo enorme contingente de ouvintes pelo país, as palavras parecem não se ter perdido no deserto. Houve guarida.
Causou-me impressão a leitura das custosas e cuidadas publicações de duas das maiores instituições que promovem concertos em Portugal. Lembraram-me algumas de outros países, todas destinadas a um público de classe social mais abastada. Repertório preferencialmente bem conhecido e pequenos textos explicativos de rara puerilidade, a nada acrescentar, a não ser a perpetuação do que é de domínio comum. Também nesses casos nada a fazer, pois o público frequentador das temporadas repetitivas continuará “pleno” de certezas provocadas por essas pílulas convertidas em minitextos. Chega-se ao limite do óbvio. O dicionário de música mais elementar mostra-se mais eficaz !
Determinadas situações durante a digressão deixaram o intérprete emocionado. Ao doar fotos originais com Lopes-Graça, tiradas entre 1958-59, e partituras manuscritas autógrafas, que me foram oferecidas pelo compositor, para a Casa Memória Lopes-Graça, em Tomar, e para o Museu da Música Portuguesa, em Cascais, respectivamente, compreendi que esses preciosos documentos estavam, enfim, nos lugares certos. Em Tomar, como não me sentir feliz ao receber das mãos do Presidente da Câmara Municipal, Dr. Fernando Rui Corvêlo de Sousa, a Medalha em cerâmica da Casa Memória Lopes-Graça? Foram feitas 50 e recebia a de número dois, tendo anteriormente a Ministra da Cultura de Portugal recebido a primeira. Privilegiado ao ser convidado pela Diretora do Museu da Música Portuguesa, Dra. Vanda de Sá, para integrar comissão que visa à publicação das obras para piano de Lopes Graça. Empreitada de fôlego. Contentamento ao saber que os CDs que gravei na Bélgica já têm interesse sensível em Portugal para 2011. Gratidão pelo apoio recebido do Banco Banif do Brasil nestas duas últimas viagens para apresentações musicais.
As primeiras absolutas de Canto de Amor e de Morte e da integral das Músicas Fúnebres, realizadas no único auditório emocionalmente possível para o intérprete para premières do Mestre de Tomar, a Academia de Amadores de Música de Lisboa, templo de Lopes-Graça, tão bem conduzida pelo amigo estimado e competente professor Antônio Ferreirinho; o recital na Igreja do Convento Nossa Senhora dos Remédios em Évora, criteriosamente programado pela Diretora do Eborae Musica, a sensível Helena Zuber; Tomar, o torrão natal de Lopes-Graça, e o Canto Firme dirigido pelo ótimo e sensível regente coral Antônio de Sousa; Cascais, já mencionado, onde conferência e dois recitais na Casa da Cultura e no Museu da Música Portuguesa congraçaram-se em torno de Lopes-Graça; Lagos e as três master classes para jovens talentosos; mais, ainda, os recitais em Vila do Bispo e Monchique, em duas pequenas e belas igrejas barrocas, sempre acompanhado, na belíssima região algarvia, pelo competente professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso e esposa; finalmente, Braga, berço de meu pai, onde se ouviu a augusta criação de Lopes-Graça na Sala dos Congregados da Universidade do Minho, em recital promovido pelo Departamento de Música, dirigido pela professora Elisa Lessa.
Projetos surgem, na medida em que continuamos a sonhar. Sem essa esperança no descortino, que tem sempre de ser vislumbrado como objetivo já findo, mesmo que no nascedouro, a existência perde o sentido. Ainda há tempo para novas obras a encantarem o intérprete. Pulsação.
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