XVIº Concurso Internacional de Piano
Frédéric Chopin – Varsóvia
Há almas que amam os sons.
Franz Liszt
Em vários posts teci considerações a respeito de concursos, sejam eles acadêmicos ou de piano. Se tantos obedecem a critérios de absoluta lisura, a não faltar o descompromisso de jurados com concorrentes, tantas mais vezes vícios se apresentam, e o público manifesta-se, apoiando ou não os resultados. O júri, não poucas vezes, ignora a possibilidade futura do concursado, interessando-lhe sim, hélas, em também não raras oportunidades, o imediatismo.
Meu prezado amigo António Menéres, de Matosinhos, em Portugal, enviou-me todo o precioso material referente ao XVIº Concurso Internacional Frédéric Chopin, realizado recentemente em Varsóvia. Os recursos tecnológicos existentes hoje não permitem desvios, e os ínfimos pormenores das execuções dos finalistas não passaram ao largo. São apreendidos para quem quiser ver e ouvir. As imagens sonoras vieram acompanhadas da recepção pública e crítica, e algumas não pouparam comentários sobre preferências que não privilegiavam a primeira colocada no concurso, a pianista russa, também excelente, Julianna Avdeeva, de 25 anos. Faz parte o debate de ideias e ele existiu, acaloradamente. Todavia, o fato de lá não estar impede-me de qualquer juízo relacionado às controvérsias.
Se os vários links me fizeram ouvir seis candidatos, a vencedora e dois outros que obtiveram, empatados (ex equo), o segundo lugar, e mais os terceiro, quarto e quinto colocados, há considerações que me parecem pertinentes, mercê da enorme diferença de temperamento dos concorrentes. Centrado em Frédéric Chopin (1810-1849), houve expectativa acima da habitual devido ao segundo centenário de nascimento do compositor. Julianna Avdeeva, Lukas Geniusas (Rússia/Lituânia-1990) e Ingolf Wunder (Áustria-1985) realizaram provas que apenas comprovariam o altíssimo nível desses candidatos. Entretanto, nada lembrou identidade. Das obras interpretadas, sim. Porém, as concepções diferenciadas dos três poderiam dirigir as preferências do público para várias direções.
Ouvir os três pianistas mencionados é ter a percepção clara de características rigorosamente distintas do entendimento da interpretação musical, da apreensão da estrutura, da forma e do gênero musical, assim como da captação de temperamentos diversos. Julianna Avdeeva mostrou que o trabalho intenso pode fluir na execução impecável, mas onde o esforço para a realização ficaria transparente através não apenas da postura ao piano, mas sobretudo na compreensão do técnico-pianístico tão bem realizado, mas a clarear ao ouvinte o imenso trabalho para que a consecução atingisse alto nível. Diria que a própria interiorização, ao se externar, faria perceber a labuta intensa. Minimiza a pianista ? Absolutamente não, pois a música flui impecável através de seus dedos, o que provoca ainda maior admiração.
Ingolf Wunder é apolíneo. Impetuoso, senhor de um domínio técnico-pianístico absoluto, no qual transparece o imenso prazer em tocar. Exagera nos efeitos, nos tempi, a causar forte impacto. O terceiro andamento do Concerto nº 1 em mi menor op. 11 demonstraria essa naturalidade e a alegria na interpretação. Tudo flui sem o mínimo esforço. Aos 25 anos, suas performances preferenciaram as obras de intensa virtuosidade. Saliente-se a execução fantástica, preferencialmente sob o aspecto técnico-pianístico, dos Estudos op. 10 nº 5 e op. 25 nº 6 (terças). Deste último, realiza a sorrir a dificuldade tipificada. Vladimir Horowitz (1903-1989), essa lenda maior do piano no século XX e possuidor de técnica e musicalidade descomunais, já asseveraria o implacável desafio contido nesse Estudo. Pois a interpretação do jovem austríaco tem esse apetite, que faz descartar os obstáculos inerentes que se lhe apresentam.
François Couperin (1668-1733) preferia voltar-se à interpretação que o sensibilizava, em detrimento daquela que lhe causava espanto”. O pianista da Rússia/Lituânia, Lukas Geniusas, foi o que mais me impressionou. Sem a exuberância que caracteriza Ingolf Wunder, mas possuidor de técnica apuradíssima, suas interpretações têm a chama integral da música. A maneira como cuida da frase musical, os sentidos profundos da agógica e da dinâmica, o equilíbrio com que sabe dosar as características rítmicas das magistrais e distintas três Mazurkas op. 59 em suas sutis flexões, são de um artista completo, sans reproche. Como entender a essência da Mazurka sem o mais apurado senso do rubato? Geniusas atinge esse pleno desiderato. Nas tantas obras apresentadas nas várias fases do concurso, as linhas que compõem a estrutura de uma obra ganham absoluta independência e… sequência, o que é básico. Têm elas intensidades diferenciadas na permanência, o que é raro entre os pianistas. Sua presença física se contrapõe à dos dois precedentes, pois, à maneira do notável Cláudio Arrau (1903-1991), nenhum gesto é feito no sentido de causar impacto, como no caso específico de Wunder. Ao escolher, entre os Estudos, o mais introspectivo deles, o op. 25 nº 7, já não estaria a demonstrar que causar impressão frente ao público não é sua senda? Magnífica sua performance. Sob outra égide, não atenderia sua interpretação dessa obra à visão romântica do insigne pianista Alfred Cortot (1877-1962): “Uma interpretação verdadeiramente musical dessas admiráveis páginas exige que, acima do lamento doloroso da mão esquerda, sob o peso das paixões e do desalento, como devorada por dramático e inconsolável amor, plane, distante, mas penetrante e perfeitamente distinta, a voz ferida, triste e tenra da mão direita”? Lukas Geniusas é um grande pianista, já aos 20 anos de idade. Deverá percorrer o mundo a encantar – não a deixar atônitas – as gerações que o ouvirão.
Foi-nos possível assistir as performances de três outros candidatos. O terceiro colocado, o russo Daniil Trifonov, de apenas 19 anos, é já um mestre em tratar a frase musical. Rara musicalidade. A sua interpretação do Estudo das Terças já mencionado, diametralmente oposta à de Ingolf Wunder, não deixa de ser extraordinária. Prefiro-a. Fá-lo mais interiorizado, a conservar uma dinâmica mais voltada às menores intensidades, realizando com sensível expressividade os desenhos da mão esquerda, tantas vezes minimizados pelos intérpretes que visitam esse complexo Estudo, mas que visam unicamente ao impacto que o desfilar das terças produz junto ao público. Quanto ao quarto colocado, o búlgaro Eugeni Bozhanov, suas interpretações têm muita criatividade. Sabe dosar muitíssimo bem o discurso musical, sobretudo quando direcionado às baixas intensidades. Belas execuções. Tem 26 anos. O quinto colocado, o francês François Dumont, apesar de boa performance, pareceu-me mais contido. Como dois outros laureados, está com 25 anos.
A história da interpretação pianística segue sua trajetória. É possível verificar uma maior proximidade no quesito aperfeiçoamento técnico-pianístico entre os vários candidatos. Assim como no esporte, onde recordes são batidos, por vezes para causar impacto, os jovens concorrentes buscam ultrapassar barreiras. Faz parte da juventude. É salutar, desde que não se torne princípio incorporado. A música tem que fluir. E fluiu excelentemente entre os seis pianistas aqui mencionados. Algo, contudo, levou-me à reflexão. Um fundamento, que era básico nas escolas européias em meados do século passado, tem sido praticamente “descartado” pelas gerações atuais: a técnica da substituição dos dedos – questão de dedilhado -, tão imperativa, mormente nos andamentos lentos. Graças às câmaras que tudo focalizam, verifica-se que esses jovens tantas vezes desprezaram o emprego da substituição, realizando “ligações diretas”, seja na repetição de um mesmo dedo sobre a mesma tecla, ou, em frase expressiva, empregando o mesmo dedo em notas diferentes sequenciais. Compensaram bem essa “ausência” de um recurso da tradição através de discreta pedalização. Apenas uma constatação, mas questão fulcral que percorreu do romantismo até, pelo visto, bem recentemente. Inúmeros tratados sobre técnica pianística escritos por eminentes mestres pormenorizaram o processo que se direciona fundamentalmente ao denominado legato.
Quanto ao júri, ou num sentido mais amplo, júris, será que décadas se somarão a outras e bancas examinadoras continuarão a ter prioritariamente as mesmas figuras? Mesmo que relevantes, há quantidade bem grande de também ótimos músicos que circulam habitualmente pelos centros mais festejados do planeta. Qual a razão de serem chamados, não apenas em Varsóvia, mas em outros lugares do mundo e, bem particularmente, neste imenso Brasil, basicamente os mesmos examinadores? Se essa juventude particularizada em Varsóvia dá mostras de enorme renovação, qual a razão de novos ventos não atingirem os organizadores? Banca vivificada seria exemplo de tendências menos repetitivas que podem conter, no âmago, conceitos sedimentados ou estranhos. Não valeria a pena a tentativa? A Música agradeceria, e muito.
Listening online to the winners of the 16th Chopin International Competition held in Warsaw in 2010 led me to reflections on the winner’s extraordinary performances and on the jurors’ responsibility. In my view, the jury of piano competitions throughout the world ― though outstanding pianists and musicians ― is a closed club, so that the same people control the circuit. Music would benefit from the introduction of new faces to bring fresh air and vigor to such contests.
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