Navegando Posts publicados em janeiro, 2011

Quando Relações Marcam a Existência

JEM. Primeira foto em Paris, 1958. Clique para ampliar.

Jouis toujours du présent avec discernement,
ainsi le passé te sera un beau souvenir
et l’avenir ne sera pas un épouvantail.

Franz Schubert

Essa nova travessia, como todas as outras para a Europa, está sob a égide da Música. Não sei se terei um dia uma viagem para o Exterior unicamente de recreação. Diria, contudo, que em nenhumas das dezenas de deslocamentos para o Velho Continente meus olhos deixaram de perceber o cotidiano das ruas, a imobilidade vivificante dos museus, a paz de templos por vezes milenares, as diversificadas paisagens, os cantos de pássaros silvestres e, num patamar amoroso, as amizades, muitas delas já tendo ultrapassado o cinquentenário da afeição.
Brevemente escreverei sobre as teses que me trouxeram, neste final de Janeiro, à Universidade de Paris. Será a quarta vez, nestes últimos vinte anos, que adentrarei os velhos espaços da instituição, as duas primeiras para conferências e uma outra igualmente a integrar júri que examinava tese de doutorado. Quando há originalidade nos trabalhos acadêmicos, princípio essencial para uma meritória tese, já temos uma salvaguarda. Presentemente há muitos dados relevantes, mas prefiro um mínimo recuo de tempo para poder acomodá-los em meu pensar e transmi-ti-los resumidamente ao prezado leitor.
Estar entre amigos em Paris é privilégio. Já não são poucas as vezes em que mencionei os Roberts, família que comecei a amar nos meus sonhos de vida, quando os estudos pianísticos e musicais descortinavam um futuro incerto, mas com tênue luz no horizonte, a mostrar que poderia valer a pena continuar o caminho. Segui-o sem jamais me arrepender, e dadivoso foi o percurso que ainda não findou, a me proporcionar o vislumbre do multidirecionamento. E os Roberts, já decantados em post bem anterior (vide La Querye-Férias Inesquecíveis, 01/02/08), nunca deixaram de estar presentes, apesar de um oceano a nos separar. Estar em Paris, entre os Billys, é recordar projetando. Nicolle descreve programas violinísticos ainda não desvelados; Emmanuel, as peças egípcias, gregas, etruscas, que manuseia com perícia, revelando ao amigo a feitura da criação. Traços de fragmento egípcio ou as tanagras da Grécia antiga lhes são familiares. Colecionador na essência. Hospedo-me ou nos Billys ou nos Roberts, amigos fraternos entre si, e que sempre me acolheram com carinho.
Quando escrevi o blog sobre a Rue de Lévis, mencionei o excelente músico, compositor, arranjador e editor François Servenière. Amizade gerada pelo epistolar prolongou-se e nossos longos e-mails, a abordar interpretação e criação musicais, um dia poderão resultar em um opúsculo. Assim imaginamos. Polemista e pensador, Servenière comenta meus e-mails e suas observações abrem outras portas para novas divagações a respeito da arte. Foi uma emoção grande tê-lo conhecido pessoalmente. Perspectivas se abrem nesse amplo sentido de troca de ideias. Não é esse um dos princípios do maravilhamento ? Poder discutir livremente temas intrínsecos sobre a criação artística e o meio que nos cerca, por vezes asfixiante, sem quaisquer amarras ditadas pela Academia, o que torna o pensamento mais solto e conduzido pela fluidez das ideias. Mutuamente sentimos que ainda há muito a ser desaguado em nossos e-mails. Resultará.
Faz-se noite precoce nesta gélida Paris, mas a reunião que acaba de findar com o clã Robert trouxe-me alegria, surda nostalgia e a certeza de que laços verdadeiros de amizade são imorredouros. Amanhã viajo para a Bélgica de comboio. Essa Europa invernal não chega a esfriar minha emoção. Estarei novamente em Gent com velhos amigos. Tony Herbert me abrigará como sempre o fez. Sua esposa Tânia e seus filhos são encantadores. Com Johan Kennivé, o mago engenheiro de som, teremos três dias de intenso trabalho na masterização dos dois CDs Lopes-Graça gravados em Maio último. Verdadeiras obras-primas desse grande mestre estão agora fixadas. Missão a visar ao repertório desconhecido ou pouco frequentado. Não seria essa uma razão fulcral para que minha vida musical tenha um sentido pleno ? Continuarei…

Quando Envolvimento Está em Causa

Leitores de Música. www.pedrasdeleitor.com . Clique para ampliar.

Quand on a beaucoup médité sur l’homme,
par métier ou par vocation,
il arrive qu’on éprouve de la nostalgie pour les primates.
Ils n’ont pas, eux, d’arrière-pensées.

Albert Camus (La Chute)

Às vésperas de duas teses de doutorado sobre música, que serão defendidas na Université Sorbonne em Paris e das quais farei parte como membro do júri, fiquei a tecer considerações sobre envolvimento frente a teses acadêmicas. Reiteradas vezes tratei do tema, mais ou menos extensivamente, mas sempre a considerar a postura de um candidato e a condição de um orientador.
Edificar trabalho acadêmico pressupõe dedicação. São anos da vida de um postulante que, a depender de suas reais intenções, podem moldar seu perfil futuro. A carga de empenho e disciplina que um doutorando consagra aos cursos e à pesquisa são determinantes para que o resultado final possa ser avaliado.
Tratei em posts anteriores do tema escolhido para a construção de uma tese. A partir desse posicionamento, pode-se ter uma ideia mais precisa dos caminhos que serão seguidos. A pré-escolha de enredo, que indicará os rumos da pesquisa, já estaria a sinalizar intenções precisas, mesmo que uma névoa espessa ronde o objeto precípuo a ser estudado. Contudo, a partir desse primeiro impulso é possível vislumbrar tendências e inclinações de um candidato em direção ao desiderato seguinte. Seria como se o pretendente ao título escolhesse o terreno, já sabendo, no seu de profundis, os contornos da futura edificação.
Diria que, majoritariamente, para que uma tese tenha valor, há necessidade de relação amorosa com o tema. Sem ela, pode haver camuflagem, mas em determinado momento do trabalho concluso, quando da leitura pormenorizada, a proposta intensa ou meramente a visar ao título será detectada. Esse término não exclui o paradoxal, ou seja, teses sem envolvimento, entendidas como obrigações acadêmicas, podem, no âmago, apresentar soluções de interesse, mesmo que parciais; assim como outras, nas quais houve dedicação plena, apresentariam resultados menores, motivados até pela parcialidade do candidato frente ao tema eleito com entusiasmo. “Viúvos” e “viúvas” de personagens estudados proliferam em torno da Academia.
Comentei igualmente que um bom orientador saberá sempre guiar o postulante rumo à pesquisa específica, evitando que equívocos claros ou desvios aconteçam. Contudo, um mau orientador será sempre um mau orientador. E eles existem, infelizmente, acima do desejável.
Contando-se os anos de debruçamento sobre um tema e a abrangência do resultado final, quando o candidato tende a “descobrir” caminhos ainda não trilhados, o que tornaria a tese original – princípio que deveria ser soberano -, o perfil desse pesquisador poderá estar traçado. Teses meritórias pressupõem novos doutores aptos para a função professoral e preparados, no futuro, para serem bons orientadores. Ao contrário, teses repetitivas – e elas existem bem acima da média – já estariam a evidenciar a índole do candidato e sua atitude frente à carreira acadêmica, se ela se prefigurar. Compete ao júri entender a existência ou não da real contribuição para o alargamento do conhecimento na área. Quando positiva, a depender de gradações, deve-se louvar o contributo, doravante de domínio público.
Um outro fator que deveria chamar a atenção de um examinador é a qualidade da bibliografia. Bem indicada por orientador competente e procurada por candidato pleno da boa curiosidade, as referências bibliográficas estariam a apontar as bases seguras que nortearam a tese. Em post anterior (vide “Os Últimos Intelectuais” – Realidades bem Próximas, 21/03/09), abordava a temática das chamadas notas de rodapé, em que tantas vezes, por interesse inconfesso, um candidato tende a querer agradar àqueles que poderão ser úteis na sua trajetória acadêmica. Essa prática é mais utilizada do que se possa imaginar, a trazer distorções – geralmente já pré-existentes – na conduta do que visa adular. Trampolins um dia são descobertos. Para tanto, haveria apenas a necessidade de um olhar mais atento de um examinador.
Tenho como hábito perguntar àquele que teve aprovada sua tese, meses ou anos após a conclusão, a respeito da sequência dada ao trabalho acadêmico, do aprofundamento esperado, dos resultados aferidos através da prática junto à comunidade e, finalmente, da divulgação que estaria a ser dada ao prosseguimento da pesquisa. Surpreendem-me positivamente algumas respostas, em que a relação amorosa persiste, mesmo que se acumulem no acervo do pesquisador outras temáticas. Sob outro aspecto, causa-me desencanto o abandono tout court, por não poucos mestres e doutores, da pesquisa realizada. Estiola-se, simplesmente.
Excelentes orientadores podem, por vezes, deparar-se com orientandos que lhe serão “familiares” devido aos anos de convívio, mas que apresentarão problemas complexos devido a índoles diferentes. Com difícil entendimento poderão chegar ao porto definitivo, apesar dos conflitos, mas contradições tenderiam a aparecer. Aquilo que estaria a indicar no início da orientação, um trabalho solidário, caminharia para sendas não raramente sem saída. Faz parte da natureza humana.
Sob aspecto outro, o integrante de um júri deve estar cônscio do trabalho acadêmico a ser apresentado. Seria sempre prudente saber da competência do orientador, garantia, em princípio, do resultado a ser aferido. Tem-se uma primeira salvaguarda que, contudo, não é uma definição, mas uma expectativa de bons resultados.
Uma atenção bem aguda deve necessariamente determinar a aceitação, por parte de um professor, da participação no julgamento de uma tese. O resultado final pode ter consequências as mais díspares, a depender da própria índole de um candidato.
Essas considerações surgiram à medida que a leitura das teses em apreço se aprofundava. Quantas não são as vezes em que o contato com o mérito nos faz pensar no oposto ? É pois com prazer que atravessarei novamente o Atlântico. Deverei voltar ao tema.

Reflecting on academic theses defenses, in my experience as a university teacher I would say that the level of excellence of a dissertation can be measured by the competence and commitment of the candidate’s advisor; the originality of the work, strengthening or challenging established ideas; the relevance of the bibliographic references; the involvement of the candidate with the subject he has chosen. It should be part of his life project and not just a strategy to launch an academic career or to ensure a better income. Such reflections arose just a few days before my departure to Paris to take part of the jury of two PhD theses defenses at the Sorbonne.

O Respeito à Música pouco Frequentada

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O segundo número de Glosas: ei-lo cumprido.
Motivo de orgulho para a nossa associação,
que tem esta revista
como um dos seus mais queridos projectos,
e motivo de honra para a música portuguesa,
que nela se cruza e redescobre
entre tantas e tão diversas páginas.

Edward Luiz Ayres d’Abreu

Não poucas vezes tenho tratado do tema das revistas sobre música, acadêmicas ou de divulgação, com ou sem patrocínios. Raramente encontramos revista que prime pela qualidade no todo da edição. As de divulgação podem tender à não renovação de seus colaboradores – alguns não músicos -, o que resulta numa endogenia, fato não saudável; as acadêmicas correm sempre o risco de uma complexa miscigenação inter-universidades, nem sempre transparente. Deve-se louvar uma recente revista, que está a buscar o resgate de um repertório e a divulgação mais acentuada do que é pouco conhecido. Sendo de divulgação, tem porém toda uma visão acadêmica, mas sem as amarras que caracterizam aquela oriunda da Academia. Essa atitude implica fugir da concessão. Roberto Campos já definia o perigo da inclinação ao conceder: “onde tudo vai bem, tudo vai mal”.
Alvissareiro o lançamento, em Novembro último, do segundo exemplar de Glosas, publicação do Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa – MPMP, revista editada em Portugal. Com tiragem pequena, Glosas tem diagramação cuidadosa, apresentação de austera elegância, exibindo todas as ilustrações em branco e preto. Esses itens já estariam a apontar o propósito dos organizadores, a qualidade sem concessão não apenas quanto aos textos, mas igualmente no que se refere à sóbria apresentação. Glosas, sob a coordenação geral de Edward Luiz Ayres d’Abreu, luta com dificuldades para que chegue a termo cada exemplar. Trata-se de revista bi-anual, a ter como princípio básico a divulgação e a preservação da música portuguesa, não somente se consagrando aos nomes maiores da criação de Portugal, como a revelar figuras menos representativas, mas que serviram para a edificação do patrimônio musical em terras lusíadas.
O presente número teve como homenageado central o compositor Alfredo Keil (1850-1907), artista de mérito que deixou substanciosa produção, mormente óperas. Articulistas especializados deixaram testemunhos, a salientar a vida e a obra do autor. Para chegar ao hino A Portuguesa, de Alfredo Keil, que se tornaria oficial em 1911, Maria José Borges, que se debruçara em dissertação acadêmica sobre a música de índole política no período liberal (1820-1851), evidencia hinos anteriores. Alexandre Delgado e Luís Raimundo focalizam as ópera de Keil, Serrana e Dona Branca, respectivamente. Sobre esta última, há proveitosa entrevista concedida por João Paulo Santos, diretor de estudos musicais do Teatro São Carlos, a Manuela Paraíso. Em Glosas são tratados aspectos essenciais na vida de Alfredo Keil, como a pintura, em que se mostrou singular artista, assim como seu hobby de colecionador, preferencialmente de instrumentos musicais. Maria de Aires Silveira e Alexandre Andrade são os autores respectivos dos artigos em apreço.
Alberto Sousa entrevistou os responsáveis pelo projeto, a visar à apresentação em Londres, na prestigiosa Guildhall School of Music & Drama, da única ópera completa de Francisco António de Almeida (1702-1755), La Spinalba. Tem interesse.

Marcos Portugal. Pintura do final do séc. XVIII, autor anônimo. Clique para ampliar.

Marcos Portugal (1762-1830) foi um notável compositor, autor de obra fundamental, na qual se destacam a música religiosa e, sobretudo, o gênero operístico. Pouco a pouco, Portugal e outros países europeus voltam seus ouvidos para o compositor que viveu no Brasil, para onde veio em 1811, anos após a chegada da família real ao Rio de Janeiro, desempenhando função preponderante no cenário musical, tendo sido certamente o mais importante compositor a viver na cidade durante o período. Viria a morrer no Rio em 1830. Infelizmente, talvez por ser português, não é estudado como deveria ser em nosso país. David Crammer e Joana Seara escrevem substancioso artigo, comentando a estreia moderna na Inglaterra de La pazza giornata, o sai il matrimonio di Figaro, de Marcos Portugal.
Mônica Brito entrevista Luís Tinoco a respeito da estreia absoluta de sua ópera de câmara Paint Me. A revista finaliza com secção especial, que mereceria servir de exemplo entre nós. Trata-se de “Compositores a Descobrir”. António C.K. de Bessa Ribas e João Heitor Rigaud pormenorizam-se sobre a dinastia de músicos Nicolau Ribas & Família. Curiosamente, à família musical pertenceria Eduardo Medina Ribas, barítono respeitado, que se prolongou no Rio de Janeiro, sempre a angariar aplausos. Seu envolvimento amoroso ilícito com figura pertencente à sociedade do Rio de Janeiro poderia resultar em escândalo, o que levou o casal à Itália, a fim de ocultar o nascimento, em Nápoles, daquele que seria o talentoso compositor Glauco Velasquez (1884-1914), morto prematuramente aos 30 anos no Rio de Janeiro.
Glosas conta com interessantes comentários sobre a temporada de 2010 em Portugal e anuncia eventos importantes pelo mundo e relacionados à música portuguesa neste 2011. Manuela Paraíso, em “Debaixo de Olho – O que está a acontecer na Música Portuguesa”, traça perfil preocupante em relação à guarida que se dá em Portugal à música de concerto.
Edward Luiz Ayres d’Abreu escreveu-me, após ter conhecimento de meu post sobre o excelente e discreto músico que foi Louis Saguer (vide Louis Saguer – Em Defesa da Música Portuguesa, 27/06/09), a solicitar permissão para publicá-lo em Glosas 2. Aquiesci prazerosamente.
É de se esperar que a Revista continue. O grande esforço em manter a qualidade sem concessão já está prefigurado no editorial da revista, quando Ayres d’Abreu afirma “De nossa parte, manteremos a nossa voz. Levá-la-emos, como temos feito, a auditórios diversos pelo país afora, organizando concertos, divulgando a Glosas, os nossos compositores, maiores ou menores, mais ou menos esquecidos. Mostrando que, afinal, existem obras magistrais na História da Música Portuguesa. E que é urgente descobri-la, estudá-la, conhecê-la: a do passado e a do presente, para um futuro merecidamente digno”. É reconfortante verificar-se que as décadas dedicadas a esse propósito pelo extraordinário compositor Fernando Lopes-Graça e empreendida a seguir por poucos, mas competentes e fiéis interessados, não foram em vão. Uma luta surda, contra tantos outros interesses, persiste e é sinal de esperança.