O Respeito à Música pouco Frequentada
O segundo número de Glosas: ei-lo cumprido.
Motivo de orgulho para a nossa associação,
que tem esta revista
como um dos seus mais queridos projectos,
e motivo de honra para a música portuguesa,
que nela se cruza e redescobre
entre tantas e tão diversas páginas.
Edward Luiz Ayres d’Abreu
Não poucas vezes tenho tratado do tema das revistas sobre música, acadêmicas ou de divulgação, com ou sem patrocínios. Raramente encontramos revista que prime pela qualidade no todo da edição. As de divulgação podem tender à não renovação de seus colaboradores – alguns não músicos -, o que resulta numa endogenia, fato não saudável; as acadêmicas correm sempre o risco de uma complexa miscigenação inter-universidades, nem sempre transparente. Deve-se louvar uma recente revista, que está a buscar o resgate de um repertório e a divulgação mais acentuada do que é pouco conhecido. Sendo de divulgação, tem porém toda uma visão acadêmica, mas sem as amarras que caracterizam aquela oriunda da Academia. Essa atitude implica fugir da concessão. Roberto Campos já definia o perigo da inclinação ao conceder: “onde tudo vai bem, tudo vai mal”.
Alvissareiro o lançamento, em Novembro último, do segundo exemplar de Glosas, publicação do Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa – MPMP, revista editada em Portugal. Com tiragem pequena, Glosas tem diagramação cuidadosa, apresentação de austera elegância, exibindo todas as ilustrações em branco e preto. Esses itens já estariam a apontar o propósito dos organizadores, a qualidade sem concessão não apenas quanto aos textos, mas igualmente no que se refere à sóbria apresentação. Glosas, sob a coordenação geral de Edward Luiz Ayres d’Abreu, luta com dificuldades para que chegue a termo cada exemplar. Trata-se de revista bi-anual, a ter como princípio básico a divulgação e a preservação da música portuguesa, não somente se consagrando aos nomes maiores da criação de Portugal, como a revelar figuras menos representativas, mas que serviram para a edificação do patrimônio musical em terras lusíadas.
O presente número teve como homenageado central o compositor Alfredo Keil (1850-1907), artista de mérito que deixou substanciosa produção, mormente óperas. Articulistas especializados deixaram testemunhos, a salientar a vida e a obra do autor. Para chegar ao hino A Portuguesa, de Alfredo Keil, que se tornaria oficial em 1911, Maria José Borges, que se debruçara em dissertação acadêmica sobre a música de índole política no período liberal (1820-1851), evidencia hinos anteriores. Alexandre Delgado e Luís Raimundo focalizam as ópera de Keil, Serrana e Dona Branca, respectivamente. Sobre esta última, há proveitosa entrevista concedida por João Paulo Santos, diretor de estudos musicais do Teatro São Carlos, a Manuela Paraíso. Em Glosas são tratados aspectos essenciais na vida de Alfredo Keil, como a pintura, em que se mostrou singular artista, assim como seu hobby de colecionador, preferencialmente de instrumentos musicais. Maria de Aires Silveira e Alexandre Andrade são os autores respectivos dos artigos em apreço.
Alberto Sousa entrevistou os responsáveis pelo projeto, a visar à apresentação em Londres, na prestigiosa Guildhall School of Music & Drama, da única ópera completa de Francisco António de Almeida (1702-1755), La Spinalba. Tem interesse.
Marcos Portugal (1762-1830) foi um notável compositor, autor de obra fundamental, na qual se destacam a música religiosa e, sobretudo, o gênero operístico. Pouco a pouco, Portugal e outros países europeus voltam seus ouvidos para o compositor que viveu no Brasil, para onde veio em 1811, anos após a chegada da família real ao Rio de Janeiro, desempenhando função preponderante no cenário musical, tendo sido certamente o mais importante compositor a viver na cidade durante o período. Viria a morrer no Rio em 1830. Infelizmente, talvez por ser português, não é estudado como deveria ser em nosso país. David Crammer e Joana Seara escrevem substancioso artigo, comentando a estreia moderna na Inglaterra de La pazza giornata, o sai il matrimonio di Figaro, de Marcos Portugal.
Mônica Brito entrevista Luís Tinoco a respeito da estreia absoluta de sua ópera de câmara Paint Me. A revista finaliza com secção especial, que mereceria servir de exemplo entre nós. Trata-se de “Compositores a Descobrir”. António C.K. de Bessa Ribas e João Heitor Rigaud pormenorizam-se sobre a dinastia de músicos Nicolau Ribas & Família. Curiosamente, à família musical pertenceria Eduardo Medina Ribas, barítono respeitado, que se prolongou no Rio de Janeiro, sempre a angariar aplausos. Seu envolvimento amoroso ilícito com figura pertencente à sociedade do Rio de Janeiro poderia resultar em escândalo, o que levou o casal à Itália, a fim de ocultar o nascimento, em Nápoles, daquele que seria o talentoso compositor Glauco Velasquez (1884-1914), morto prematuramente aos 30 anos no Rio de Janeiro.
Glosas conta com interessantes comentários sobre a temporada de 2010 em Portugal e anuncia eventos importantes pelo mundo e relacionados à música portuguesa neste 2011. Manuela Paraíso, em “Debaixo de Olho – O que está a acontecer na Música Portuguesa”, traça perfil preocupante em relação à guarida que se dá em Portugal à música de concerto.
Edward Luiz Ayres d’Abreu escreveu-me, após ter conhecimento de meu post sobre o excelente e discreto músico que foi Louis Saguer (vide Louis Saguer – Em Defesa da Música Portuguesa, 27/06/09), a solicitar permissão para publicá-lo em Glosas 2. Aquiesci prazerosamente.
É de se esperar que a Revista continue. O grande esforço em manter a qualidade sem concessão já está prefigurado no editorial da revista, quando Ayres d’Abreu afirma “De nossa parte, manteremos a nossa voz. Levá-la-emos, como temos feito, a auditórios diversos pelo país afora, organizando concertos, divulgando a Glosas, os nossos compositores, maiores ou menores, mais ou menos esquecidos. Mostrando que, afinal, existem obras magistrais na História da Música Portuguesa. E que é urgente descobri-la, estudá-la, conhecê-la: a do passado e a do presente, para um futuro merecidamente digno”. É reconfortante verificar-se que as décadas dedicadas a esse propósito pelo extraordinário compositor Fernando Lopes-Graça e empreendida a seguir por poucos, mas competentes e fiéis interessados, não foram em vão. Uma luta surda, contra tantos outros interesses, persiste e é sinal de esperança.