Quando Envolvimento Está em Causa
Quand on a beaucoup médité sur l’homme,
par métier ou par vocation,
il arrive qu’on éprouve de la nostalgie pour les primates.
Ils n’ont pas, eux, d’arrière-pensées.
Albert Camus (La Chute)
Às vésperas de duas teses de doutorado sobre música, que serão defendidas na Université Sorbonne em Paris e das quais farei parte como membro do júri, fiquei a tecer considerações sobre envolvimento frente a teses acadêmicas. Reiteradas vezes tratei do tema, mais ou menos extensivamente, mas sempre a considerar a postura de um candidato e a condição de um orientador.
Edificar trabalho acadêmico pressupõe dedicação. São anos da vida de um postulante que, a depender de suas reais intenções, podem moldar seu perfil futuro. A carga de empenho e disciplina que um doutorando consagra aos cursos e à pesquisa são determinantes para que o resultado final possa ser avaliado.
Tratei em posts anteriores do tema escolhido para a construção de uma tese. A partir desse posicionamento, pode-se ter uma ideia mais precisa dos caminhos que serão seguidos. A pré-escolha de enredo, que indicará os rumos da pesquisa, já estaria a sinalizar intenções precisas, mesmo que uma névoa espessa ronde o objeto precípuo a ser estudado. Contudo, a partir desse primeiro impulso é possível vislumbrar tendências e inclinações de um candidato em direção ao desiderato seguinte. Seria como se o pretendente ao título escolhesse o terreno, já sabendo, no seu de profundis, os contornos da futura edificação.
Diria que, majoritariamente, para que uma tese tenha valor, há necessidade de relação amorosa com o tema. Sem ela, pode haver camuflagem, mas em determinado momento do trabalho concluso, quando da leitura pormenorizada, a proposta intensa ou meramente a visar ao título será detectada. Esse término não exclui o paradoxal, ou seja, teses sem envolvimento, entendidas como obrigações acadêmicas, podem, no âmago, apresentar soluções de interesse, mesmo que parciais; assim como outras, nas quais houve dedicação plena, apresentariam resultados menores, motivados até pela parcialidade do candidato frente ao tema eleito com entusiasmo. “Viúvos” e “viúvas” de personagens estudados proliferam em torno da Academia.
Comentei igualmente que um bom orientador saberá sempre guiar o postulante rumo à pesquisa específica, evitando que equívocos claros ou desvios aconteçam. Contudo, um mau orientador será sempre um mau orientador. E eles existem, infelizmente, acima do desejável.
Contando-se os anos de debruçamento sobre um tema e a abrangência do resultado final, quando o candidato tende a “descobrir” caminhos ainda não trilhados, o que tornaria a tese original – princípio que deveria ser soberano -, o perfil desse pesquisador poderá estar traçado. Teses meritórias pressupõem novos doutores aptos para a função professoral e preparados, no futuro, para serem bons orientadores. Ao contrário, teses repetitivas – e elas existem bem acima da média – já estariam a evidenciar a índole do candidato e sua atitude frente à carreira acadêmica, se ela se prefigurar. Compete ao júri entender a existência ou não da real contribuição para o alargamento do conhecimento na área. Quando positiva, a depender de gradações, deve-se louvar o contributo, doravante de domínio público.
Um outro fator que deveria chamar a atenção de um examinador é a qualidade da bibliografia. Bem indicada por orientador competente e procurada por candidato pleno da boa curiosidade, as referências bibliográficas estariam a apontar as bases seguras que nortearam a tese. Em post anterior (vide “Os Últimos Intelectuais” – Realidades bem Próximas, 21/03/09), abordava a temática das chamadas notas de rodapé, em que tantas vezes, por interesse inconfesso, um candidato tende a querer agradar àqueles que poderão ser úteis na sua trajetória acadêmica. Essa prática é mais utilizada do que se possa imaginar, a trazer distorções – geralmente já pré-existentes – na conduta do que visa adular. Trampolins um dia são descobertos. Para tanto, haveria apenas a necessidade de um olhar mais atento de um examinador.
Tenho como hábito perguntar àquele que teve aprovada sua tese, meses ou anos após a conclusão, a respeito da sequência dada ao trabalho acadêmico, do aprofundamento esperado, dos resultados aferidos através da prática junto à comunidade e, finalmente, da divulgação que estaria a ser dada ao prosseguimento da pesquisa. Surpreendem-me positivamente algumas respostas, em que a relação amorosa persiste, mesmo que se acumulem no acervo do pesquisador outras temáticas. Sob outro aspecto, causa-me desencanto o abandono tout court, por não poucos mestres e doutores, da pesquisa realizada. Estiola-se, simplesmente.
Excelentes orientadores podem, por vezes, deparar-se com orientandos que lhe serão “familiares” devido aos anos de convívio, mas que apresentarão problemas complexos devido a índoles diferentes. Com difícil entendimento poderão chegar ao porto definitivo, apesar dos conflitos, mas contradições tenderiam a aparecer. Aquilo que estaria a indicar no início da orientação, um trabalho solidário, caminharia para sendas não raramente sem saída. Faz parte da natureza humana.
Sob aspecto outro, o integrante de um júri deve estar cônscio do trabalho acadêmico a ser apresentado. Seria sempre prudente saber da competência do orientador, garantia, em princípio, do resultado a ser aferido. Tem-se uma primeira salvaguarda que, contudo, não é uma definição, mas uma expectativa de bons resultados.
Uma atenção bem aguda deve necessariamente determinar a aceitação, por parte de um professor, da participação no julgamento de uma tese. O resultado final pode ter consequências as mais díspares, a depender da própria índole de um candidato.
Essas considerações surgiram à medida que a leitura das teses em apreço se aprofundava. Quantas não são as vezes em que o contato com o mérito nos faz pensar no oposto ? É pois com prazer que atravessarei novamente o Atlântico. Deverei voltar ao tema.
Reflecting on academic theses defenses, in my experience as a university teacher I would say that the level of excellence of a dissertation can be measured by the competence and commitment of the candidate’s advisor; the originality of the work, strengthening or challenging established ideas; the relevance of the bibliographic references; the involvement of the candidate with the subject he has chosen. It should be part of his life project and not just a strategy to launch an academic career or to ensure a better income. Such reflections arose just a few days before my departure to Paris to take part of the jury of two PhD theses defenses at the Sorbonne.
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